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terça-feira, 26 de agosto de 2014

TERAPÊUTICA MAIS ALÉM DO PSICOFÁRMACO - A IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO. (2ª Parte)

Considera-se, portanto, a importância do diagnóstico a partir do fato do significante se apresentar na sua impossibilidade de suturar o espaço no qual a experiência do gozo se apresenta. É importante definir-se um ponto: um diagnóstico deve ser feito para ter consequências e uma das formas de se chegar a um diagnóstico é estabelecer onde e como o significante demonstra sua impossibilidade de se haver com o surgimento do Real.  A posição com que cada sujeito vai se apresentar diante do Real é que vai dizer da estrutura que está em jogo. Pode-se adiantar a importância de estabelecer este diagnóstico, na medida em que ele determina o caminho que poderá produzir uma letra que vai permitir um enlace do sinthoma. Um sinthoma escrito desta forma, com “th” para diferencia-lo do sintoma comum, pois ele vai permitir um novo enlaçamento no ponto de falha significante.
Neste procedimento de definir conceitos para construir os parâmetros de um entendimento pode-se dizer, de uma maneira bem simples, que a letra é o suporte do significante. Ao escrever-se S, tem-se uma letra, mas se a esse S ao qual se acrescenta o número 1 (S1), fizer-se seguir outro S acrescentado do 2 (S2), denotando a diferença entre os dois S, vai-se transformar as letras S em significantes.
Como o psicótico, não consentiu com a entrada do significante que organiza um pouco de realidade, os imprevistos de seu dia-a-dia são tratados de uma forma diferente: no lugar de buscar um significante na sequência que é determinada pelo que seria sua fantasia fundamental, ele tenta grampear ali, onde a contingência se fez presente, uma letra qualquer na esperança de que ela possa fazer-se significante. Como essa passagem não acontece esta letra pode produzir uma estabilização apenas quando ela permanecer como uma prótese, como um grampo que mantenha juntos os registros do Real, Simbólico e Imaginário, possibilitando uma frágil realidade. Uma letra, uma prótese, um grampo. Como diz Lacan, o que permite conhecer a estrutura um sujeito é a relação entre estes três espaços, é como eles se arranjam no enlaçamento borromeano. O nó Borromeu se caracteriza exatamente por um enlaçamento, ou melhor, por uma cadeia construída de tal forma que cada laço está preso ao outro mas, se um deles for rompido, todos os outros se libertam.
O neurótico apresenta um tipo de enlaçamento que possibilita um re-arranjo imediato diante da contingência. Ele pode até experimentar um estado de perplexidade e pânico, mas logo em seguida os nós se refazem, pois estão, digamos, garantidos pela existência de um 4º laço que se estrutura a partir do Édipo e enlaça borromeanamente os outros três. Este 4° laço é o que se chama de Nome-do-Pai.  Em outras palavras, mesmo que o enlaçamento sofra um certo afrouxamento, esse 4º laço mantém a estrutura borromeana.
Na psicose, no entanto, os três laços teriam a estrutura borromeana, pois dois deles apresentam-se apenas justapostos. Isso quando se trata de uma psicose com um mínimo de estruturação mínima. Essa estruturação mínima é alcançada quando, no lugar do Nome-do-Pai, consegue-se estabelecer um pequeno laço entre dois registros. O resultado é um falso Nó que vai se sustentar como tal a partir da Letra para fazer um Sinthome.
Um bom exemplo deste tipo de enlaçamento é a obra de James Joyce. Lacan atribui à escrita de Joyce a possibilidade de estabilização. Ao escrever, Joyce pôde manter entrelaçados o Imaginário e o Simbólico, uma vez que o Real do corpo sempre lhe escapava. Na passagem em que ele descreve o momento em que é espancado por um companheiro até perder a presença de seu corpo, vivendo o que se chama epifania, é a letra que vai sustentar a organização simbólica e manter o imaginário do corpo.
Em Schreber temos vários outros exemplos onde a dissolução imaginária do corpo vai exigir esforços suplementares para manter-se um mínimo de organização simbólica. Os esforços de Schreber não se resumiam à escrita: escreveu “Memórias de um Neuropata”. Ele lançava mão de um delírio que tinha a função de organizar uma realidade possível: diante do espelho, percebendo a fragmentação de seu corpo, imaginava como seria bom ser uma mulher sendo copulada por Deus. Assim ele se fazia a mulher que faltava aos homens produzindo um enlaçamento entre Imaginário e Simbólico que, desta forma, circunscreviam o Real.
