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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Sobre a experiência do Inconsciente (I)

A experiência que Lacan tem do inconsciente não é empirista, mas se ocupa do que já está aí, do que é prévio e do que condiciona toda experiência possível para o sujeito: a linguagem, que está no lugar, reservado por Descartes, às ideias inatas.

De modo que a experiência se desdobra diante da linguagem e sua estrutura. A estrutura condiciona a experiência e se interpõe entre esta e o sujeito vazio, deixando claro que o saber de todos e cada um, como saber inconsciente, é que não há relação sexual. E nenhuma experiência virá desmentir este axioma inscrito pela linguagem mesma. Assim se entende que Lacan, em seu texto "Televisão", nos diz que estava falando para o homem comum: o homem comum é aquele para quem é verdade que não há relação sexual. Ainda que o homem comum não compreenda, de toda maneira, já sabe.
 
Há que distinguir da linguagem do inconsciente que vale para todos e é, no fundo, nosso universal, o discurso do analista que, de maneira nenhuma, pode pretender ser equivalente.

O inconsciente está estruturado como uma linguagem e o inconsciente é o discurso do Outro não são duas fórmulas equivalentes. É preciso acrescentar que o último corte produzido no ensino de Lacan passa, precisamente, entre ambos. O fato de que o inconsciente seja linguagem não implica forçosamente que seja discurso. A divisão está acompanhada pela distinção entre gozo e desejo e a preeminência do gozo na teoria do desejo. De modo que  quando se diz que o inconsciente é linguagem acentua-se o gozo e ao se colocar em primeiro plano o discurso do inconsciente a preponderância é ao desejo.

No texto A Instância da Letra, os matemas, as fórmulas da metáfora e metonímia se baseiam no significante, termo que todavia não se distingue claramente da letra. Será em "Televisão" que Lacan vai introduzir o conceito de signo para incluir a letra e o significante: o significante é o signo na medida em que tem efeito de sentido, enquanto a letra é o signo considerado por seu efeito de gozo. Assim, se o ponto de vista do significante nos conduz de imediato à teoria da comunicação e a implicar o Outro na linguagem, o ponto de vista da letra é, pelo contrário, autista; é a perspectiva de um gozo que não se dirige ao Outro.

O gozo, na medida em que concerne ao objeto "a" e não ao Outro, é pseudo sexual.

É a passagem da função da palavra ao campo da linguagem que permitiu a Lacan introduzir neste último a função, a instância da escritura. 

Tudo o concernente ao "sinthoma", a nova doutrina do sintoma, supõe a formulação de que o inconsciente escreve, que isso se escreve.

O inconsciente escreve e no inconsciente "Isso" se escrever foi o que permitiu a Lacan aproximar-se de Joyce e poder ver comprovada sua tese que o inconsciente se escreve. O sintoma, desde o texto Função e Campo da Palavra e da Linguagem já estava referido a um processo de escritura, ficando a palavra insuficiente para dar conta de sua consistência.

Consequência natural desde desenvolvimento foi estabelecer em “Televisão” que “na medida em que o inconsciente está interessado, a linguagem introduz as vertentes do sentido e do signo”.

A Linguistica, ao contrário da psicanálise, prescindiu-se do fato que o inconsciente aí está interessado ao trabalhar o significante e o significado. Foi, portanto, com Lacan que este fator foi recuperado e, com ele, pode-se esclarecer que o termo mensagem, concernente ao sintoma, está diretamente dependente da distinção entre o significante e o significado. Esta distinção foi o que levou Lacan a tentar esclarecer (me refiro aqui aos seu primeiros escritos, principalmente Função e Campo...) que a análise operava pelo sentido dado pelo preenchimento das lacunas da história do sujeito pelas interpretações. Seriam pedaços desta história, experiências que haviam permanecido não assimiladas, que seriam integradas. Esta forma de trabalhar, no entanto, implicava que a experiência analítica fosse abordada a partir do sentido, o que deixa a posição do analista como o senhor da verdade. (Em Função e Campo Lacan chega mesmo a dizer que o analista está no lugar de onde se decide o sentido) É importante ressaltar aqui que sempre que tratamos do sentido o que está implicada é uma relação com a verdade que se coloca antinomicamente ao Real. Esta distinção é fundamental se queremos chegar a alguma conclusão com respeito a identificação ao sintoma no final da análise.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O Trabalho e o Amor (II)

