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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Psicanálise e Medicina - 2ª Parte

O poder médico hoje, portanto, não responde mais a uma demanda do doente, pois quando este é enviado ao médico não está esperando pura e simplesmente a cura. Na verdade ele coloca o médico à prova de retira-lo de sua condição de doente, o que é muito diferente, pois isso implica que ele está muito mais ligado à idéia de conserva-la. "Ele vem, muitas vezes, nos demandar autentifica-lo como doente, em muitos outros casos ele vem, de forma mais manifesta, demandar preserva-lo em sua doença, de trata-lo da maneira que lhe convêm, aquela que lhe permitira continuar ser um doente bem instalado em sua doença." 
Todo esse desenvolvimento está aqui para nos lembrar que a significação da demanda, esta dimensão sobre a qual se sustenta a função médica apresenta uma defasagem, uma distância em relação ao desejo. Em outras palavras, existe uma falha estrutural entre a demanda e o desejo. 
Nem seria necessário ser psicanalista, nem mesmo médico para saber que quando nos pedem alguma coisa, essa alguma coisa nunca é idêntica, e às vezes até é oposta, ao que se deseja. Lacan, em várias ocasiões, cunhou frases que indicam esta distância entre o que se demanda e o que se deseja. Em L'Etourdit, p. ex. ele nos diz:  "O que se diz permanece esquecido por trás do dito no que se escuta" e no Seminário Mais Ainda: "Eu te peço que recuses o que te ofereço porque não é isso - isso vocês sabem o que é, é o objeto a" 
A partir mesmo desta defasagem entre demanda e desejo é possível introduzir questões relativas ao estatuto do corpo e seus enigmas. Este corpo que a experiência analítica verifica não estar apenas afetado funcionalmente como no sintoma, e que se apresenta observável em um processo verdadeiramente enigmático para o médico. Lacan define como falha epistemo-somática, o efeito que vai produzir o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo.
Esta situação nos diz que o que parecia confuso, velado, misturado, aparece com mais clareza após o trabalho de Freud. O que a medicina propõe da relação epistemo-somática vai consistir num corpo purificado, livre das influências do pensamento, corpo radiografado, scaneado, calibrado. Um corpo como exilado, proscrito tendo como base a dicotomia cartesiana do pensamento e da matéria estendida. 
"Esse corpo, nos diz Lacan, não é simplesmente caracterizado por sua dimensão estendida: um corpo é alguma coisa que está feita para gozar, gozar de si mesmo. A dimensão do gozo está completamente excluída do que chamei relação epistemo-somática. Pois a ciência é capaz de saber o que ela pode, mas ela, menos que o sujeito que ela engendra, não pode saber o que ela quer."
Jean Daniel Matet, em um artigo que leva o título "O corpo e seus enigmas", nos lembra que o esboço dos termos deste vivo debate já aparece em uma correspondência de Freud a Groddeck cujas teses tiveram grande repercussão. Nesta carta, datada de 5 de junho de 1917, Freud reprova Groddeck por haver abandonado a diferença entre o somático e o psíquico para escorregar em direção a um monismo místico. Assim se expressa Freud: "deixe-me mostrar-lhe que o conceito de inconsciente não tem necessidade de nenhuma extensão maior para abarcar suas experiências sobre as enfermidades orgânicas". Mas, Freud agrega que não devemos atribuir ao inconsciente o elo perdido entre o somático e o psíquico. Neste lugar, Freud cria seu mito das pulsões, definida em 1914 como "uma força constante (que), do ponto de vista biológico nos aparecera como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo." 
Continuando nosso trajeto e sustentados em Lacan, temos alguns elementos que já se destacam: a demanda do doente e o gozo do corpo.
Talvez seja o momento de introduzir uma nova dimensão: a do desejo, e com ela o conceito de ética. Aqui Lacan se refere à intervenção da teoria psicanalítica que acontece exatamente quando entra em jogo a ciência, pois foi Freud quem inventou o que deveria responder à subversão da posição do médico pela escalada da ciência. 
Falamos a pouco da diferença entre a demanda e o desejo. Esta diferença, que só pode ser esclarecida com o auxílio da lingüística, se revelou nos trabalhos de Freud sobre o inconsciente e determinou sua estrutura como sendo a de uma linguagem. Esta estrutura é a mesma que define: "existe um desejo porque existe inconsciente, quer dizer, linguagem que escapa ao sujeito em sua natureza e seus efeitos, e que existe sempre no nível da linguagem algo que está mais-além da consciência" determinando que é aí que pode se situar a função do desejo. Este lugar foi definido por Lacan como sendo o lugar do Outro, campo onde se referenciam os excessos da linguagem, onde o sujeito se sustenta de uma marca que escapa a sua própria mestria. É este ponto, neste campo, que promove a junção com o que foi denominado gozo e que designamos como sendo esta falha epistemo-somática. 
