Total de visualizações de página

quinta-feira, 30 de maio de 2013

As estratégias do Psicanalista: Psicanálise Pura e Psicanálise Aplicada versus Psicoterapia (II)

Mas antes de passarmos à política, voltemos ao texto e, mais especificamente, ao bridge analítico.

"Não é possível raciocinar com o que o analisado leva a pessoa do analista a suportar de suas fantasias como com o que um jogador ideal avalia das intenções de seu adversário. Sem dúvida, há também uma estratégia ali, mas não nos enganemos com a metáfora do espelho, por mais que ela convenha à superfície una que o analista apresenta ao paciente. Cara fechada e boca cosida não têm aqui a mesma finalidade que no bridge. Com isso, antes, o analista convoca a ajuda do que nesse jogo é chamado de morto, mas para fazer surgir o quarto jogador que do analisado será parceiro, e cuja mão, através de seus lances, o analista se esforçará por faze-lo adivinhar: é esse o vínculo, digamos, de abnegação, imposto ao analista pelo cacife da partida da analise.
Poderíamos prosseguir nessa metáfora, daí deduzindo seu jogo conforme ele se coloque "à direita" ou "à esquerda" do paciente, ou seja, na posição de jogar antes ou depois do quarto jogador, isto e, de jogar antes ou depois deste com o morto.
Mas o que há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar possível nesse jogo: o do morto; e que, ao ressuscita-lo, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz.”

Eis por que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática.
A partida que constitui uma análise está estabelecida sobre uma regra e a direção consiste em fazer aplicar, pelo sujeito, esta regra analítica que é, basicamente, uma regra de não-omissão. Quando Lacan menciona que o analista, ao formular a regra ao analisante traduz a doutrina, ou seja, a ideia que ele formou a propósito do procedimento e do final da empreitada a partir do ponto em que ele mesmo atingiu no seu percurso, ele deixa claro que o jogo do qual se trata não é um jogo comum, onde a regra transcende os parceiros. O mais importante demonstrado por Lacan foi que o jogo analítico não se joga a dois, por isso ele escolhe o Bridge e não o Xadrez para metaforizar a análise. A partir do momento em que a estrutura da linguagem está incluída na prática analítica são exigidos quatro termos para a construção do ordenamento subjetivo.
Em função disso Lacan vai precisar o lugar do analista no dispositivo da cura segundo o bridge analítico em dois momentos de seu ensino. O primeiro neste texto que estamos trabalhando: “A direção do tratamento...”, e uma segunda vez no ‘Seminário VIII, A transferência”.
Para aqueles que, como eu mesmo, ignoram a dinâmica do Bridge, uma lembrança das regras básicas é necessário. O Bridge se joga entre quatro pessoas, duas contra duas. Os parceiros se colocam um frente ao outro. Todas as cartas do baralho são distribuídas, ou seja, treze cartas para cada jogador. Tudo começa pelos anúncios, sendo que o último a falar deve efetuar o contrato que consiste em estabelecer as metas e a quantidade de “vazas” ou “mãos”. Após o ataque efetuado à sua esquerda, seu parceiro mostra as cartas para que todos possam vê-las. O parceiro daquele que dita o contrato é chamado de morto. O contratante passa, então, a jogar com suas cartas e com as do morto, seguindo o sentido dos ponteiros do relógio.

                                                              O Morto

                                            Jogador 1                     Jogador 2

                                                          O contratante

No texto “A Direção do tratamento...” Lacan não desenvolve esta abordagem do jogo no sentido da teoria dos jogos, onde cada jogada deve ser a melhor possível, após citar o “jogador ideal” mas indica, isso sim, uma reserva quanto ao modelo proposto. Mas, mesmo estando longe da teorização dos nós, este modelo tem a sua utilidade no que diz respeito à posição do analista na direção do tratamento.
Por tudo o que estamos desenvolvendo até aqui, fica claro que a posição do analista é a do contratante, aquele que dirige o jogo e quem dita as regras.  Um segundo ponto se apresenta e poderá causar surpresa: o analista joga para perder, do tipo: “quem perde ganha” já que “com isso, antes, o analista convoca a ajuda do que nesse jogo é chamado de morto, mas para fazer surgir o quarto jogador que do analisado será parceiro, e cuja mão, através de seus lances, o analista se esforçará por faze-lo adivinhar: é esse o vínculo, digamos, de abnegação, imposto analista pelo cacife da partida da analise.”
Em outras palavras, ele vai tentar fazer com que o analisante conheça a “mão” daquele que, no esquema acima, é proposto como jogador 2 ou jogador 1, conforme ele se coloque à direita ou a esquerda. Estas duas posições, como teremos oportunidade de verificar mais à frente, designam possibilidades clínicas em função do caso clínico, apontando para uma clínica diferencial das neuroses.
Neste ponto é fundamental relembrarmos o que está escrito no texto: “o que há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar possível nesse jogo: o do morto; e que, ao ressuscita-lo, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz.” Com isso vemos Lacan insistir, uma vez mais, sobre a função da direção do tratamento na ordem simbólica em oposição ao deverá ser apagado dos sentimentos do analista no registro imaginário.
Para continuarmos nossa explicação sobre o Bridge analítico, será importante fazermos uma articulação do esquema do jogo com um outro esquema: o esquema L. No esquema L, um dos primeiros que Lacan desenvolveu, ele nos diz do Estádio do Espelho e da constituição do sujeito e é onde encontramos o sujeito estirado em seus quatro cantos: “a saber, S, sua inefável e estúpida existência; a, seus objetos; a’ seu eu, a saber o que se reflete de sua forma em seus objetos; e A o lugar de onde pode se colocar-lhe a questão de sua existência.”[1]. Pois este esquema pode ser estirado sobre o modelo do jogo do Bridge para esclarecer o que Lacan escreveu no texto: “Não é possível raciocinar com o que o analisado leva a pessoa do analista a suportar de suas fantasias como com o que um jogador ideal avalia das intenções de seu adversário. Sem dúvida, há também uma estratégia ali, mas não nos enganemos com a metáfora do espelho, por mais que ela convenha à superfície una que o analista apresenta ao paciente”.
Assim ficam os esquemas:

   
             O morto                                                                         a