Neste ponto é possível retomar o tema do enigma, que foi mencionado no início deste texto. Pode-se aborda-lo pelo limite entre o Real e o Simbólico. Existe uma falha universal. Lacan no final de seu ensino a relaciona com uma foraclusão generalizada. Daí se poder falar, com Miller, em clínica do delírio universal. Diante de um enigma todos criam sua teoria. A diferença fica por conta desta teoria ser, digamos, razoáveis, aceitas pelo código ou não. Lendo Michel Foucault, A história da loucura, encontra-se um capítulo inteiro em torno da questão do delírio. O delírio se define como o que sai do sulco, do caminho. Partindo desta definição, Foucault focaliza a época da psiquiatria clássica do século XVIII, quando os psiquiatras acreditavam que o delírio era uma forma razoável de estar no mundo. Esta mesma posição é retomada por Freud e trabalhada por Lacan. Em 1955, quando Lacan trabalha o seu seminário, As Psicoses, um de seus objetivos é saber qual é a razão que está por trás do delírio que sustenta o Sujeito no mundo.
O diagnóstico é importante, também por isso: Se um delírio surge em resposta a um enigma, ele tem uma razão. A razão do delírio do neurótico está sustentada no Nome do Pai, na lei. Está sustentada no fato de que o Sujeito passou pelo Édipo. Um Édipo que se estrutura, resumidamente, da seguinte forma: uma mãe e sua criança da qual se separa no parto. O movimento da mãe é de reintegrar a criança, pois o parto, mais do que uma perda constitui um enigma para ela – Talvez isso explique porque muitas mães, no pós-parto, se envolvem em delírios que fogem à normalidade. A falta que se constitui nesta separação é mais um enigma do que uma falta. A tentativa da mãe de reverter este quadro vai sofrer uma sanção do pai: não reintegrarás teu produto. É a lei que se faz presente. Se a mãe a aceita, por já ter consentido com ela, o enigma da existência vai ser colocado para a criança. Esta, por sua vez, vai construir sua própria resposta “delirante”. Sim, delirante por se construir a partir de uma realidade muito particular e constituir no que Freud chamou de Outra cena. Uma cena que acontece na realidade psíquica. Esta realidade psíquica foi definida por Freud quando, depois de acreditar que suas pacientes histéricas eram vítimas da sedução paterna, ele constatou que elas mentiam. “Minhas histéricas mentem” - é uma frase famosa de Freud em uma carta a seu amigo Fliess. “Estou decepcionado”, disse Freud, “decepcionado com a ciência, decepcionado com a Medicina, decepcionado com as minhas pacientes a quem eu dediquei tanto tempo”.
Se, por acaso Freud tivesse cedido de seu desejo neste momento de decepção, provavelmente a Psicanálise não existisse hoje. No entanto ele persistiu. Se elas mentiam com tanta convicção é porque acreditavam em sua teoria, seu “delírio”, portanto elas estavam se referindo a uma outra realidade, a realidade de uma fantasia que tem o mesmo peso, a mesma importância que a dita realidade externa. Esta reflexão, esta insistência do desejo de Freud criou a Psicanálise. Em outras palavras, quando Freud se desliga da realidade e passa a trabalhar a resposta que cada um dá ao enigma da sua existência ele inaugura um novo campo, o campo freudiano. Campo este que se organiza em torno da fantasia fundamental e tem, como característica, ser absolutamente particular a cada um. Por isso, pode-se falar que todos deliram. Cada sujeito tem sua teoria da vida que maneja de forma singular. Através desta teoria ele faz laço social e funciona na sua relação com o Outro. É o saber sobre a fantasia fundamental de um sujeito o que pode  dizer como o sujeito está no mundo, como ele se relaciona com o Outro.
(continua)

terça-feira, 19 de agosto de 2014

A TERAPÊUTICA MAIS ALÉM DO PSICOFÁRMACO - A IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO (1ª Parte)

“A partir das últimas classificações, principalmente dos Diagnósticos de Saúde Mental (DSM4), estamos acompanhando a evolução, a passos acelerados, no sentido da unificação do campo clínico das doenças mentais”.