Desde Freud sabemos que o prazer faz barreira ao gozo, na medida em que ele define o princípio do prazer como esta pequena excitação que faz desaparecer a tensão, regulando-a através de um certo distanciamento do gozo. O que se denomina, na teoria lacaniana de gozo é, portanto, o "sentido onde o corpo se experimenta, e que é sempre da ordem da tensão, do forçamento, do gasto, talvez da exploração. Existe, incontestavelmente gozo no nível onde começa a aparecer a dor e sabemos que é somente a esse nível da dor que pode experimentar-se toda uma dimensão do organismo que de outra forma permanece velada."
O que é o desejo? Podemos defini-lo sob várias perspectivas, mas vou privilegiar a definição que leva em consideração o que acabamos de falar sobre o gozo e o prazer. "o desejo é algum tipo de ponto de compromisso, escala da dimensão do gozo, na medida em que, de uma certa maneira, ele permite levar mais longe o nível da barreira do prazer. Mas aí encontramos um ponto da fantasia onde intervém o registro da dimensão imaginária que faz com que o desejo esteja ligado a alguma coisa da qual não é de sua natureza exigir, verdadeiramente, a realização." 
À luz do que lhes trouxemos até aqui sobre estes três conceitos psicanalíticos: demanda, desejo e gozo, penso podermos estabelecer uma discussão do lugar da psicanálise na medicina, acrescentando-se que isso só será possível levando-se em conta que a clínica aparece para a experiência do médico como um novo perfil do perceptível e do enunciável, clínica esta que "deve sua real importância ao fato de ser uma reorganização em profundidade não só dos conhecimentos médicos, mas da própria possibilidade de um discurso sobre a doença".
Somente nesta perspectiva poderemos estabelecer os meandros de uma ética que não vai se sustentar nos parâmetros traçados pela moral vigente ou pela  ciência que exclui de seu campo tudo aquilo que não consegue trazer sob a forma de um saber que possa retornar ao sujeito como objeto de prazer. A ética que sustenta a teoria psicanalítica baseia-se na tese de que é fundamental não ceder do seu desejo, mesmo diante de toda esta oferta feita pela ciência e sustentada pelo discurso capitalista.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Psicanálise e Medicina - 1ª Parte

Todos sabemos que a psicanálise tem não somente seus antecedentes mas a sua origem na prática médica. Sigmund Freud, pôde inventa-la, exatamente quando a clínica alcançava seu estatuto moderno. Para que Freud pudesse se dedicar ao que traziam aquelas pacientes que, com suas paralisias, não respondiam à categoria do pensamento científico, foi necessário o desenvolvimento de uma clínica onde o que era fundamentalmente invisível se despojasse do mal que até então a significava. Assim se exprime Michel Foucault referindo-se a este momento do nascimento da clínica: "no início do século XIX os médicos descreveram o que, durante séculos, permanecera abaixo do limiar do visível e do enunciável. Isso não significa que, depois de especular durante muito tempo, eles tenham recomeçado a perceber ou a escutar mais a razão do que a imaginação; mas que a relação entre o visível e o invisível, necessária a todo saber concreto, mudou de estrutura e fez aparecer sob o olhar e na linguagem o que se encontrava além de seu domínio. Entre as palavras e as coisas se estabeleceu uma nova aliança fazendo ver e dizer..." Para que isso pudesse acontecer, foi muito importante a renovação do estatuto do doente, além de se poder contar com o espaço fechado do corpo para construir um método semiológico e envolver o doente em um âmbito coletivo, o hospital, que pudesse assegurar uma comunidade epistêmica. 
É ainda Foucault, em seu trabalho citado acima quem afirma a importância da medicina na constituição das ciências do homem. Essa importância não está assinalada apenas do ponto de vista da metodologia, mas também da ontologia, na medida que toca o ser do homem como objeto do saber positivo. 