Sujeito                                   O outro                                       S                      a’

         Analista                                                                             A

Neste esquema, temos o a’, o Eu, frente ao sujeito, mas suas cartas permanecem escondidas para este. Lembremos que a função do Eu é fundamentalmente a de desconhecimento. Por outro lado, temos acesso ao “a” do Outro, o analista, que é, da mesma forma, sua própria imagem especular, pois o morto está visível para ele. Esta é uma forma de se demonstrar o desdobramento que sofre a pessoa do analista na transferência.
Assinalamos a pouco os diferentes manejos da direção do tratamento conforme o sujeito (analisante) se coloque à esquerda ou à direita do analista neste esquema proposto por Lacan. Dois casos (“Dora” e “A Jovem Homossexual”) examinados por Lacan no Seminário IV – A relação de Objeto – nos servirão de parâmetros para esclarecer sobre estes lugares e o estilo necessário ao analista, segundo o sujeito se oferece na cena transferencial desconhecendo sua função, como no caso Dora esbofeteando o Sr. K. ou provocando um encontro, como acontece com a Jovem Homossexual, que joga com seu ser na cena onde se apresentam seu Pai e a Dama, objeto de seu amor.

                  Sr. K                                                            A Dama
                                    
         Sra. K                 Dora                     Jovem   Homossexual            O pai (Freud)
             
             O pai                                                               (Freud)      
                                                          
Nestas duas situações clínicas Lacan nos chama a atenção para o fato de que, no primeiro caso, Dora se sentiu enganada por Freud, enquanto que no segundo, Freud se sentiu enganado pela Jovem Homossexual.  Ora, enganar ou ser enganado traduz a posição do analista, em sua dimensão simbólica (A), conforme ele a ocupa, à direita ou à esquerda do analisante na metáfora do Bridge. Em outras palavras, conforme ele joga antes ou depois do quarto jogador, o parceiro do analisante, ou seja, se ele joga antes ou depois do morto. (Se ele joga depois do analisante, implica que este jogará com as cartas do morto antes dele). Para enganar é preciso jogar com o morto antes do analisante, por isso Freud engana Dora, jogando com o morto antes dela e, ao contrário, Freud é enganado pela Jovem Homossexual na medida em que ele se imagina jogando depois dela e por esquecer que o endereçamento da analisante visa, precisamente, sua imagem, aquilo que ela imaginava ser a vontade do psicanalista: que ela se casasse e tivesse filhos. Este lugar é aquele que no esquema L aponta para o lugar do Eu (a) do psicanalista. O lugar do desdobramento de sua imagem na transferência, como já vimos, e que vai desenhar a realidade sexual do inconsciente do analisante. Este lugar é aquele que não deve ser reanimado, sob pena do jogo se interromper, como aconteceu neste caso, ou de prosseguir “sem que se saiba quem o conduz”.




[1] Lacan, J., “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998, pág. 555.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

As estratégias do Psicanalista: Psicanálise Pura e Psicanálise Aplicada versus Psicoterapia – I Parte



Retomaremos o texto no ponto em que o deixamos na última publicação, para tratarmos das estratégias do analista. Iremos um pouco mais devagar hoje pelo texto "Direção do Tratamento...". Não só porque esta subdivisão vai nos exigir mais, mas também porque devo inserir um tópico que tem batido em minha porta com muita insistência nestes dias, a partir mesmo do que estamos trabalhando aqui. São as ressonâncias de nosso trabalho que devem ser escutadas e respondidas, quando possível. Trata-se da díade "Psicanálise Pura & Psicanálise Aplicada". Outra também já chegou e ficou sem resposta: Psicanálise em intensão e Psicanálise em extensão. Veremos como responder a estas questões no decorrer de nosso trabalho.
Vamos, pois ao texto da "Direção do Tratamento..."
Trata-se de uma subdivisão extensa e, por isso mesmo vamos privilegiar apenas alguns pontos que consideramos importantes para este momento. Ressalva seja feita quanto ao fato que estes tópicos, Interpretação, Transferência e Política serão retomados de forma mais detalhada nos "capítulos" dois, três e quatro do texto.
Vamos dividir o item 5 em duas partes:
"Quanto ao manejo da transferência, minha liberdade, ao contrário, vê-se alienada pelo desdobramento que nela sofre minha pessoa, e ninguém ignora que é aí que se deve buscar o segredo da análise. O que não impede que se creia estar progredindo nesta douta afirmação: que a psicanálise deve ser estudada como uma situação a dois. Decerto se introduzem nela condições que lhe restringem os movimentos, no entanto disso resulta que a situação assim concebida serve para articular (e sem maiores artifícios do que a já citada reeducação emocional) os princípios de um adestramento do chamado Eu fraco, e por um Eu o qual há quem goste de considerar capaz de realizar esse projeto, porque é forte. Que não se enuncie isso sem constrangimento é o que atestam certos arrependimentos de uma inabilidade impressionante, como aquele que esclarece não ceder à exigência de uma "cura por dentro". Mas só é mais significativo constatar que o assentimento do sujeito, por sua evocação nesse trecho, vem apenas no segundo tempo de um efeito inicialmente imposto.
Não é por nosso prazer que expomos esses desvios, mas, antes, para, com seus escolhos, fazer balizas para nosso caminho.
 De fato, todo analista (nem que seja os que assim se extraviam) sempre experimenta a transferência, no deslumbramento do efeito menos esperado de uma relação a dois que seria como as outras. Ele diz a si mesmo que, nesse aspecto, tem que contemporizar com um fenômeno pelo qual não é responsável, e sabemos com que insistência Freud enfatizou sua espontaneidade no paciente.
Faz algum tempo que os analistas, nas dilacerantes revisões com que nos brindam, preferem insinuar que essa insistência, da qual se fizeram baluartes por muito tempo, traduziria em Freud certa fuga do compromisso pressuposto pela idéia de situação. Como vocês vêem, estamos em dia.
Mas é, sobretudo a exaltação fácil de seu gesto de atirar os sentimentos - imputado à contratransferência - no prato de uma balança em que a situação se equilibraria por seu peso que atesta, para nós, uma consciência pesada que se correlaciona com a renúncia em conceber a verdadeira natureza da transferência".