“Com a introdução do conceito de episódios depressivos breves, quase nada falta para obtermos, por exemplo, uma só categoria: o episódio depressivo (mais ou menos breve, mais ou menos intenso). Essa constatação suscitou uma proposição que nos parece fundamental: a questão diagnóstica das psicoses e se devemos agrupá-las sob a égide de um déficit ou de um enigma. Se levarmos à frente a proposta de redução unificante que se alastra pelo campo da Psiquiatria, estaremos condenados a partir de um a priori: deveremos sempre abordar a clínica das doenças mentais pelo seu aspecto deficitário.”



Esta epígrafe nos diz do que vai interessar, e muito, às questões relacionadas com a eficácia medicamentosa e, principalmente, à indústria que recentemente desenvolveu a chamada 2ª geração dos antidepressivos. Se trabalharmos na vertente diagnóstica a partir “da falta de” fica muito simples oferecer remédios. Ora, isso só tende a limitar a originalidade da loucura ao déficit de funções, reduzindo a possibilidade de cura que seria dada pela medida da distância em que essa loucura vai se estabelecer como estando fora da normalidade. Estaríamos enfatizando, portanto, a questão da normalidade, ou mais especificamente a normalidade atualizada pelos costumes.
Outras possibilidades surgem, no entanto, quando se escuta o que afirma J.A. Miller: a ironia é o que pode permitir a unificação do campo mental. Esta fórmula não se ancora na perspectiva do déficit, mas sim da ruína do laço social. Pode-se dizer, então, que do ponto de vista do retorno a Freud feito por J. Lacan, fala-se em unificação, não pelo viés do todos deprimidos, mas sim pelo viés do “todo mundo delira”. Ressalta-se, no entanto, que a universalidade do delírio não afasta da cena a clínica diferencial das psicoses.
Quando se definiu a abordagem clínica pelo viés do déficit, partiu-se do que nela se apresentava como experiência da perplexidade.
Verificou-se também que essa abordagem estaria inteiramente sustentada nas relações do ser falante com a linguagem. Refiro-me aqui à forma como a própria Psicanálise e o próprio Lacan começou a abordar a questão da loucura -  trataram da falta do nome do pai. A clínica irônica, como foi trabalhada por J. A. Miller oferece um roteiro que será utilizado aqui. O que destaca Miller é a mudança que se percebe na clínica das psicoses, a partir da chamada 2ª clínica de Lacan:  o déficit não permanece mais no lugar em que estava. Se há um déficit, ele decorre da falta de enlaçamento, de um enlaçamento que sustente um discurso na relação do Sujeito com o Outro.
Pelo menos dois pontos merecem ser mencionados nessa perspectiva, quando se institui, a partir da 2ª clínica, o lugar da perplexidade, do enigma e de sua história. Verifica-se que se trata de um fenômeno da enunciação. O enigma, primeiramente abordado por Lacan, está relacionado ao sentido e à fuga do sentido.
Demonstremos esta articulação no andar inferior do grafo do desejo, lembrando que Lacan o denominou de célula-base. Este circuito diz que todo estímulo, partindo de um ponto, vai encontrar no lugar do Outro uma resposta que, por sua vez, vai retornar ao ponto de origem sob a forma de uma mensagem. Esse movimento, que nos diz também do momento inaugural do surgimento do Sujeito define-se da seguinte forma: um grito, produzido pelo mal-estar percebido pelo pequeno bebê, dirige-se a um outro que esteja próximo. Este próximo, definido por Freud em seu “Projeto para uma Psicologia Científica” como Nebenmesch é re-batizado por Lacan por Grande Outro. Este Outro traduz esse grito, fazendo com que chegue, no ponto de onde surgiu, uma resposta que é recebida como mensagem. Esse movimento, desenhado por Freud a partir de sua experiência clínica, é conhecido como "a posteriori" ou só-depois, traduções possíveis do alemão: nachträglich. Este movimento é responsável por uma modificação da necessidade em demanda, ao transformar o grito inicial em significantes - processo indispensável à constituição do sujeito.