Verificamos, então, que a enfermidade após a entrada da ciência moderna foi deixando para trás seu lugar nas sombras das crendices à medida em que o espaço corporal foi articulando-se à linguagem e à morte. É, pois, a revisão do estatuto da morte estabelecendo uma nova perspectiva através da evolução do saber anátomo-clínico o que vai emprestar à enfermidade um conteúdo que se expressa em termos positivos. Dito de outra forma, se a enfermidade for pensada em relação à natureza e não à morte, ela estará sempre no lugar do negativo de um natural impossível de assinalar. Pelo contrário, quando a morte se converte no 'a priori' concreto da experiência médica, a enfermidade se desprende do registro do contra-natural e toma consistência no corpo do vivente. 
Também o sujeito do inconsciente deve sua paixão pelo sentido à pulsão de morte. Freud inventou um dispositivo para acolher seus efeitos, constituindo a sessão analítica como um lugar extimo à consulta médica. A sessão analítica, este espaço no qual vai se realizar o lugar do possível, privilegia exatamente o que a clínica médica não pode reabsorver do campo da demanda do paciente, e que tanto mal-estar provoca nos médicos. É que por trás do jorro de palavras que muitas vezes inundam os consultórios, aflora sempre um pedido de socorro, uma busca de garantia à qual muitos preferem fazer-se de surdos. 
É nesta perspectiva que Lacan estabelece, diante uma audiência de médicos no Colégio de Medicina da Salpetrière, em 1966 (Debate este que foi depois estabelecido pelo próprio Lacan e publicado com o título: Psicanálise e Medicina) que a função do médico - o personagem do médico tal como foi concebido na história da medicina - está terminado. A partir desta afirmação, Lacan vai discorrer sobre o destino do médico neste campo da medicina moderna, tomada pela ciência. Sua proposta é que nesta época dominada pela ciência, não existe outra posição que retome aquela que foi do médico,  senão a de sustentar o descobrimento de Freud. 
Assim, assinalando que é a primeira vez que trata do lugar da psicanálise na medicina, Lacan vai sustentar que para a medicina a psicanálise ocupa uma posição marginal: "Ela é marginal em função da posição da medicina frente à psicanálise, que a admite como um tipo de ajuda exterior, comparável àquela dos psicólogos e de outros diferentes assistentes terapêuticos. Ela é extraterritorial em função dos psicanalistas que, sem dúvidas, têm suas razões para querer conservar esta extraterritorialidade" E ele acrescenta que estas não são as suas razões, mas que, na verdade, não acredita que sua ação única poderá mudar muitos as coisas. Cumpre ressaltar aqui que Lacan fazia, naquele momento, uma referência explicita à organização da International Psychoanalytical Association. 
Já, do ponto de vista do médico, é preciso analisar qual tem sido o destino de sua função nesta medicina que se inscreve, cada vez mais, no campo da ciência. É indiscutível que, hoje, tomada pela vertente da ciência, esta tornou-se a única a definir-lhe sua eficácia. 
Se considerarmos a história do médico através dos tempos, o grande médico, o médico típico, era um homem de prestígio e autoridade. Balint - responsável por um trabalho na clínica Tavistock, em Londres durante a década de 50 - definiu muito bem o que se passa entre o médico e o doente: "o médico ao prescrever, prescreve a si mesmo". 
A entrada da ciência veio quebrar esta hierarquia de prestígio e autoridade, reduzindo o médico a um-a-mais na equipe científica. Não mais aquele sustentáculo de funções decantadas como sacerdotais, deduzidas a partir de Hipócrates, quando um médico verdadeiro era aquele que, ao abordar seu doente, levava em conta as condições de vida e existência deste sujeito na conclusão de um diagnóstico ou na prescrição de uma receita ou dieta, seguramente identificável dentro de um marco de uma doutrina. Não mais o médico-filósofo, aquele que desempenhava suas funções guiando-se por normas eternas de vida, que permitiam estar com cada doente em sua particularidade. 
O médico atual é requisitado mais na função do sábio fisiologista a serviço do mundo científico que lhe coloca nas mãos um número infinito de novos produtos, artefatos de diagnóstico e de tratamento ao mesmo tempo que demanda a este médico, como agente distribuidor, de os colocar à prova junto ao grande público. 
É em relação a isso que Lacan se coloca a questão: "onde está o limite no qual o médico deve agir e a que ele deve responder a algo que se chama demanda?"