Fica claro, nesta passagem, que a estratégia está ligada à transferência e que, atenção!, aqui o analista não é senhor. Talvez por isso mesmo seja que durante tanto tempo os analistas tentaram fazer semblante de tela branca, ou até mesmo de indiferença, com a intenção de transmitir uma imagem de domínio. O analista, no que concerne à transferência, está ali como alienado, por este motivo não é um sujeito indeterminado, não é o sujeito puro da teoria dos jogos. Teoria esta da qual Lacan lançou mão para dar conta de suas formulações no início dos anos cinqüenta. Cumpre ressaltar que esta época, os anos cinqüenta, foi muita marcada pelas teorizações de Von Neumann e que temos no texto "A carta Roubada", que abre a coletânea dos "Escritos" um ponto importante deste momento. Ali Lacan faz uma descrição do "jogador ideal" ao mesmo tempo em que o encosta à parede estabelecendo seus limites. Este "jogador ideal" é mencionado um pouco mais à frente para ser criticado. Veremos. Mas, retomando a frase que escolhemos para comentar, ou seja, a da alienação que sofre a pessoa do analista pelo desdobramento que acontece na transferência, vamos perceber o que Lacan contesta da prática analítica como uma situação a dois e, principalmente, onde um Eu fraco se vê compelido por um Eu forte a uma reeducação emocional. Percebem-se, neste movimento, as razões para a tendência à padronização da pessoa do analista, julgando que quanto mais o analista fosse anônimo, invariável, mais ele poderia se prestar à superfície de reflexão, portanto, deixando-se enganar pela "metáfora do espelho" e, "sobretudo, a exaltação fácil de seu gesto de atirar os sentimentos - imputado à contratransferência - no prato de uma balança em que a situação se equilibraria por seu peso que atesta, para nós, uma consciência pesada que se correlaciona com a renúncia em conceber a verdadeira natureza da transferência".
Mas se isto acontecia por se confundir a posição do analista com um objeto passivo da fantasia do analisante, congelando sua posição como pai morto, pai ideal que teria o domínio de seus desejos sendo, portanto, completo e perfeito podendo guiar o analisante pelo Aqueronte sem se deixar molestar por ele. A conseqüência disto era a identificação ao analista, eternizando os laços transferências.
É fundamental o analista saber que o sintoma sobre o qual opera é um sintoma sob transferência. O lugar do analista é denominado por Lacan, a partir do Seminário "A Identificação" como sendo aquele onde habita um Sujeito Suposto Saber exatamente por que o analisante supõe que nada sabe e que seu sintoma tem algo a ser interpretado. Isso indica que o sintoma, tomado na transferência, está sob a égide de uma nova significação da qual o analista é o suporte. O sintoma, na vertente da transferência, inclui o analista na sua constituição, assinalando a ele um lugar no inconsciente: o analista é uma formação do inconsciente, nos diz Lacan. Isso nos permite compreender como o analista pode operar sobre o sintoma, partindo do fato de que ele não é exterior ao objeto sobre o qual vai intervir. O analista, portanto, não pode fazer como um médico que coloca o objeto de sua observação e experiência a certa distância. Talvez por isso pode-se dizer que sempre algo de sua ação lhe escapa. Lacan nunca cansou de afirmar, na contra corrente do que dissemos acima sobre o ideal do analista perfeito, que é muito importante que ele preserve a dimensão imaginária de sua necessária imperfeição, de jeito algum como invariável, sendo ele próprio sujeito às investidas do desejo. Claro que isso só é válido se seu desejo de sujeito não estiver aí implicado fazendo com que uma vacilação calculada da "neutralidade" possa valer como interpretação.
Lacan, já neste texto, apresenta o analista como fazendo parte da fantasia do analisante. É desta forma que ele vai, desde o início, participar do jogo do significante nas formações que o analisante apresenta. Ele surge como uma variável que deve ser levada em conta a partir da estrutura da fantasia. Por isso o analista deve saber, e aí está a dessimetria fundamental em relação à díade amorosa, ele deve saber aonde vai, pois não pode ficar entorpecido pela fantasia do analisante que estabelece as bases da chamada neurose de transferência. Por isso o terceiro termo: a política da psicanálise.

domingo, 19 de maio de 2013

Política, estratégia e tática na Direção do Tratamento (I)