Quanto ao que tantas vezes se fala: liquidar a transferência, será que na verdade o que isto aponta é para liquidar o sujeito suposto saber?
Este sujeito suposto saber alguma coisa de você, mas que na verdade não sabe nada pode ser considerado liquidado no momento quando, ao final da análise ele começa exatamente, sobre você pelo menos, saber um pouco. “É pois no momento onde ele toma mais consistência, que o sujeito suposto saber deverá ser suposto vaporizar. ... se o termo liquidação tem um sentido, a liquidação permanente do que se trata é deste engano por onde a transferência tende a se exercer no sentido do fechamento do inconsciente.” Este mecanismo se refere à relação narcísica, por onde o sujeito se faz amável. “De sua referência àquele que deve lhe amar, ele tenta induzir o Outro numa relação de miragem onde ele o convence de ser amável.”
A identificação especular, imediata é apenas a sustentação da identificação que está em jogo aqui. Ela sustenta a perspectiva do sujeito no campo do Outro, de onde a identificação especular pode ser vista sob um aspecto satisfatório. “O ponto do Ideal do eu de onde o sujeito se verá, como se diz, visto pelo outro - isso que lhe permitirá se suportar numa situação dual, para ele satisfatória do ponto de vista do amor. Entanto que miragem especular, o amor tem a essência de engano.” É aqui que se instala o único significante necessário a introduzir uma perspectiva centrada sobre o ponto do Ideal: I. Este ponto, para que possa se tornar o ponto de visada tem necessariamente de se referir ao objeto ‘a’, desta forma, teremos neste ponto, onde se instala o sujeito suposto saber, um I(a).
É nesta convergência onde a análise é chamada pela sua face de engano na transferência que algo de paradoxal acontece: a descoberta do analista. Isto só é compreensível se nós o situamos na ordem da relação de alienação. No entanto o ponto de vista do analisante é algo para além disto que se apresenta como traço de onde ele poderá ser visto como amável. Portanto é como se o analisante dissesse a seu parceiro, ao analista: Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente eu amo em ti qualquer coisa mais do que tu - o objeto ‘a’, eu te mutilo.” Podemos continuar com esta suposta fala do analisante que, apesar do acento oral, nada tem a ver com a amamentação, mas sim com a mutilação: Eu me dou a ti, mas este dom de minha pessoa - mistério! se transforma inexplicavelmente em um presente de merda.
Quando esta virada é obtida com a elucidação interpretativa, compreende-se a vertigem da página branca, desta barragem sintomática de todo acesso ao Outro.
Podemos instalar aqui o primeiro andar do Grafo: do ​s(A) ao A.
 
O que se passa quando um sujeito começa a falar ao analista: na verdade é a ele que é oferecido algo que vai, de início, necessariamente, se formar em demanda que define, quaisquer que sejam suas necessidades, organizar seu menu das pulsões. Pulsões que se apresentam em sua relação ao objeto parcial.
Quanto ao analista, não é suficiente que ele suporte a função de Tirésias, é preciso ainda, como o diz Apollinario, que ele tenha mamas. “Eu quero dizer que a operação e a manobra da transferência são reguladas de maneira a manter a distância entre o ponto de onde o sujeito se vê amável, - e este outro ponto onde o sujeito se vê causado como falta pelo objeto ‘a’, e onde o objeto ‘a’ vem tampar a brecha que constitui a divisão inaugural do sujeito.
O pequeno ‘a’ não ultrapassa jamais esta brecha. Reportem-se ao termo o mais característico a apreender a função própria do objeto ‘a’: o olhar. Este objeto se apresenta, justamente, no campo da miragem da função narcísica do desejo, como o objeto ilegal, se podemos dizer, que permanece atravessado na garganta do significante. É neste ponto de falta que o sujeito tem onde se reconhecer.
Se tomamos o oito interior como a figura topológica que melhor diz desta situação que acabamos de descrever, vamos verificar que uma linha atravessa a curva por um ponto a ser determinado. Esta linha travessa, é para nos isso que pode simbolizar a função da identificação.
Todo trabalho que conduz o sujeito, que se diz em análise, a orientar seu propósito no sentido da resistência da transferência, do engano do amor, bem como o da agressão promove algo do fechamento, demonstrado pela própria curva que gira em direção ao centro: a identificação como conceito de fim de análise.
Mas existe um para-além desta identificação, e este para-além é definido pela relação e a distância do objeto ‘a’ ao grande I idealista da identificação.
Assim como tambêm existe uma diferença essencial entre o objeto definido como narcísico, o i(a), e a função do a.
Para concluir digo que, se a transferência é isso que, da pulsão, afasta a demanda, o desejo do analista é o que aí faz retornar a demanda. E por esta via, ele isola o objeto ‘a’,  ele o coloca à maior distância possível do Ideal ao qual o analista é chamado a encarnar. É desta idealização que o analista deve cair para ser o suporte do objeto ‘a’ causa de desejo, separado do Ideal.
Portanto, é para-além da função do objeto ‘a’ que a curva se fecha, aí onde ela não é jamais dita no que concerne à saída da análise. A saber, "após a distinção do sujeito em relação ao objeto ‘a’, a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão."
Por tudo isto que acabo de dizer afirmo, com Lacan que o desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado ao significante primordial, o sujeito vem pela primeira vez em posição de aí se assujeitar. Aí somente pode surgir a significação de um amor sem limite, porque ele esta fora dos limites da lei, onde somente ele pode viver.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O trabalho e o amor (I)