E ele constrói a seguinte resposta: "Diria que é na medida deste deslizamento, desta evolução que modifica a posição do médico com respeito aos que o procuram, que vem a se individualizar, a se especificar, a valorizar retroativamente, o que existe de original nesta demanda ao médico. Esse desenvolvimento científico inaugura e coloca cada vez mais em primeiro plano esse novo direito do homem à saúde, que existe e já se estrutura em uma organização mundial (OMS). Na medida em que o registro da relação médica à saúde se modifica, onde este tipo de poder generalizado que é o poder da ciência, dá a todos a possibilidade de vir demandar ao médico seu 'ticket' de benefício em um objetivo imediato preciso, vemos desenhar-se a originalidade de uma dimensão que chamei 'a demanda'. É neste registro do modo de resposta à demanda do doente que está a chance de sobrevivência da posição propriamente médica."
E Lacan continua: "Responder que o doente nos vem pedir a cura, absolutamente não responde, pois cada vez que a tarefa precisa, que é cumprir a urgência, não responde pura e simplesmente a uma possibilidade que se acha ao alcance da mão: colocar um aparelho cirúrgico ou administração de antibióticos - e mesmo nesses casos resta saber o que daí resulta para o futuro - existe, fora desse campo que é modificado pelos benefícios terapêuticos, alguma coisa que permanece constante e todo médico sabe bem do que se trata."
O que está explicitado é que toda esta medicina que se estrutura em torno da ciência, subverte absolutamente o eixo da demanda, pois este direito à saúde não está aí para responder a nenhuma demanda de nenhum doente. A universalização deste direito destitui o sujeito da sua condição de desejante, ao mesmo tempo que confina o médico a intervir apenas nas questões de prevenção e sanidade. 

terça-feira, 15 de julho de 2014

Algumas notas sobre o "Tempo Lógico"

O tempo é algo que pode ser dividido e podemos falar do tempo, uns com os outros. Isto só é possível, no entanto, porque este tempo (P. ex. Uma sessão de psicanálise de 50 minutos) está submetido a uma lei que, por ser comum entre os homens, possibilita que uma mensagem possa ser transmitida.
Para que os homens pudessem chegar a medir o tempo como fazemos hoje, muito se trabalhou. As primeiras tentativas diziam respeito aos ritmos naturais: percurso do sol, tempo das estações, etc. As primeiras medidas do tempo diziam de um tempo que se gastava para percorrer uma certa distância. Relação tempo-espaço, que até hoje persiste, pois o que vemos nos relógios é exatamente um “tempo” em que o ponteiro demora para percorrer uma certa “distância” que está, como já se disse antes, submetido a uma padronização para que possa ser entendido por todos.
Este tempo, ao qual estamos submetidos enquanto seres sujeitados a uma certa lei que é comum a todos, podemos denomina-lo de tempo cronológico ou simbólico.
Há, no entanto, outros “tempos”, com os quais não lidamos frequentemente apesar de fazerem parte do nosso dia a dia da mesma forma que o tempo cronológico. É este o tempo que faz parte de nossas fantasias, sejam elas infantis ou adultas. É este o tempo em que futuro ou passado são trazidos à nossa mente através da imaginação, fazendo-os serem vívidos como tempo presente. Este “tempo”, só pode existir porque a nós, seres humanos, foi dada a possibilidade de pensarmos. Se nós lembrarmos aqui, que o fato de pensarmos levou muitos filósofos a estudarem este pensar no que diz respeito às suas formas e articulações, vamos lembrar que este estudo  recebeu o nome de Lógica. Assim, a este tempo que se produz na imaginação, em  função de que somos seres pensantes, pode ser denominado de tempo imaginário ou lógico.
Há, no entanto, um outro “tempo” que escapa á cronologia e à lógica, um tempo que não conseguimos apreender em palavras ou desenhos, ou com qualquer outro artifício. É o tempo Real ou topológico.
O tempo real não depende de nossa vontade. Ele existe e existimos nele. É o que nos diz o movimento do sol, das estrelas, do dia e da noite, etc. Foi a partir deste tempo que foi possível pensarmos o tempo enquanto simbólico e imaginar o tempo enquanto imaginário.
Para entendermos o tempo lógico, motivo de nosso texto de hoje, é fundamental o seguinte: esses três tempos estão inexoravelmente articulados entre si. Eu não conseguiria pensar o tempo simbólico se não possuísse uma capacidade de imaginação qualquer, uma lógica no meu pensamento, além de poder sustentar tudo isto numa verdade que pudesse testemunhar de tudo isto pelo fato de que permanecesse imutável, como o nascer do sol todos os dias.
O nó borromeu é um artifício que Lacan utilizou para dar conta destas articulações entre os três registros (Real, Simbólico e Imaginário). O nó borromeu tem como propriedade ser desfeito no momento em que qualquer um de seus laços é cortado.