Fazer valer o princípio do “paciente esquecer que se trata apenas de palavras” é considerar que se pode atingir, fazer aparecer a ação sem meta que é aquela onde aparece a marca do gozo, e onde se misturam, por sua vez, verdade e gozo. Ora, o gozo é sem meta, pois não tem outra meta além de si mesmo, o que nos leva a dizer que todo gozo é cínico, pois desconhece o Outro. Lacan, ao citar Ângelus Silesius: “A rosa é sem porque”, define o gozo como o gozo da rosa. Assim, esta frase do texto nos diz que nosso objetivo é fazer aparecer nos ditos do analisante, o vazio que está sob suas ações, e o fazemos com a ajuda da potência da linguagem, do equivoco significante, enfim, tendo em vista o que Freud chamou de sobre-determinação. Em outras palavras, podemos afirmar que é preciso ao menos um duplo sentido para que o analista possa operar sobre o dito do analisante e, exatamente por isso “não (se) justifica que o próprio analista esqueça” que se trata apenas de palavras. 
Trago-lhes um exemplo de minha própria clínica, que considero paradigmático no que se refere à possibilidade de intervenção do analista a partir mesmo do fato de que não se deve esquecer que se trata de palavras: uma paciente busca análise com uma queixa: não consegue concluir o que começa. Suas metas nunca são alcançadas. Ao longo de um tempo, que não foi pequeno, pode-se construir uma história onde pode-se localizar o sujeito submetido a uma fantasia de culpa muito intensa. Fruto de uma relação proibida entre dois primos, a notícia da sua chegada acabou por provocar um crime: O pai de sua mãe matou o pai da analisante. Esta construção nos propiciou, um certo dia, apontar o gozo que sustentava a repetição sintomática (abro parênteses para dizer que a construção é diferente da interpretação, sendo em função daquela que está pode ser comunicada ao analisante). Esta analisante já havia utilizando várias palavras para definir a repetição: não consigo concluir, terminar, acabar, finalizar, etc. No entanto, neste dia ela diz, tão logo se deitou no divã: “eu não consigo arrematar nada!” Como o analista não pode esquecer que se trata de palavras e que palavras não são signos, mas significantes que representam um sujeito para outro significante, foi possível fazer um escanção: “A–ré-matar!” para, em seguida, fazer um corte na sessão. Como resposta à interpretação, foi possível escutar como este sujeito recebeu sua própria mensagem invertida: Ela trouxe a conclusão sob forma de uma pergunta (quem pergunta já sabe a resposta, nos diz Lacan): “Não entendi nada do que aconteceu ontem. Será que você disse aquilo por causa do crime que aconteceu em função do meu nascimento?” Ao operar sobre as possibilidades das palavras, seus equívocos, o analista abre espaço para que as identificações sejam demolidas e novas escolhas possam acontecer a partir da combinatória da linguagem e, ao mesmo tempo desvelar o horizonte do dizer. Este exemplo, assim como outros que podemos encontrar no dia-a-dia de nossa prática, demonstram bem como este lugar da verdade - ou do vazio que o filósofo apenas se apressa em mostrar - é o que vai sustentar o exercício mesmo da função do analista no uso particular que faz da linguagem ao reduzi-lo à sua função de potência combinatória onde uma nova implicação subjetiva vai surgir e uma nova relação ao sintoma se constitui.
É muito importante destacar aqui que utilizar o duplo sentido das palavras com o objetivo de apontar o vazio que se encontra por trás do dito do analisante descarta a idéia do “compreender”. O “não compreender” ou o esquecer tudo que se sabe antes de começar a escuta de um novo candidato à análise (como nos recomenda Freud) é “conseqüência, unicamente, do fato de não haver metalinguagem, isto é, não se poder explicar uma frase a partir de outra definitiva, sem que se reproduza e se continue a possibilidade de nova posição subjetiva”. Quem nos lembra isso é J.A.-Miller em um dos seminários que ditou em Curitiba (27/07/87). Nesta mesma ocasião Miller esclarece que o vazio que está sob a combinatória é onde vamos localizar o sujeito e é onde se localizam as variações da posição subjetiva que nos dizem dos modos de gozo de um determinado sujeito. Para se alcançar esta caixa vazia é preciso por entre parênteses o que o sujeito diz e fazê-lo perceber que suas posições estão modalizadas pelo seu dito. 
Miller conclui a conferência citada respondendo à questão: “Que é o sujeito?” Como é disso que estamos tratando aqui, vou transcrever sua resposta: “É essa caixa vazia, o lugar vazio onde se inscrevem as modalizações, que encarna o lugar de sua própria ignorância, e também o fato de que a modalidade fundamental que deve surgir, através de todas as variações, é a seguinte: “Eu (o paciente) não sei o que digo”. E, nesse sentido, o lugar da enunciação é próprio lugar do inconsciente”.
Se esta segunda subdivisão da primeira parte nos diz de como começa uma análise, a terceira vai tratar da verdade ao final de uma análise. Verifica-se com isso que o movimento de Lacan neste texto é de um ir e vir por onde vai tecendo os meandros da Direção do Tratamento:

“3. Aliás, havíamos anunciado que é pelo lado do analista que tencionamos introduzir nosso assunto.
Digamos que, no investimento de capital da empresa comum, o paciente não e o único com dificuldades a entrar com sua quota. Também o analista tem que pagar:
— pagar com palavras, sem dúvida, se a transmutação que elas sofrem pela operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação;
— mas pagar também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência; e haveremos de esquecer que ele tem que pagar com o que ha de essencial em seu juízo mais íntimo, para intervir numa ação que vai ao cerne do ser (Kern unseres Wesens escreveu Freud [6]): seria ele o único a ficar fora do jogo?
Que não se preocupem comigo aqueles cujos votos se dirigem a nossas armas, ante a idéia de que eu me esteja expondo aqui, mais uma vez, a adversários sempre felizes por me devolverem à minha metafísica.
Pois é no seio da pretensão deles de se bastarem com a eficácia que se eleva uma afirmação como esta: a de que o analista cura menos pelo que diz e faz do que por aquilo que é. Sem que, aparentemente, ninguém peça explicações dessa afirmação a seu autor, nem o lembre do pudor, quando, dirigindo um sorriso de enfado ao ridículo a que se expõe, ou à bondade, a sua (é preciso ser bom, não há transcendência nesse contexto), que ele apela para pôr fim a um debate sem saída sobre a neurose de transferência. Mas, quem teria a crueldade de interrogar aquele que se verga sob o fardo da bagagem, quando seu porte leva claramente a supor que ela está cheia de tijolos?
No entanto, o ser é o ser seja quem for que o invoque, e temos o direito de perguntar o que ele vem fazer aqui.”
O que se pode depreender deste parágrafo é que o analista não será apenas uma tela em branco, uma superfície que se presta à projeção das fantasias do paciente, pois ele também paga seu preço. Se do ponto de vista do imaginário paga com sua pessoa, no que diz respeito ao simbólico o pagamento vai acontecer com palavras e quanto ao real, o pagamento será ao nível do ser, mais especificamente, ao núcleo de seu ser. Este núcleo que é a verdade do final: o que começa como artifício culmina como verdade do ser: sua falta constitutiva. Quando Lacan evoca “o que há de essencial no seu julgamento mais íntimo”, podemos ler como ser referindo ao ser, à verdade do ser e isso concerne ao real, tal como vai ser desenvolvido mais tarde. 
Em outras palavras pode-se dizer que a interpretação é abordada pelo simbólico, daí o pagar-se com palavras;  a transferência é abordada pelo imaginário enquanto que a relação ao ser constitui-se no que vai definir a política da análise: a análise visa o real. Estas três posições serão amplamente discutidas nas próximas três divisões do texto, já que esta que trabalhamos no momento pode ser classificada como introdutória: “Qual é o lugar da interpretação?” tratará do pagamento com palavras; “Qual a situação atual da transferência?” visa tratar da questão do pagar-se com sua pessoa, enquanto que o “Como agir com o seu ser?” vai tratar de saber se analista deve se regular por seu ser ou por sua falta a ser.
O que lhes disse até aqui denota estarmos diante de duas lógicas completamente distintas quando se fala em início e final do tratamento. O que pode ser chamado ao esclarecimento desta passagem se baseia na transferência, ou seja, como vai se opor o real da transferência à ficção do dispositivo ou do enquadre psicanalítico. No entanto, é fundamental não trabalharmos esta questão pelo viés da oposição entre estes dois pólos, mas sim pela dialética que pode aí se estabelecer. Esta dialética vai determinar a direção do tratamento e sua orientação. Para dar conta disso Lacan convoca Clausewitz, um teórico das questões militares e que divide as ações em três planos: a política, a estratégia e a tática. O que vamos destacar agora é como estes três planos estão presentes no processo e para isso vamos à quarta subdivisão desta parte que questiona: “Quem analisa hoje?”