Hoje inicio uma nova etapa de postagens no Blog. 
Continuarei a respeitar seu objetivo primordial que é levar a público minhas idéias concernentes à teoria e à prática da psicanálise de Orientação Lacaniana.
O que muda é a forma como os temas serão abordados. 
Até aqui fiz uma leitura sequencial, capítulo a capítulo do texto "A direção do tratamento e os princípios de seu poder". Agora vou trabalhar, a cada vez, uma ou várias questões que se apresentarem coerentes com a leitura do momento.
Serão textos que poderão, ou não, terem uma sequência mas, estou certo, sempre suscitarão aberturas para se pensar essa psicanálise inventada por Freud que Lacan pode reinventar partindo de uma leitura muito especial.

Convido-os a participarem com comentários para que se possa ter, aqui, um espaço de discussão produtiva.

À pergunta que lhe fez M. Safouan sobre a diferença entre o objeto na pulsão e no desejo, Lacan responde que, na verdade  trata-se apenas de uma questão de terminologia. “Os objetos que estão no campo do Lust tem uma relação tão fundamentalmente narcísica com o sujeito, que ... o mistério da pretensa regressão do amor, na identificação, tem sua razão na simetria desses dois campos: Lust e Lust-Ich. O que não se pode guardar fora, tem-se sempre a imagem, dentro: a identificação ao objeto de amor.” Assim Lacan define, em poucas palavras o “objeto de amor”.
No entanto, há uma diferença fundamental entre você dizer “eu amo um guisado de carneiro” e “eu amo fulana de tal”. Esta diferença não está, nem na forma, nem no fato de você dizer, mas sim no fato de você poder dizer isto à fulana de tal.
A bela açougueira ama o caviar, mas ela não o quer. É por isso que ela o deseja. “Compreender que o objeto do desejo, é a causa do desejo, e esse objeto causa do desejo, é o objeto da pulsão - quer dizer o objeto em torno do qual gira a pulsão." Não quer dizer que o desejo se enganche ao objeto da pulsão - o desejo aí faz volta, na medida em que ele está agindo na pulsão. Mas nem todos os desejos, forçosamente agem na pulsão. Há também os desejo vazios, os desejos tolos, que partem justamente disso - trata-se do desejo disso que, p. ex. você está se defendendo. ... o que não deixa você fazer outra coisa senão aí pensar.
 