Tudo isto nos leva ao seguinte: nenhum dos três tempos que definimos acima existe sozinho.
A psicanálise, deste o princípio de sua existência tem se preocupado com a questão do tempo. Freud, logo no início, ao diferenciar o Inconsciente do Consciente, nos dizia que o Inconsciente é atemporal. É fundamental que, ao escutarmos o paciente em análise, levemos em conta este fato. Partindo disto, podemos entender quanto se diz que, com Lacan, a psicanálise trabalha com o tempo lógico, aquele que diz respeito à forma como o pensamento se encandeia, e como a “Outra cena”, o inconsciente, estrutura os fatos que se passaram no dia-a-dia da vida de cada um.
Um pequeno parênteses se faz necessário neste ponto. A psicanálise, como Lacan a elabora, trabalha com sessões curtas em função do tempo lógico, que é o tempo do inconsciente, mas trabalhar simplesmente com sessões curtas não quer dizer que se está utilizando o tempo lógico.
Retomando fio da meada, podemos dizer que se não nos despregarmos do tempo cronológico na escuta psicanalítica não conseguiremos escutar “a verdade” que nos chega nas entrelinhas da fala do paciente. Um pequeno exemplo pode, talvez, clarear o que lhe digo: Um certo fato que ocorreu quando se tinha 5 anos de idade pode, aos 30 anos, continuar atuando com a mesma “força”, ou até mesmo aumentar esta “força” na medida em que novos pensamentos forem acrescentados ao fato original.
Michael Ende, em seu livro “Manu, a menina que sabia ouvir”, coloca a personagem principal com alguém fora do tempo. O tempo era algo que aprisionava as pessoas e as impediam de escutar o que lhe falavam. Até mesmo o lugar que ela habitava estava localizado “fora da cidade”. Podemos entender isto com uma tentativa de escapar a todo o sentido pré-estabelecido que é o fundamento do registro simbólico, uma vez que este registro está inteiramente submetido a uma lei.
Freud, pela escuta que fez de suas histéricas, nos diz que o inconsciente é atemporal e que guarda em seu bojo um desejo indestrutível, desejo este que insiste no inter-dito da cadeia significante e na formações sintomáticas.
Com o conceito do tempo lógico, saímos do tempo que o relógio marca. Esse tempo que tem um sentido importa pelo próprio movimento dos ponteiros que gira numa mesma direção, e serve de parâmetro para muitas atividades (sentido horário, sentido anti-horário). O tempo lógico é o tempo do não-sentido, por isso não o percebemos, já que estamos tão colados com a cronologia do tempo simbólico. Esta percepção do tempo lógico é uma das conseqüências do corte promovido por Freud, e retomado por Lacan no momento em que a psicanálise vinha se perdendo no sentido novamente.
Lacan, no seu retorno à Freud, se perguntou como poderia dar uma forma, formalizar isso que Freud chamou de atemporalidade do inconsciente. Para obter resultados foi à ciência que estuda as formas do pensamento. A lógica.
Lacan pensou o tempo lógico antes do significante. Foi a partir do ponto em que ele, sabendo que o inconsciente é atemporal e que é estruturado a partir de um desejo indestrutível, pensou um tempo absolutamente particular: o tempo do sujeito do inconsciente, que é um outro tempo que não o cronológico. O trabalho do psicanalista talvez pudesse ser dito como sendo o de escutar alguém no seu tempo lógico para que ele possa tornar-se alguém no tempo cronológico.
Em outras palavras diremos que para escutar o sujeito do inconsciente é preciso que nos coloquemos num outro lugar – Manu, a heroína do livro, está fora da cidade, o que forçava as pessoas a saírem do círculo da pólis, lugar regido por leis do homem, para então poderem ser escutados por Manu, para quem o “tempo” não existia.
Assim, como o psicanalista, Manu deixava as pessoas falarem, não interferia, cada um ia colocando o seu sentido naquilo que falavam até pudessem escutar o que diziam, no “seu tempo”. Só desta forma cada um poderá escutar o sujeito que fala nele. Sim, porque quando falamos, estamos sempre a dizer algo diferente do que queríamos dizer, algo sempre está a escapar em nossa fala, nos dizendo que não somos os donos de nossas palavras. É sobre o que escapa que o psicanalista trabalha. São os atos falhos, os chistes, os sonhos, os sintomas, etc, que nos apontam que “algo” trabalha num tempo diferente do tempo cronológico. Este algo está presente quando, ao falar com alguém escuto na sua resposta que não fui bem entendido, que não consegui dizer tudo. Este fato, este mal-entendido, poderia dizer ser a mola que impulsa todo diálogo e ele se baseia na existência mesma de uma independência radical entre significante e significado.