Existe uma frase - que a mim sempre pareceu enigmática desde quando a vi pela primeira vez e que se encontra no texto de Freud “Sobre o Narcisismo: uma introdução”: “Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram deste o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo.” Hoje, penso, que essa “nova ação psíquica” pode ser traduzida exatamente por esta articulação que Lacan propõe a partir de seu Grafo do Desejo: é um grito que se faz a demanda pela ação da interpretação de um Outro (Nebenmensch).  A partir da ação de um Outro, um Outro que tem um código estabelecido, e, portanto, está  capacitado e em condições de tratar o real pelo simbólico. Se isso acontece, uma mensagem pode surgir e, como conseqüência, um Sujeito.
Esse Sujeito, no entanto, já nasce marcado por uma impossibilidade. A impossibilidade que o marca a partir desse momento é de que ele possa receber na mensagem do Outro a verdade toda. Em outras palavras, quando o grito foi transformado em significante pelo acréscimo do significante do Outro, o grito (que podemos, aqui, equivaler ao traço inaugural) se perdeu.
É por isso que Lacan coloca, na primeira construção do grafo do desejo, a “voz”, como produto da passagem do grito pelo campo do significante, indicando-nos que algo escapa na tentativa de significação. Quando o que retorna do Outro não é um significante, mas a voz, como acontece em muitas psicoses, foi porque algo não funcionou.
Quando todo esse processo pode seguir normalmente o seu curso, o que se instala é uma repetição, nomeada por Lacan a partir de Aristóteles como Automaton. É, em outras palavras um moto continuo que, na maior parte do tempo passa desapercebida. A consequência deste Automaton é um certo apaziguamento, contrariamente ao que acontece quando, como já aludimos acima, o grito ao chegar no campo do Outro não passa pelos desfiladeiros dos significantes. O grito encontra uma resposta truncada, pois ele não é traduzido em significantes e o que retorna é o Real produzindo gozo onde deveria acontecer um apaziguamento.
Gozo se apresenta, muitas vezes, como um mal-estar. Um mal-estar que diz da presença de uma falta que nada mais é do que repetição da falta que a resposta do Outro denuncia. Em outras palavras, é a presença da falta do Outro no que tange a impossibilidade da verdade ser dita plenamente, como já assinalei antes. Para o neurótico, este gozo nada mais é do que uma pequena ponta que denota um estado que teria existido, portanto mítico, antes do significante colocar sua ordem ao mundo. É por isso que se pode dizer que quando a voz surge sem o anteparo do significante, ela se apresenta como algo estranho, não traduzido, mas ao mesmo tempo absolutamente familiar. Esta presença, Lacan designa por uma matema: o objeto pequeno “a”.
Para melhor exemplificar esta presença, imagine-se em um país estrangeiro cuja língua e escrita são absolutamente diferentes e da qual não se tem nenhum conhecimento. Ao descer no aeroporto, ouvir e ver todas aquelas palavras estranhas que não se identifica, tem-se a impressão de que algo familiar, mas estranho. Pode-se inferir desta experiência o que se passa com um sujeito que não pode ter o seu grito traduzido. O que lhe retorna é apenas a voz, portadora apenas do sem sentido. Esta é uma das razões do porque se levar em consideração a presença da perplexidade, quando se fala do diagnóstico, pois será, sem dúvidas, um sinal de que a palavra que pode mediar a relação do sujeito com o mundo, com o que Lacan chamou de Real, não aconteceu.
Pode-se dizer, sucintamente, que o Real escapa todas as vezes que se chega perto dele. Por isso Lacan vai defini-lo, entre outras formas, como “fuga do sentido”. Pode-se, também, utilizar uma metáfora para melhor explicitar esta presença que escapa. A baía de Guanabara, p.ex: antes do aterro do Flamengo o mar chegava próximo ao Hotel Glória. Hoje se tem uma grande avenida e parques onde antes era o mar. Continuando com a metáfora, pode-se considerar o aterro como o efeito do Simbólico e o mar como o Real. Esta metáfora nos indica que a única noção que se pode ter do Real é a borda. Tem-se essa noção muito clara quando, se tropeça com o Real. Sente-se que ele está por ali em função da “tiquê” esse encontro faltoso e, às vezes, traumático que interrompe a rotina diária. Nesta perspectiva pode-se apresentar um outro exemplo: um acidente qualquer desorganiza o seu dia dizendo dos limites do simbólico pois, mesmo que este traga a possibilidade de um cálculo, o encontro com o Real diz de uma borda que, se ultrapassada, nos lança no reino do sem-sentido, exigindo do sujeito um trabalho de re-organização a partir deste encontro.