 
Lacan vai trabalhar o que ele considera o eixo, uma noção fundamental do seminário XI: a dustuchia, o mal-encontro. E ele o faz começando por interrogar “qual é ordem de verdade que nossa práxis engendra?”
Para tentar responder esta pergunta, ele percorreu os quatro conceitos de base: o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão. Mas é na exploração do conceito de transferência, que encerra este seminário, que podemos colocar, com Lacan, a questão que vai nortear este último capítulo: “como nos assegurar que não estamos na impostura?”
Todo o caminho feito para diferenciar o objeto de amor, do objeto na pulsão e no desejo visa exatamente fazer avançar o que há de verdade na práxis psicanalítica.
Esta colocação em questão da análise faz sentido se levarmos avante o que está em suspenso não só na opinião, mas na vida íntima de cada psicanalista, a impostura plana, contra a qual o psicanalista se arma de um certo número de cerimonias, de formas de ritos.
Este questionamento repete o que os Homens das luzes, que também foram os homens do prazer, fizeram quando questionaram a religião como uma impostura, no século XVI. Isto não impediu que a religião goze ainda de um respeito universal.
O que se coloca neste ponto é a crença, que impõe uma alienação fundamental. “É só no momento onde a significação da crença parece, o mais profundamente, se esvanecer, que o ser do sujeito vem à luz do que era, falando propriamente, a realidade desta crença”.
O final da Idade Média foi marcado por uma separação entre a ciência e a religião, tirando aquela dos grilhões da fé.  Foi São Tomás de Aquino quem abriu as portas para que pudéssemos sair da Igreja, da prática de alienação fundamental na qual de sustenta toda crença, ao retomar Aristóteles na tentativa de cristianizá-lo, buscando a grande síntese da fé e do conhecimento. O que propiciou esta associação foi exatamente o fato de Aristóteles acreditar na causalidade. Assim, tanto para São Tomás, quanto para Aristóteles, podemos dizer que há uma causa primordial que coloca em marcha todos os processos da natureza.
É porque a ciência se situa neste ponto preciso da separação é que ela pôde sustentar o modo de existência do sábio, do homem da ciência. 
Ameaçado, então, pela religião, o cientista teve que se manter ao abrigo de questões que a própria ciência lhe colocava. Isto do ponto de vista social, já que quanto ao estatuto a dar ao corpo da aquisição cientifica, era uma tarefa mais simples.
“Este corpo da ciência, só podemos conceber o alcance ao reconhecer que ele é, na relação subjetiva, o equivalente a isso que chamei aqui o objeto pequeno ‘a’.”
Por isso é que à questão do que é, na psicanálise, redutível ou não à ciência se explica, em efeito, num para-além da ciência - tomamos A ciência aqui no sentido moderno, a partir de Descartes. Este para-além é o que pode levar a psicanálise a ser classificada no grau da Igreja, portanto, como uma religião.
A única maneira de abordar este problema é partir disso que a religião, entre os modos do homem de colocar a questão de sua existência no mundo, e mais além, a religião como modo de subsistência do sujeito que se interroga, se distingue por uma dimensão que lhe é própria, e que é marcada por um esquecimento. - Aí é que entra o sacramento, como algo de operatório.  “Não podemos evocar esta dimensão operatória sem nos percebermos que no interior da religião, e por razões perfeitamente definidas - separação, impotência de nossa razão, de nossa finitude - é isso que é marcado do esquecimento”.
Este esquecimento também marca a psicanálise que encontra, na cerimônia, no ritual, isso que podemos chamar de mesma face vazia.
“Mas a psicanálise não é uma religião. Ela procede do mesmo estatuto que A ciência. Ela se engaja na falta central onde o sujeito se experimenta como desejo. Ela tem o mesmo estatuto mediador, de aventura, na brecha aberta no centro da dialética do sujeito e do Outro. Ela não tem nada a esquecer, pois ela não implica nenhum reconhecimento de alguma substância sobre a qual ela pretende operar, nem mesmo sobre a sexualidade.”
Aliás, sobre a sexualidade ela opera quase nada, ainda não inventou nada de novo à operação sexual. “A psicanálise só toca a sexualidade na medida em que, sob a forma da pulsão, ela se manifesta nos desfiladeiros do significante, onde se constitui a dialética do sujeito no duplo tempo da alienação e da separação. ... a psicanálise não tem, sobre o campo da sexualidade ... promessas, ela não tem porque não é seu terreno.”

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

“O lugar do desejo na direção do tratamento”