Relato-lhes uma passagem de um certo cliente: certa vez me relatou um sonho: era candidato a prefeito. Ora, é uma frase perfeitamente inteligível em seu próprio contexto. No entanto, toda a problemática deste sujeito se baseava num movimento constante em direção a uma “perfeição” total. Como eu sabia, a partir de seus relatos deste fato, foi possível escutar na palavra “prefeito” a presença de um outro sentido que não o que a frase original, ou manifesta, no sonho dizia. Assim, quando eu pontuei este significante, todo um outro sentido pode ser criado pelo paciente, a partir de um nova posição que o sujeito do inconsciente assumiu. Numa conversação normal, se eu por acaso fizesse a mesma coisa, iam dizer que havia ocorrido um mal-entendido. Podemos então resumir dizendo que a psicanálise trabalha exatamente com o mal-entendido presente em toda palavra.
Mas o que faz com que isto funcione numa análise? É que quando alguém busca um psicanalista, ele chega acreditando que o psicanalista sabe sobre o que se passa com ele, com os seus sintomas, enfim, sabe o que lhe falta. Esta é a figura do Sujeito Suposto Saber, pivô da “transferência”, elemento fundamental do tratamento psicanalítico. No entanto, já temos aqui um dos primeiros mal-entendidos que fazem funcionar a psicanálise: se o analista sabe alguma coisa, certamente não é o que o analisante vem saber, pois a verdade é sempre de cada um. O que o psicanalista certamente sabe é que o significante não está definitivamente colado ao significado, e que este fato é fundamental. Sabe que quem está falando não é o mesmo sujeito do enunciado, já que o sujeito do inconsciente é o sujeito da enunciação e que só temos acesso a ele pelos seus efeitos. Assim, o analista não tem o menor direito de sair por aí a interpretar tudo o que se diz, pois somente quem fala pode ter acesso ao que, na verdade, deseja.
Então, qual a função do analista?
Podemos dizer que a mesma de Manu: se colocar num lugar Outro, lugar que o "Mestre Hora" mesmo disse ser o da "Mansão do Nunca", na rua do "Lugar Nenhum", fora do tempo, fora dos limites da cidade, fora deste espaço cronológico, para poder propiciar a separação do significante / significado. Para apenas e tão somente apontar uma palavra e deslocar o sujeito do eixo em que ele vinha sendo aprisionado, para que esse sujeito possa fazer um retorno sobre si mesmo. São as três escanções que Lacan aponta no seus textos sobe o Tempo Lógico:
No exemplo clínico, quando pontuei a palavra “prefeito” e ele mesmo escutou “perfeito”, viu-se diante de um “instante de olhar”. Sim esta é uma das funções do analista pois, nem sempre estamos atentos a tudo, e é preciso um Outro para nos dizer de algo que promova este “instante” para que, em seguida, possa haver um “tempo para compreender”. Se existia algo na figura da heroína do Livro de Michael Ende, que podemos considerar digno de nota, é a sua capacidade de saber que cada um tinha o seu tempo.
Então, após o instante de olhar e passado o tempo de compreender é chegado o “momento de concluir” para que não se deixe escapar o saber que se construiu sobre  verdade.
Talvez possa ser feita uma comparação entre os três tempos com o próprio desenvolvimento do indivíduo: O instante do olhar é a infância, onde tudo é novo; o tempo para compreender se coaduna com a idade madura, onde começamos a escutar a morte em toda a sua dimensão de verdade; o momento de concluir se representaria na velhice, onde a verdade da morte se tornaria uma realidade muito próxima.

 

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Ato Analítico e Topologia: Uma Formalização

Formalizar o momento de uma análise onde o ato analítico acontece, instalando no lugar da verdade um saber que “possa operar enquanto verdade”, é nosso objetivo.