“4. Colocarei novamente o analista na berlinda, portanto, na medida em que eu mesmo o sou, para observar que ele é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu ser.
Intérprete do que me é apresentado em colocações ou atos, decido acerca de meu oráculo e o articulo a meu gosto, único mestre/senhor em meu barco, depois de Deus, e claro, longe de poder avaliar todo o efeito de minhas palavras, mas justamente advertido e procurando prevenir-me contra isso, ou, dito de outra maneira, sempre livre quanto ao momento, ao número e também à escolha de minhas intervenções, a tal ponto que a regra parece ter sido inteiramente ordenada para não atrapalhar em nada meu trabalho de executante, ao que é correlato o aspecto de “material” sob o qual minha ação aborda aqui o que ela produziu.”

Esta passagem se refere à liberdade que o analista tem em relação à interpretação. Ele tem a liberdade de dizer o que tem a dizer. Cumpre ressaltar que Lacan raramente utiliza o termo liberdade, pois ele não considera que o homem seja livre. Na verdade, quando ele se refere ao homem livre ele o faz em relação à psicose, pois o psicótico é o senhor do significante já que escapa da lei fálica. Mas aqui Lacan fala da liberdade tática, da possibilidade do analista ser  “único mestre/senhor em (s)eu barco” mas também advertido de que pode “avaliar todo o efeito de (suas) palavras”. Por isso, em várias ocasiões, ele nos fala que a surpresa do ato acontece tanto para o analisante como para o analista o que vai provocar, no analista, um horror ao ato na medida em que este desvela o real que o envelope formal do sintoma mantém sob proteção. No entanto esta liberdade só se sustenta dentro de uma estratégia. Daí a quinta subdivisão quando a transferência será abordada como a estratégia mesmo da direção do tratamento. 
5. Quanto ao manejo da transferência, minha liberdade, ao contrário, vê-se alienada pelo desdobramento que nela sofre minha pessoa, e ninguém ignora que é aí que se deve buscar o segredo da análise. O que não impede que se creia estar progredindo nesta douta afirmação: que a psicanálise deve ser estudada como uma situação a dois. Decerto se introduzem nela condições que lhe restringem os movimentos, no entanto disso resulta que a situação assim concebida serve para articular (e sem maiores artifícios do que a já citada reeducação emocional) os princípios de um adestramento do chamado Eu fraco, e por um Eu o qual há quem goste de considerar capaz de realizar esse projeto, porque é forte. Que não se enuncie isso sem constrangimento é o que atestam certos arrependimentos de uma inabilidade impressionante, como aquele que esclarece não ceder à exigência de uma "cura por dentro". Mas só é mais significativo constatar que o assentimento do sujeito, por sua evocação nesse trecho, vem apenas no segundo tempo de um eleito inicialmente imposto.
Não e por nosso prazer que expomos esses desvios, mas, antes, para, com seus escolhos, balizas para nosso caminho. 
 De fato, todo analista (nem que seja os que assim se extraviam) sempre experimenta a transferência, no deslumbramento do eleito menos esperado de uma relação a dois que seria como as outras. Ele diz a si mesmo que, nesse aspecto, tem que contemporizar com um fenômeno pelo qual não é responsável, e sabemos com que insistência Freud enfatizou sua espontaneidade no paciente.
Faz algum tempo que os analistas, nas dilacerantes revisões com que nos brindam, preferem insinuar que essa insistência, da qual se fizeram baluartes por muito tempo, traduziria em Freud uma certa fuga do compromisso pressuposto pela idéia de situação. Como vocês vêem, estamos em dia.
Mas é sobretudo a exaltação fácil de seu gesto de atirar os sentimentos — imputado à contratransferência — no prato de uma balança em que a situação se equilibraria por seu peso que atesta, para nós, uma consciência pesada que se correlaciona com a renúncia em conceber a verdadeira natureza da transferência.
Não é possível raciocinar com o que o analisado leva a pessoa do analista a suportar de suas fantasias como com o que um jogador ideal avalia das intenções de seu adversário. Sem dúvida, há também uma estratégia ali, mas não nos enganemos com a metáfora do espelho, por mais que ela convenha à superfície una que o analista apresenta ao paciente. Cara fechada e boca cosida não, têm aqui a mesma finalidade que no bridge. Com  isso, antes, o analista convoca a ajuda do que nesse jogo é chamado de morto, mas para fazer surgir o quarto jogador que do analisado será parceiro, e cuja mão, através de seus lances, o analista se esforçará por faze-lo adivinhar: é esse  o vínculo, digamos, de abnegação, imposto analista pelo cacife da partida da analise.
Poderíamos prosseguir nessa metáfora, daí deduzindo seu jogo conforme ele se coloque “à direita" ou "à esquerda" do paciente, ou seja, na posição de jogar antes ou depois do quarto jogador, isto e, de jogar antes ou depois deste com o morto.
Mas o que há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar possível nesse jogo: o do morto; e que, ao ressuscita-lo, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz.
Eis por que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática."

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Política, estratégia e tática na Direção do Tratamento (I)

Na última postagem trabalhei a “contra-transferência e o lugar do analista” começando por Freud, passando pelos pós-freudianos, para chegar aos primórdios do ensino de Lacan até poder apontar a presença de um novo conceito: o desejo do analista.