Hoje chegamos ao final de um longo percurso no qual foi possível trabalhar, passo a passo, o texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” de Jacques Lacan. Neste percurso procuramos traçar os caminhos que levaram Lacan a abandonar algumas posições, assim como a criar novas possibilidades no que concerne à direção do tratamento analítico. Buscamos tratar os conceitos que aqui surgiram em sua origem, nos textos de Freud e leva-los até o ponto em que Lacan os deixou no final de seu ensino, sem nos esquecermos do trabalho que vem sendo feito por JAMiller, Éric Laurent e outros colegas.
A conclusão deste nosso percurso se sustenta no trajeto do Grafo do Desejo, tal como Lacan o desenvolveu no Seminário VI e no texto “A subversão do sujeito...” Ali vamos poder concluir sobre o lugar do desejo e seu destino no final de uma análise.
Lacan nos chama a atenção para “a importância de preservar o lugar do desejo na direção do tratamento” e de sua orientação em relação aos efeitos da demanda. No Grafo, verificamos onde se localiza a articulação do sujeito à demanda em seqüência ao pequeno “d”. Este pequeno “d” diz, em primeiro lugar, do desamparo ao qual o sujeito se vê submetido pela sua própria condição de nascer na mais absoluta dependência ao Outro. É desta posição, também, que decorre a articulação da demanda à necessidade.
O desejo, portanto, vai “transparecer na demanda”, mas seu lugar é mais além, assinalando que nada adianta sua satisfação para se ter acesso à mensagem endereçada pelo sujeito. A mensagem nasce no lugar do Outro e cabe apenas ao sujeito saber “a marca que recebe de seu dito”, sendo que é a partir desta marca que pode ser reaberto o caminho ao seu desejo. Esta marca nós a conhecemos como traço unário, aquele que se constitui no centro mesmo da constituição do sujeito e, por isso mesmo, na formação do sintoma e da demanda. 
Lacan nos chama a atenção para o fato de que o desejo, no final das contas, “nada é senão a impossibilidade da fala”,  da mensagem, sendo que ela apenas reduplica no campo do Outro a marca primeira que diz que este sujeito é apenas um sujeito. O discurso do mestre nos diz disto ao explicitar que o sujeito é apenas representado por um significante para outro significante.
Por isso torna-se infrutífera toda tentativa de “reduzir a demanda a seu lugar”, mesmo que isso, aparentemente, reduza o desejo “através da atenuação da necessidade.”
Lacan, em seguida, retoma a questão da transferência e, mais uma vez, nos lembra que a identificação com o significante onipotente da demanda acaba por ser um empecilho ao tratamento, pois reduz a transferência à sugestão. No entanto, esta é diferente da identificação ao objeto da demanda de amor: “A identificação com o objeto como regressão, por partir da demanda de amor, abre a sequência da transferência, ou seja, a via em que poderão ser denunciadas as identificações que, detendo a regressão, a escandem”. Entendo o objeto da demanda de amor como sendo o nada, o semblante que porta em seu seio o Agalma.
Os conceitos de transferência e sugestão são, então, retomadas para levar-nos ao “desejo”: “A resistência do sujeito, quando se opõe à sugestão, é apenas desejo de manter seu desejo. Como tal conviria incluí-la na categoria de transferência positiva, já que é o desejo que mantém a direção da análise, fora dos efeitos da demanda”. Esta afirmação é muito importante, pois dá o tom da diferença entre a clinica lacaniana e as que lhe precederam, abrindo o campo para tratar a formação dos sintomas.
Lacan retoma o conceito de sobreterminação dos sintomas para tratar da questão da fantasia fundamental,  definido esta como uma “imagem utilizada na estrutura significante”: “digamos que a fantasia, em seu uso fundamental, é aquilo mediante o qual o sujeito se sustenta no nível de seu desejo evanescente, evanescente na medida que a própria satisfação da demanda lhe subtrai seu objeto”.
É a fantasia, portanto, que determina a reposta do sujeito à demanda, ou seja à significação de sua necessidade. Voltemos ao andar inferior do Grafo, depois que apontamos o lugar do desejo. Fica mais claro, agora, que este circuito mais amplo traz à significação do Outro um outro estatuto, pois coloca em cena, além da demanda, os limites do ser, “fazendo com que o sujeito se interrogue sobre sua falta, na medida em que ele aparece a si mesmo como desejo.”
Esta articulação teórica permite a Lacan revisar os conceitos de passagem ao ato e acting out, que foram utilizados das mais diversas maneiras pelos analistas em uma certa época: “recaída do sujeito” ou “falha do terapeuta.”
Para não cair no engodo de uma interpretação falaciosa da realidade, é preciso que o analista capte a transferência na distância que se define entre a fantasia e a chamada resposta adaptada. Daí uma lembrança à feiticeira Circe da Odisséia de Ulisses. Ainda nesta linha ele faz uma alusão aos Estábulos de Augias , se perguntando quem é que vai limpar a grande sujeira que se fez com toda essa parafernália imaginária.
Um pequeno resumo, fornecido pelo próprio Lacan no início da parte 18 merece ser trabalhado. Ele nos adverte sobre um poder infinito: o poder de fazer o bem e o diferencia do que se trata em uma análise: “da verdade, ou seja, da única, da verdade sobre os efeitos da verdade”. Édipo renuncia ao poder no momento em que envereda pelos caminhos da verdade.