Podemos dizer que um sujeito procura análise no momento em que se torna insuportável para ele sua divisão entre saber e verdade. Isto se dá no ponto onde o deslizamento metonímico da cadeia significante se interrompe: “As coisas até aqui caminharam, nos diz alguém, mais não sei porque pararam de andar e até pioraram”. Lacan no seu seminário XI nos diz que “os pacientes, não se satisfazem, como se diz, do que eles são. E portanto, nós sabemos que tudo isso que eles são, tudo isso que eles vivem, seu sintomas mesmo, surgem da satisfação, (...) eles satisfazem a qualquer coisa (...) e estando neste estado de tão pouco “contentamento, eles se contentam”. Só que “por este tipo de satisfação eles se dão muito mal. Até certo ponto é este mal-a-mais que é a única justificativa de uma intervenção"  para que no nível da pulsão este estado de satisfação possa ser retificado.
Assim, sendo, é a partir deste “mal-a-mais” que, surgindo neste ponto em que o saber constituído do sintoma deixa de obturar a verdade da qual o sujeito não quer nada saber, que vamos ver nascer uma demanda de análise e com ela a transferência.
Uma pequena palavrinha sobre essa verdade da qual o sujeito não quer nada saber: Segundo J. A . Miller no seu seminário de 09.05.90, os escritos de Lacan dividem seu ensino em duas partes e terminam por uma exaltação da verdade, com o texto “A Ciência e a Verdade” (...) Na primeira fase deste ensino a verdade é colocada em oposição ao saber pelo seu caráter nascente na palavra. Ela corresponde à verdade horrível da castração. Já na 2ª fase, a verdade não é mais formulada no singular e torna-se uma variável. Em 1973, na “Nota italiana”, o horror da verdade é deslocado para o saber: Lacan vai opor ao horror de saber, o desejo de saber do psicanalista.
A transferência, portanto, está no início do tratamento e se instala aí na tentativa mesmo de, atribuindo a um Outro o saber que falta, alcançar uma resposta que seja o saber último sobre esta sua verdade. É o Sujeito Suposto Saber que surge, fazendo valer um significante qualquer como aquele onde um sujeito poderia ser representado.
Este atribuir a um Outro o que lhe falta é a base da relação amorosa por excelência. Ama-se no Outro o “agalma”, objeto precioso, essência de um ser-em-falta que se ilude no amor ao saber.
Em se tratando da transferência, no entanto, vemos uma dissimetria colocada a priori já que nesta relação há pelo menos um que quer a mudança, há pelo menos que calcula e, ao recusar o lugar de amante que lhe é oferecido responde, por seu não-saber, com um Che Voui ?, um desejo de saber.
Isto nos aponta uma mudança na maneira de ver as coisas pois, se no início da psicanálise muitos pensavam que o inconsciente era um não sabido que iria se tornando cada vez mais sabido, a introdução do objeto pequeno “a” por Lacan, nos diz de uma exteriorização do não-sabido que escapa à cadeia significante e se coloca radicalmente excluído dela.
Fazer operar este objeto “a” enquanto semblante no discurso do analista é tarefa a ser sustentada por alguém: um analista. “A psicanálise é o que se espera de um analista” nos diz Lacan no seu seminário XVII, e continua “e o que se espera de um analista é que faça funcionar seu saber em termos de verdade. É bem por isso que ele se confina num meio-dizer”.
Em outras palavras podemos dizer que é preciso que exista um analista e este analista só existe na medida em que se colocando como ponto fora da linha, faz operar o vazio onde uma verdade poderá ser transmitida e não um saber ser ensinado.
Esta operação de transmissão só se faz em ato, ato analítico que, preparado pelo amor  de transferência – é o amor que possibilita, enquanto signo, o giro do discurso da histérica para o discurso do analista – se conclui pelo vazio do sujeito. O ato acontece ali onde um sujeito deverá advir. Esta operação que tem como pivô o Sujeito Suposto Saber e por objetivo a destituição deste sujeito suposto, só se sustenta pelo desejo do analista.
Esta é uma operação lógica. O ato enquanto puro não-sentido institui um dizer e cria um fato, onde o axioma da existência – que Lacan traduziu por “Há do UM” (Y a d’l’ UN) – aponta todo o tempo para a impossibilidade do desejo e o infinito da demanda fazendo valer a castração como saída do Édipo.
Lacan, desde o início de sua atividade de transmissão da psicanálise, coloca a topologia, a lógica, e a matemática – enquanto campos da ciência que não comportam nenhuma afirmação de sentido – para auxilia-lo em suas elaborações teóricas.
Escolhi a topologia para tentar levar adiante minha elaboração. Na topologia, escolhi este objeto estranho e de tão difícil apreensão que é a esfera provida de um Cross-Cap, “asfera” como a denomina Lacan. Produto da imersão de uma superfície de duas dimensões no espaço de três dimensões, o Cross-Cap é um objeto também abstrato engendrado teoricamente e sem impurezas. No entanto, se admitirmos uma linha de sutura onde existe abstratamente, duas componentes conexas que não se cruzam podemos obter uma imagem concreta do Cross-Cap.