Começarei, aqui, pela afirmação que abre a subdivisão dois e aponta a radicalidade do lugar do analista: “O psicanalista certamente dirige o tratamento”. No entanto é preciso destacar: O primeiro princípio desse tratamento, o que lhe é soletrado logo de saída, que ele encontra por toda parte em sua formação, a ponto de ficar por ele impregnado, é o de que não deve de modo algum dirigir o paciente. A direção de consciência, no sentido do guia moral que um fiel do catolicismo pode encontrar neste, acha-se aqui radicalmente excluída. Se a psicanálise levanta problemas para a teologia moral, não se trata daqueles da direção de consciência, a cujo respeito lembramos que a direção de consciência também os suscita“. 
A direção do tratamento é outra coisa. Consiste, em primeiro lugar em fazer com que o sujeito aplique a regra analítica, isto é, as diretrizes cuja presença não se pode desconhecer como princípio do que é chamada “a situação analítica”, sob pretexto de que o sujeito as aplicaria melhor sem pensar nelas.
Essas diretrizes, numa comunicação inicial, revestem – se da forma de instruções, as quais, por menos que o analista as comente, podemos considerar que, até nas inflexões de seu enunciado, veicularão a doutrina com as quais o analista se constitui, no ponto de conseqüência que ela atingiu para ele. O que não o torna menos solidário da profusão de preconceitos que, no paciente, esperam nesse mesmo lugar, conforme a idéia que a difusão cultural lhe tenha permitido formar acerca do procedimento e da finalidade da empreitada.
Isso já basta para nos mostrar que o problema da direção revela, desde as diretrizes iniciais, não poder formular-se numa linha de comunicação unívoca, o que nos obriga a permanecer aí, no momento, para esclarecê-lo pelo que o segue.
Digamos apenas que, ao reduzi-lo à sua verdade, esse tempo consiste em fazer o paciente esquecer que se trata apenas de palavras, mas que isso não justifica que o próprio analista o esqueça ."

É desta forma que Lacan enuncia, em 1958, como se inicia uma análise e, ao enfatizar o termo “direção” associado ao “poder” vai deixar claro que este texto pretende examinar a experiência analítica pelo lado do analista, da posição do analista. O que chama nossa atenção é que esta posição está colocada como a que dirige o tratamento, fazendo alusão clara ao lugar de mestre. Atenção, é preciso escutar isso no “só-depois” que o ensino de Lacan propicia ao trazermos para articular esta passagem o que ele desenvolveu mais tarde ao tratar da estrutura dos quatro discursos. O que se pode dizer da direção do tratamento é que o analista ocupa um lugar dominante numa suposta relação binária na qual existe o mestre e o outro do mestre. Esta estrutura vale para qualquer um dos quatro discursos sendo o que se questiona, fundamentalmente, é como o analista vai ocupar este lugar do mestre (ou de agente do discurso) para que uma análise possa acontecer. Mas o que está escrito nesta segunda parte, e de uma forma bastante clara, é que esse lugar do analista é um lugar de direção e do qual ele exerce um poder. Esta posição de Lacan com respeito à direção do tratamento deixa claro que a experiência analítica não se desenrola em um espaço onde o poder está excluído, está fora, como podemos escutar em outras formas de trabalho, onde se diz que é o paciente quem dirige o tratamento, ou então que devemos trabalhar no sentido da liberação do paciente, etc. Lacan nunca deixou de afirmar que os lugares são bem definidos e que, como já explicitamos antes, quando tratamos da contra-transferência, toda referência à reciprocidade em uma análise é uma piada, pois o que se instala deste o princípio é uma dessimetria radical onde pelo menos um sabe que a relação sexual, - enquanto proporção que faria do encontro uma unidade – é impossível. Essa dessimetria, portanto, só faz trazer a tona o tema da responsabilidade do analista. Por tudo isto é importante explicitar como o analista vai ocupar este lugar de mestria no Discurso do Analista. Paradoxalmente ele o ocupa numa posição avessa ao do Discurso do Mestre, ele o ocupa enquanto objeto pequeno “a”. Essa passagem nos faz repetir o que já dissemos, reforçando a tese de que os fenômenos contra-transferenciais estão longe poderem sustentar uma direção do tratamento pois, são fenômenos que levam em conta a presença do analista enquanto sujeito do inconsciente, estabelecendo a simetria entre analista e analisante. Esta posição de mestria a partir do objeto pequeno “a” como causa de desejo marca uma divisão radical na prática da psicanálise
Continuando nosso comentário, Lacan vai dizer da verdade da enunciação da regra analítica ao afirmar que tudo vai acontecer dentro de um quadro que nada mais é do que um artifício. Trata-se, portanto, de um artifício e não de uma imaginarização do simbólico como acreditavam os psicanalista à época. Esta é uma regra que enuncia que somente estarão em jogo palavras. E, mais importante, estas palavras estão aí para fazer lembrar que o analista “de que não deve de modo algum dirigir o paciente”. Mas dirigir o tratamento fazendo “com que o sujeito aplique a regra analítica”. E ele o faz trazendo em seu enunciado os princípios da “doutrina com as quais o analista se constitui, no ponto de conseqüência que ela atingiu para ele”. Isto nada mais é do que assinalar a importância de se formular para o paciente a regra analítica fundamental, mesmo estando cientes de que hoje, a psicanálise está muito (diria até excessivamente) difundida pelo público. Esta atitude não implica que vamos doutrinar o paciente, mas sim suscitar nele a implicação subjetiva, ou seja, modificar suas relações com o real para que possa se constituir uma nova relação do paciente com seu sintoma. Já dissemos, em outra ocasião que o paciente chega à análise quando o seu sintoma falha. Mas também é importante saber que o sintoma do paciente não vai emergir a partir do diagnóstico que fazemos, mas sim ao longo do percurso do tratamento, a partir mesmo da confissão do paciente. Em outras palavras este primeiro tempo, que é o tempo das entrevistas preliminares, é o tempo que equivale à critica de Hegel à bela alma, aquela que jura inocência acusando a desordem do mundo, enquanto que, de fato, ela mesma tem parte eminente naquilo que denuncia. 
Esta implicação, para continuar nesta trilha, é que vai estabelecer que ao reduzir à sua verdade, esse tempo (de análise) consiste em fazer o paciente esquecer que se trata apenas de palavras, mas que isso não justifica que o próprio analista o esqueça”. Esta formulação antecipa o que mais tarde vai ser explicitado como um movimento que visa separar verdade e gozo. Isto é possível por fazer surgir no meio do sentido apresentado, o vazio que contem todos os ditos do analisante. O analista tenta fazer surgir esse vazio através das diferentes declinações das identificações que os analisantes apresentam. Em primeiro lugar, ele chega até o tratamento dizendo de sua existência, de suas ações, suas atividades pessoais e/ou profissionais pois, aquele que busca análise é, sem dúvidas, um homem do nosso tempo: um homem que vive em função de metas e objetivos a alcançar. Por isso é que, na maioria das vezes ele nos traz uma queixa que denota sua preocupação em não conseguir o que esperava e que se esgota nas muitas tentativas de obter sucesso em suas empreitadas. Eric Laurent (Laurent, E., "Lãs paradoras de lá identificación". Colección Orientación Lacaniana, EOL. Paidós. Buenos Aires, 1999)  nos lembra, citando Heidegger, que a nossa época está marcada pelo desgaste das matérias primas, inclusive a humana, “uma matéria que se esgota em benefício de uma produção técnica da possibilidade absoluta de fabricar tudo”. Todo esse esforço só vai produzir doenças de várias espécies e que tem como eixo o famoso “Fulano se mata trabalhando”. Em outras palavras, o que vemos acontecer, como assinala Laurent, é a presença cada vez mais intensa do “homem-dejeto”, aqueles que já não servem mais para a produção. Ainda acompanhando Laurent com Heiddeger pode-se destacar que tudo isso acontece apenas para mascarar “o vazio total do ‘sendo’ onde estão suspensos os tecidos do real”. Percebe-se claramente a menção ao tecido significante que esconde ao mesmo tempo que mostra a trama que se sustenta na estrutura da fantasia fundamental onde vê-se articular um sujeito – efeito do significante – e o objeto pequeno “a” – produto da estrutura significante que constitui o pouco de realidade na qual vivemos. Esta menção a Heidegger e ao “vazio do sendo” é outra maneira de dizer que “existe uma ação sem meta que é o segredo de todas essas ações com meta”. 