Miller, em seu Seminário “O lugar e o laço” chama nossa atenção para o que se pode denominar simbolicamente Real. Suponha-se um círculo que represente o Simbólico e um ponto, dentro deste círculo, que represente o Real. O círculo é o nosso dia organizado, nem sempre calmo, mas organizado. A ocorrência de acidente qualquer vai se apresentar na rede simbólica que se construiu, como um furo, denotando uma falha no sistema significante. Mesmo que, a tentativa imediata de se retomar o fio significante para re-organizar o dia, não impede que, neste momento, apareça a angústia, uma angústia que se designa como simbolicamente Real. Assim é porque existe um simbólico organizado que favorece, ou possibilita uma reação diante do tropeço no Real, e consequente mergulho no Real. Quando esse recurso não está disponível, quando o simbólico não pode emprestar sua estrutura a uma re-organização, este mergulho no Real não produz angústia, mas a perplexidade e o pânico. Esta hipótese se sustenta no fato de que a pouca organização que o simbólico pode alcançar quando não aconteceu a tradução do grito em palavra não é suficiente para delimitar, circunscrever a presença de uma falta – o objeto “a” – deixando-se permear, como um todo, por esta presença Real.
O que se conclui daí é que a angústia é um apanágio  neurótico. Não se pode atribuir a angústia ao psicótico. Ele pode até dizer-se angustiado, pois é a palavra que encontra para dizer do seu mal-estar, mas o que ele descreve é muito mais compatível com um estado de perplexidade ou pânico. O Real vai surgir fragmentando a organização desse sujeito, deixando-o à mercê desse Real que pode invadi-lo a qualquer momento.
A perplexidade, portanto, está ligada à  fuga de sentido. Se para o neurótico ela se apresenta pontualmente, quando algo escapa á compreensão, mas se organiza em seguida, na psicose acontece uma fragmentação do campo simbólico, fragilmente organizado, provocando o pânico e não a angústia.
(Continua)

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

As palavras e os corpos

Ao construir o seu Estádio do Espelho Lacan vai opor a forma total e plena da visão, ao que se constitui como o sentimento de incompletude do corpo como organismo. Este sentimento, consequência da deficiência específica do homem com respeito ao domínio motriz é do conhecimento de todos os que trabalham com a biologia e a neurologia. Esta oposição deixa clara a distinção entre a imagem e o corpo experimentado como organismo. Esta imagem que se apresenta como alteridade mostra-se, ao mesmo tempo, como semelhante produzindo um reconhecimento que permite ao sujeito constituir-se numa divisão que o faz tomar-se pelo Outro e, ao mesmo tempo mantê-lo afastado.
Esta brecha, presente no momento em que os dois campos se constituem como tal, mantêm-se viva pela atividade pulsional que, no seu movimento de ir e vir, nomeia o que do Outro não pertence ao registro do sujeito.
Este glorioso intervalo, tão bem explicitado pela pintura de Michelangelo na cúpula da Capela Cistina, no Vaticano (A Criação de Adão) coloca de um lado o sujeito e do outro o objeto que habita o vazio do campo do Outro. O objeto se apresenta, então, como uma negação, uma inversão das propriedades atribuídas ao sujeito.  
Esta pequena introdução nos diz que sujeito e o corpo, enquanto organismo, estariam separados por uma brecha que coloca o sujeito numa posição de ignorância a propósito do corpo e que é absolutamente necessária para que funcionemos. A verdade é que este elo perdido, esta ponte que fecharia o circuito entre o sujeito e o corpo não existe. Para dar conta deste impasse, Freud lançou mão de dois artifícios que se resumem nos conceitos de objeto perdido e na mitologia de sua teoria pulsional. Ao definir a pulsão, em seu famoso artigo “A pulsão e suas vicissitudes” ele a coloca exatamente na fronteira entre o somático e o psíquico, estabelecendo a ação do somático sobre o psíquico como sendo o que faz trabalhar a mente humana. Devemos entender esta ação do somático exatamente como o que de desconhecimento permanece sobre o funcionamento do corpo para a mente em questão (não se trata, obviamente, de um desconhecimento científico, pois até mesmo um médico, p.ex., padece deste desconhecimento sobre seu próprio organismo. A exceção fica por conta dos psicóticos a quem falta este glorioso intervalo onde uma pulsão pode se fazer valer).