1 – “Que a fala tem aqui todos os poderes, os poderes especiais do tratamento;”
Podemos retomar a importância do significante e da forma como Lacan o subverteu a partir de Saussure para saber como ele desenvolveu o que costumamos chamar de andar inferior do Grafo, aonde código e mensagem vão se enlaçar determinando uma significação onde o sujeito acaba por ficar preso.

2 – “Que estamos muito longe, pela regra, de dirigir o sujeito para a fala plena ou para o discurso coerente, mas que o deixamos livre para se experimentar nisso;”
Os conceitos de fala vazia e fala plena foram mencionados em nosso percurso, logo nas primeiras postagens, para dizer deste cruzamento do eixo do imaginário sobre o simbólico que encontramos no Esquema L. Foi também explicitado que Lacan abandona esta idéia de fala plena tão logo percebe que o estruturalismo deixa questões no que diz respeito ao Simbólico ser capaz de dar conta do Real, uma vez que sua operação deixa sempre um resto. Disto é testemunho este item dois, onde ao sujeito é dada a “liberdade” de experimentar ou não o que a análise lhe oferece.

3 – “Que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar;”
Este item toca na questão da falta a ser e o que está grafado como S(A/). Ali onde a liberdade vai trazer como consequência apenas a garantia de que cada um deve se responsabilizar por seus atos e decisões.

4 – “Que a demanda é propriamente aquilo que se coloca entre parênteses na análise, estando excluída a hipótese de que o analista satisfaça a qualquer uma;”
Este item toca o que estivemos comentando recentemente quando trabalhamos a questão da demanda em sua articulação com a necessidade e o desejo. Não colocar a demanda entre parênteses é colocar em risco a análise, uma vez que se pode, com isto, confundir o desejo com a necessidade, ao mesmo tempo que, como vimos hoje,  se pode rebaixar a transferência à sugestão.

5 – “Que, não sendo colocado nenhum obstáculo à declaração do desejo, é para lá que o sujeito é dirigido e até canalizado:”
Retoma-se aqui a questão da falta-a-ser, como causa que vai transparecer na medida em que o desejo, sendo um desejo que se sustenta em um vazio, não se confunde com a demanda. Aqui temos um resumo a política da Direção do Tratamento: ela visa a falta-a-ser.

6 – “Que a resistência a essa declaração, em última instância, não pode ater-se aqui a nada além da incompatibilidade do desejo com a fala.”
Por fim, uma conclusão sobre a questão do sujeito em sua relação com o objeto e a impossibilidade que se impõe a partir mesmo do Real que habita o ser-falante. Há uma incompatibilidade entre o Simbólico e o Real que o amalgama imaginário não consegue tamponar, por se tratar da falta de palavras que dê conta do desejo. Costumo dizer, buscando em Lacan uma referência de seu texto “De nossos antecedentes”, que o sujeito em análise deve ser levado, a partir de seu sintoma, a um ponto de impossibilidade tal que sua única saída é fazer esse sintoma retornar em efeitos de criação. Assim é a palavra que, levada ao seu extremo pode, eventualmente, retornar em efeitos de poesia. O matema S(A/) é, mais uma vez, convocado para nos esclarecer este ponto. Ponto este que deve ser apontado a cada interpretação pelo silêncio que se faz, enaltecendo o dizer por detrás do dito, assim como o dedo erguido de São João de Leonardo, “para que a interpretação reencontre o horizonte desabitado do ser em que deve se desdobrar sua virtude alusiva”.

Para concluir, Lacan nos lembra que se trata de tomar o desejo ao pé da letra, pois só assim vamos poder capturar o desejo em suas entranhas. Este é o “Esforço de Poesia”. É fundamental, portanto, que o analista seja um letrado. Freud o foi e isso está escrito em seus trabalhos em torno de seus próprios sonhos.
E Lacan dá sua fórmula de um final de análise fazendo, mais uma vez, menção a Freud:
“Homem de desejo, de um desejo que ele acompanhou a contragosto pelos caminhos onde ele se mira no sentir, no dominar e no saber, mas do qual soube desvendar, somente ele, qual um iniciado os antigos mistérios, o significante impar: esse falo o qual recebe-lo e dá-lo são igualmente impossíveis para o neurótico, que ele saiba que o Outro não o tem ou que o tem, pois, em ambos os casos, seu desejo está alhures – em sê-lo -, e porque é preciso que o homem, macho ou fêmea, aceite tê-lo ou não tê-lo, a partir da descoberta de que não o é.”