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sobre a contra-transferência e o lugar do analista II

            Antes que Lacan pudesse tratar esta questão, como veremos mais abaixo, existiu um período em que a contra-transferência foi usada e abusada como técnica por várias correntes psicanalíticas. Entre elas, as que seguiram a trilha aberta por M. Klein e a chamada Psicologia do Ego, inventada pelo trio de Nova York, como eram chamados os psicanalistas Kris, Hartmann e Lowestein (este último analista de Lacan). O abuso do conceito de contra-transferência alcança seu ápice quando, nos anos 50 descreve uma nova estrutura: a neurose contra-transferencial, termo cunhado por Heinrich Racker para dizer dos perigos de não se utilizar os sentimentos contra-transferenciais  para dirigir o tratamento.

Como se trata de uma matéria por demais extensa e que nos desviaria muito do nosso objetivo, vou citar aqui apenas algumas referências bibliográficas que podem ser consultadas: Heinrich Racker, Transference and Counter-Transference; Paula Heimann, On counter-transference; e um artigo de Margareth Little, A resposta total do analista nos cuidados de sue paciente que Lacan cita no Seminário A angústia.

 Lacan, por sua vez, começa logo a tratar deste tema. No princípio nós o vemos analisar a contra-transferência de Freud em relação à Dora texto Intervenção sobre a transferência, mencionado acima - : Freud, em razão de sua contra-transferência retorna constantemente sobre o amor que o Senhor K inspiraria em Dora e é singular ver como ele interpreta sempre no sentido da confissão das respostas, no entanto, muito variadas que lhe oponha Dora.

Neste texto de 1951, Lacan assim define a contra-transferência: Pode-se, aqui considerar como uma entidade relativa à contra-transferência definida como a soma dos preconceitos, das paixões, dos embaraços, talvez de informação insuficiente do analista em tal momento do processo dialético. Para, logo em seguida afirmar: Dito de outra forma, a transferência nada é de real no sujeito, senão a aparição, em um momento, da estagnação da dialética analítica, dos modos permanentes segundo os quais ele constitui seus objetos. (Leia-se atualização da fantasia fundamental na transferência)

Em seu Relatório de Roma ele assim se refere à contra-transferência: Existe aí um longo caminho técnico a retomar e, de início em suas noções fundamentais pois a confusão está no seu ápice e temos que separar o joio do trigo no que respeita à contra-transferência, se ela parte de uma boa intenção, ela apenas traz um barulho a mais.

Mais abaixo, neste mesmo texto, vemos um Lacan freudiano referir-se à importância da contra-transferência ligada a formação do psicanalista. Aqui o acento vem do embaraço do término do tratamento, que se reúne àqueles do momento em que a psicanálise didática termina na introdução do candidato à prática.

Ao retomar o caso Dora, no Discurso de Roma, Lacan vai reafirmar sua posição quanto à contra-transferência ao dizer que é um termo cujo emprego correto, a nosso ver, não pode ser estendido para além das razões dialéticas do erro.

Em Variantes do tratamento Padrão encontra-se, mais uma vez, uma crítica ácida ao emprego da contra-transferência e, mais uma vez, um alerta sobre os efeitos que desviam a atenção do praticante de sua intervenção maior (referência à interpretação): Efeito que responde essencialmente à noção de contra-transferência, nisso que o analista deixa de considerar a ação que lhe retorna na produção da verdade..

Poderíamos seguir por esta trilha, examinando cada um dos fragmentos onde Lacan menciona a contra-transferência, mas vou preferir dar um passo e apresentar como Lacan sustentou o seu conceito de intersubjetividade, ali onde se falava de contra-transferência. Para tanto, vou ler um fragmento de uma entrevista feita com Lacan em 1966[1] quanto lhe foi feita a seguinte pergunta: Segundo você, qual a relação que existe entre a relação de objeto e as relações entre os sujeitos (intersubjetivas)?" Cumpre ressaltar que esta entrevista foi feita muitos anos depois de Lacan ter abandonando este conceito como sustentáculo de sua prática, o que começa a acontecer exatamente na época em que escreve A Direção do Tratamento... e, exatamente a partir de um novo conceito - o objeto pequeno a a sua segunda formulação clínica começava a se esboçar.