É importante esclarecermos que denominarmos a teoria pulsional de mito nada tem de pejorativo. Um mito é uma história, um conceito, uma explicação que vai se interpor entre a linguagem, ou seja o que é possível de se dizer, e o real, ou seja o que se apresenta como impossível de dizer.
O corpo, que será um lugar Outro de onde o sujeito recortará os objetos que ele eleger como aqueles que estão em conformidade com o desejo do Outro, é portanto secundário, um efeito que surge como consequência de uma separação. Ele é consequência deste momento inaugural em que o sujeito constata que o objeto do qual ele se ocupava até então não lhe pertence, e nem tampouco àquele que ele constitui como Outro neste mesmo instante. Em outras palavras, podemos dizer que a construção do corpo, desse corpo secundário, é dependente da perda radical do primeiro corpo, do organismo real.
Ao dizermos "meu corpo" estamos, na verdade, nos referindo a três registros diferentes: 1 - o da imagem, que nada mais é do que este corpo que eu reconheço como meu. Este corpo corresponde ao que Freud chamava de EU, designado como uma projeção corporal. 2 - o do lugar do simbólico, que designa um lugar habitável por um sujeito e que, para isso, foi designado como tal muito antes do sujeito nascer e assim permanecerá para depois da morte. Este lugar que se constrói graças ao fato de que um significante qualquer estabelece a possibilidade de um ponto de capitonagem num certo conjunto de traços dando-lhe consistência e unidade. Este é o efeito de um "Nome Próprio" que se escreve em função da inscrição do que Lacan denominou como significante do Nome do Pai. 3 - como consequência da entrada do significante podemos ter acesso ao que de organismo real permanece. Este acesso acontece quando uma ruptura na tela protetora da fantasia fundamental produz a emergência do que Freud denominou de Unheimilich - o estranho familiar -. É nosso corpo que surge como radicalmente estranho. Nossa clínica está repleta de exemplos da angústia provocada quando um sujeito, habitualmente uma mulher, se percebe vista como apenas um corpo. Esta angústia se explica pelo fato de que sendo identificada apenas pelo que há de corpo, este sujeito se encontra desprovido, momentaneamente, tanto de sua imagem, quanto da possibilidade de se ver reconhecido no desejo do Outro.
Para dar conta disso que do corpo permanece fora da incidência do significante, Lacan elaborou o conceito de Gozo. Para chegar a esse conceito, ele parte dos paradoxos da satisfação que se ligam à pulsão, mais especificamente à pulsão de morte. O gozo, é importante esclarecermos, não é desejável, pelo contrário, há uma série de barreiras que o psiquismo constrói para tentar impedir a sua aproximação. Entre elas encontramos o prazer que está na base da reação que podemos denominar de animal e que se constitui no ato de fugir da dor e da tensão. Esta barreira encontra seus fundamentos no que Freud denominou o Princípio do Prazer. Outra barreira é o desejo que, fundado numa interdição, leva o sujeito a não ultrapassar certos limites no gozo, a não ser que sua opção denuncie a presença de uma vontade de gozo.
Neste ponto podemos abrir um pequeno parênteses para explicitar um pouco mais quais são os prejuízos que sofre o corpo pela entrada do significante: A perda que faz deste um deserto de gozo e a fragmentação que se apresenta na forma dos chamados objetos parciais. Dito de outra forma, onde o significante se apresenta, o gozo não é mais, restando somente aquele que se liga à repetição e que dissipa a perda da “Coisa”, fazendo do humano um ser ávido de reencontrar o que miticamente existiu e que foi descrito por Freud como causa da insatisfação constituinte. Entre a Coisa, lugar do gozo, e o sujeito determinado pelo significante, o encontro será sempre faltoso, pois esta divisão funda-se nesta impossibilidade mesma.