O Cross-Cap com o qual Lacan trabalhou, e que nos interessa aqui, é aquele que podemos visualizar mas ao qual atribuímos as propriedades daquele que não podemos ver. Dentre as muitas propriedades que este objeto apresenta escolhi algumas que mais convém ao meu propósito. Resumi-la-ei assim: no processo de imersão o ponto do infinito vem instalar-se exatamente ali onde as duas componentes conexas constituem esta linha de falsa auto-intersecção. Esta redução do horizonte a um ponto se precisa disso que esse ponto seja tal que toda linha traçada para aí chegar não o ultrapasse senão passando da face direita do plano a sua face avessa, após sofrer uma torção.
Continuando meu pensamento posso dizer, com Lacan, que essa linha traçada é a “linha sem pontos” do corte que representa o dito que faz sujeito e que não pode se produzir que de uma superfície já marcada de um “ponto fora da linha” ponto este que só se especifica de uma dupla volta instalada sobre uma esfera.
Suponhamos agora, e aqui está a minha contribuição, que esta linha enquanto percorrendo a face direita da “asfera” seja a mostração do trajeto do sujeito na medida em que se faz representar na cadeia significante que sustenta o saber do seu sintoma. Suponhamos ainda que esta cadeia deslize sem maiores problemas até um ponto em que uma estagnação acontece. Ora é em função desta estagnação que vamos ver surgir aquilo que chamamos a pouco de “mal-a-mais” e que vai levar um sujeito a formular uma demanda de análise e uma transferência vai acontecer. Agora, se esta estagnação ocorre durante o tratamento é porque a transferência está operando enquanto resistência. Bom, Freud já nos esclareceu que estes pontos de resistência, pontos de silêncio que acontecem quando a associação livre é interrompida, são a consequência do analista estar ocupando um lugar destacado no pensamento do analisante. Michel Silvestre nos lembra que “estes momentos de estagnação longe de serem tempos mortos, perdidos para o sujeito, são ao contrário intervalos onde desponta um material específico, aquele da relação ao objeto, quer dizer, aquele da fantasia”.
Momento crucial onde o ato não deve faltar pois somente um ato vai restaurar a função do objeto “a” enquanto semblante, assim como foi um ato que colocou o sujeito em análise. E não deve faltar sob pena do analista, então, se apresentar como presença maciça, fixa, entravando a espontaneidade da fala. Importante assinalar neste ponto que esta operação se sustenta no desejo do analista que faz barra ao gozo que aí se apresenta relançando o vector na direção de uma construção da fantasia.
Retomando o nosso modelo topológico podemos dizer que se o ato falta o analista vai ocupar, não este ponto fora da linha (a), mas um ponto a linha (I (a)), impedindo o deslizamento metonímico ao não permitir o ultrapassamento no ponto do infinito, ao não permitir uma passagem da face direita para a face avessa. Em outras palavras, eu diria que teremos então um duplo corte e não mais uma dupla volta. Isto transforma as propriedades do objeto, criando uma banda circular e não mais uma banda de Moebius e um disco. Talvez então, agora, possa afirmar que é exatamente o ato, enquanto fio cortante da verdade, que, considerando “a necessidade lógica do momento onde o sujeito como X se constitui da “Urverdrängung, da queda necessária do significante primeiro” restaura o significante enquanto puro não sentido e portador da infinitização do valor do sujeito. Temos aí então a verdade não enquanto horror mais  enquanto uma variável quântica: A verdade é não toda! Desta forma vamos ter não a instalação de um único sentido com se tenta, quando se ensina um saber a alguém, nem muito menos a abertura a todos os sentidos. O ato analítico simplesmente abole todos os sentidos. Desta forma, não se deixa outra saída ao analisante senão que aí, neste ponto do infinito, neste ponto onde um puro não-sentido foi produzido faça uma passagem e construa um saber no campo que se abre em conseqüência da incidência do fio cortante da verdade, pelo ato psicanalítico.
Podemos concluir dizendo que este saber que se constrói, tem como centro um “não-saber” que, sendo o núcleo do entusiasmo, não surge por uma relação a si-mesmo, mas como pertencendo à estrutura de um modo essencial, até o ponto de constituir a possibilidade do “Único saber oportuno”.