 

Evidentemente, este objeto particular que chamei objeto pequeno a não adquire sua incidência na intersubjetividade, mas ao nível do que se pode chamar a estrutura do sujeito, mantendo presente que o termo sujeito se articula e se define por meio de ligações determinadas, formalizáveis segundo as quais, na sua origem, o sujeito é efeito do significante. É a incidência do significante que constitui o sujeito, ao menos o sujeito definido, articulado à incidência na qual ele está interessado, quer dizer, o sujeito que nos é necessário para dar lugar à realidade. Porque é a ordem que determina o inconsciente. Na medida em que demandamos de um sujeito que não lance mão das metáforas banais nem das franjas do erro para definir o inconsciente, esta estruturação do sujeito nos obriga, para dize-lo assim, a não considera-lo tecido da mesma tela que o objeto pequeno a. Tela é um termo que precisa ser entendido literalmente. Por princípio nos referimos aqui a algo que nos induziu a construir, nesses últimos anos, uma topologia. Conseqüentemente, a relação de objeto não se situa ao nível da intersubjetividade enquanto esta permanece, por exemplo, implicada na dimensão da reciprocidade (na psicologia de Piaget, a intersubjetividade é absolutamente fundamental e transcendental). Foi útil começar por determinar o tipo de forma, de modelo grosseiro no qual se articulou o pensamento dos analistas médicos (pessoas, eu posso afirma-lo, a quem falta muito da dimensão da cultura). No período de entre duas guerras, introduzimos a noção da intersubjetividade como uma espécie de barreira de fumaça, ou como uma ponte em direção ao que é um problema de outro gênero, para aqueles que tiveram o trabalho de ler Freud: aquele da estrutura intrasubjetiva. Mas, precisamente o termo, desde que ele opõe inter e intra, pode nos conduzir a uma via sem saída, a identificações aproximativas, por exemplo, a considerar as estruturas como aquelas que Freud introduziu com tanta precisão, de nuances e com tanta finesse[2], que são aquelas que nos propomos elaborar, a considerar o eu, o ideal do eu, o super eu como unidades autônomas funcionando no interior de não se sabe qual sistema, talvez de um meio comum não bem identificado (e que foi convencionado chamar sujeito). E vemos hoje aqueles que, nesta ocasião, pensavam que faziam avançar a psicanálise, chamando-os, segundo o contexto anglo-saxão Self. É útil promover estruturas infinitamente mais complexas que permitem dar conta do resultado da análise. O que quer que seja, eles não poderiam de qualquer maneira se fundar sobre o conceito de totalidade que alguns autores, e autores celebres e mesmo geniais no domínio psicanalítico promoveram para dar provas de não sei qual tipo de abertura mental ou para colocar a la page, na moda, algumas idéias que no domínio fenomenológico estão mais ou menos no ar. Na realidade não há nada tão contrário à experiência especificamente analítica, e tão apta, ao mesmo tempo, em ocultar sua verdadeira originalidade. Em uma palavra, a relação de objeto se situa, não sobre o plano intersubjetivo, mas sobre aquele das estruturas subjetivas, que serão, em todo caso, aquelas que nos conduzirão ao questionamento da intersubjetividade.

É esta passagem pelo objeto a, como afirmamos acima, é que vai estruturar de forma mais consistente a nova formulação de Lacan sobre a transferência e poder desenhar a função do desejo do analista como o verdadeiro operador da análise. Esta passagem esclarece porque Lacan chegou a retratar-se publicamente com respeito à sua posição em relação a intersubjetividade. Isto ocorreu numa ocasião muito importante: A Leitura da Proposição de 9 de outubro sobre o Analista da Escola para seus colegas da Escola Freudiana de Paris. Ali ele diz o seguinte: Quem é que, ao ter uma visão da transferência, poderia duvidar que ela seja a referência mais contrária à idéia de intersubjetividade?

Isto a ponto de que eu pudesse me surpreender que nenhum praticante que seja advertido não me tenha feito objeção hostil, ou quem sabe amigável. Este teria sido o momento de assinalar para que aí se pensasse, que eu deveria lembrar, de início, o que implica da relação intersubjetiva o uso da palavra.

É por isso em todas as extremidades do campo de meus Escritos, eu indico minha reserva com respeito ao emprego da tal intersubjetividade por este tipo de universitários que não sabem sair de sua toca, senão agarrando-se a termos que lhe parecem levitatoires, na falta de apreender sua conexão ali onde eles servem.

É verdade que esses são os mesmos que favorecem a idéia de que a práxis analítica está feita para abrir nossa relação ao doente para a compreensão. Complacência ou mal-entendido que falseia nossa seleção de saída, onde se mostra que eles não perdem totalmente o norte quando se trata da materialidade.

Acontece que neste mesmo texto Lacan vai desenvolver o matema da transferência que nos permite formalizar este laço social que é o discurso do analista. Ele o faz, sem dúvida nenhuma, baseado nos princípios que ele mesmo descreveu na entrevista que transcrevemos acima, ou seja, neste objeto particular que chamei objeto pequeno a  não adquire sua incidência na intersubjetividade, mas ao nível do que se pode chamar a estrutura do sujeito, mantendo presente que o termo sujeito se articula e se define por meio de ligações determinadas, formalizáveis segundo os quais, na sua origem, o sujeito é efeito do significante.

Nosso próximo passo seria a elaboração do conceito o desejo do analista. Prefiro deixa-lo para mais à frente, quando Lacan vai escreve-lo, pela primeira vez, - digo escreve-lo, pois não pude pesquisar se nos seminários ele menciona este conceito antes deste momento - no texto A direção do tratamento .... Assim ele descreve o lugar do desejo do analista na segunda parte da quarta seção deste escrito: Uma ética deve ser formulada que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar no seu lugar a questão do desejo do analista.



[1] Fragmento publicado por Jorge Baños Orellana, De lhermétisme de Lacan. Figures de sa transmission, Paris, E.P.E.L. 1999, page 92.
[2] Deixo aqui o termo finesse pois o considero mais adequado do que finura. Sabemos a uso que se faz desta palavra em francês em nosso linguajar