Neste espaço, portanto, é que vamos ver constituir-se o que se encontra no princípio mesmo de todo apetite sexual: a libido. A libido é o que faz buscar fora de si o que se acredita ser o objeto complementar. Se Aristófanes constrói o mito das metades das esferas para tentar explicar o amor, Lacan, a partir de Freud, nos fala da emigração da libido fora das fronteiras do corpo, fazendo dela um verdadeiro órgão, um instrumento para aumentar os limites do próprio organismo para além do seu envelope corporal. (Mito da Lamela)
A idéia mesma da libido, portanto, só pode ser concebida a partir de uma subtração, uma subtração de gozo que se define como castração. Esta subtração que vai fundar a libido como sendo um vetor em direção a um objeto, nós poderemos escrevê-lo utilizando o signo -j. É este signo, que vai conferir ao objeto pequeno a seu estatuto de causa de desejo: a/-j.
Se tomamos, por outro lado, o objeto a como o que resta deste gozo e que se encontra fragmentado e distribuído fora do corpo (muito bem ilustrado por Lacan quando ele se refere às sepulturas antigas, onde se encontram objetos ao lado do corpo) vamos nos dar conta do que é quando se trata da pulsão na sua versão de gozo. Lacan designa ainda uma outra versão para a pulsão que seria a versão significante, indicando que ela não existe sem o corte significante, pois está diretamente relacionada à demanda do Outro. São estas demandas que vão recortando o corpo e dando às bordas anatômicas seu caráter erôgeno, ao mesmo tempo que localiza o gozo como periférico, na medida que o objeto que vai condensá-lo está localizado como separado do corpo. Este é o objeto que Lacan nomeia como "mais-de-gozar", a partir mesmo do conceito de “mais valia” de Marx, para indicar o valor de compensação que ele evoca em relação ao menos que deu origem à libido. Então, se pelo efeito do significante alguma coisa se perde e não é restituída, pelo menos é em parte recompensada. Este objeto tem portanto uma dupla característica: por um lado ele é perdido e não poderá ser re-apropiado, estando preso em uma série de déficits, mas por outro lado, ele é também re-positivado, apresentado como gozo vivo, causa de desejo.
Em seu seminário Silet, JAMiller nos diz que “a falta do sujeito, como efeito do significante, está completada pelo objeto pequeno a. (Por isso) Lacan vai dizer, por exemplo, que esse objeto está ligado ao momento de "fading" do sujeito.”
Continuando no parágrafo seguinte, JAMiller esclarece que “esta solução da relação do sujeito ao objeto, que, no fundo, diz que a uma falta efeito do significante, a uma falta devido ao efeito mortificante do significante, responde este elemento de vida, este elemento de gozo vivo que é o objeto pequeno a é que diz também, enfim, em resumo, que isso que a alienação engendrada pela ordem significante chama a necessidade de um objeto é da ordem da castração significante ... tudo isso que é da ordem da castração  ... deve responder como um aporte suplementar, que Lacan designa como o objeto pequeno a, que produziu, em Freud, o conceito de pulsão.” 
Para finalizar, vamos introduzir o sintoma que, em sua relação com o corpo, poderá ser definido como sendo um gozo exilado no deserto deste corpo. A existência deste gozo só encontramos numa cifra que se oferece a descifração na esperança de que uma verdade seja desvelada. No entanto, no lugar de uma verdade desvelada, vamos verificar que, no final de uma análise, esta articulação poderá se desfazer abrindo espaço a uma nova cifração que acontece no momento em que uma retificação pulsional acontece.
Esta nova cifração é o que vai permitir uma passagem, aproveitando-se da própria estrutura do falasser, ao fazer existir a pluralização ali onde apenas a solução da fantasia fundamental se apresentava como resposta à demanda do Outro.
Ponto de destituição subjetiva que, desvelando a inexistência do Outro, devolve à estrutura congelada da fantasia fundamental (na estrutura da fantasia fundamental o que importa é a busca de um objeto, eleito como aquele do desejo do Outro, para produzir uma resposta adequada aos ideiais do Eu) sua possibilidade pulsional. Isto se confirma em Freud, quando ele nos diz que para a pulsão o objeto é secundário. O que interessa - e isso é fundamental na estrutura pulsional - é que o circuito se complete para produzir o que definimos como um gozo possível.