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segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A Função do Traço Unário e a Identificação ao Sintoma no Final de Análise

Neste texto destaco a função do traço na constituição do sintoma que leva um sujeito a análise, bem como o seu destino no final, propondo que o percurso de uma análise bem poderia ser resumido da seguinte forma: “Do sintoma da identificação à identificação ao sintoma”. Esta proposta nos diz que é possível redimensionar a função do traço que se decanta a partir da queda das identificações  -que, até então, sustentavam o sujeito na sua relação com o desejo do Outro -, num significante que permanece como ponto de articulação lógica, propiciando uma nova leitura do lugar do sujeito na sua relação com o Outro.
A instalação do Sujeito Suposto Saber é o que vem colocar um ponto de basta na circulação da angústia que, freqüentemente, se apresenta como sinal de uma desestabilização do sintoma. Esta significação que aí se produz, se faz a partir de um traço, o traço unário, que sustenta a transferência ao mesmo tempo em que, sob o signo do amor, possibilita ao discurso um giro de quarto de volta. Esse traço, este Sq, emprestado ao analista a partir mesmo do saber que sustenta a relação entre o significante da transferência e o significante qualquer no Outro, permanece até o final, permitindo que um tempo para compreender possa ser realizado. Sabe-se que esta é a solução que o sujeito, preso nas malhas do sentido que lhe propicia a cena de sua fantasia fundamental, busca para continuar sem nada saber do que causa seu desejo. É por isso que dizemos que o Sq não é qualquer significante, mas sim um significante que porta o traço unário que diz do objeto que constitui a cena da fantasia fundamental para cada sujeito. Estando, portanto, articulado, é por isso mesmo que ele não é articulável, impedindo que a terapêutica que pretende se sustentar na sugestão encontre sua eficácia. 
Tendo como função primordial a sustentação do terreno da transferência onde a batalha poderá ser vencida, o analista deverá aceitar o que lhe é oferecido mas, ao mesmo tempo, estar advertido que seu lugar é aquele que permite a constituição de um semblante, para que o objeto pequeno "a" possa reinar, possibilitando ao inconsciente, efeito do significante e estruturado como uma linguagem, ser retomado como pulsação temporal. Quando o analista, por uma razão ou outra não se coloca nesta posição, ele estará impedindo o “acontecimento imprevisto”  e privando o sujeito de saber das suas consequências. Na verdade, ele vai estar impedindo a abertura deste instante onde o saber e a verdade se tocam em um ponto de contingência, sem dúvida, mas que possibilita os efeitos de uma pulsação da falha de onde um traço de luz pode jorrar. Poder suportar este lugar e sustentá-lo a partir de um desejo, que Lacan definiu como inédito, é poder abrir-se ao novo. 
É na esperança de poder responder à demanda do Outro, que o analisante busca, imediatamente, uma identificação ao traço que foi emprestado ao analista. Esta identificação como sintoma só produz uma solução parcial, uma vez que, sustentada na metáfora paterna, sua resposta ao enigma do desejo da mãe apenas relança a curva pulsional nos caminhos balizados pelos ideais. 
Este circuito infernal regido pela monotonia da fantasia fundamental, no entanto, pode ser interrompido num momento preciso: os signos da atividade da cena da fantasia fundamental, que se apresentam nas cenas repetitas nas sessões sob o disfarce de rituais, propiciam uma intervenção do analista que vai incidir, exatamente, no acontecer da sessão analítica, abrindo caminho para o sujeito dar um passo a mais e confirmar a sua decisão pela análise em detrimento do sintoma da identificação ao traço emprestado ao analista. Trata-se de uma intervenção muito precisa: diante da demanda do analisante em fazer uma certa “negociação”, o analista responde com um simples “aqui não há negociação!”
Esta intervenção no sintoma que se constituiu no marco da Sessão analítica, propiciou um primeiro ponto de virada na história de uma análise ao evidenciar a impossibilidade de se retomar o sentido sustentado pela estrutura da fantasia fundamental. Foi uma intervenção que, promovendo o acontecimento imprevisto, deu oportunidade a que o Real que aí se desvelou pudesse se colocar em condições de ser tratado pelo simbólico. Um sonho, que se concluiu com a notícia da morte de uma mulher despertando o sujeito, testemunhou disso. 
Um ato só poderá ser julgado na sua sequência, a partir das conseqüências que dele advêm. Este sonho, que disse de um ponto de atravessamento da cena da fantasia fundamental, implicou o sujeito ali, onde o Outro falta. Se, até então, o sujeito tinha seu pequeno "a" num lugar que lhe permitia satisfazer-se a partir de um certo circuito pulsional congelado em seu sentido, era porque ele nada queria saber do objeto "a" como causa de seu desejo. Na verdade, a cada volta , a cada satisfação alcançada, o que restava era um mal-estar dizendo da presença insistente de um mais-de-gozar. Sabemos que o objeto enquanto mais-de-gozar porta a marca de um Real, digamos, não subjetivado. Em outras palavras traz a presença da castração da qual nada se quer saber, por isso a insistência do mal estar.  Para que uma retificação pudesse acontecer, portanto, foi necessário “ir olhar o Outro”, pois no plano do desejo, depende do Outro isso andar ou não. O movimento de “ir olhar o Outro” é o único que autoriza o ato que, neste caso, se resumiu em: “aqui não há negociação”. Este ato interrompeu o ritual que sustentava a monotonia da cena da fantasia fundamental, apontando a falta de um significante que pudesse estabelecer uma “negociação” ou, em outras palavras, afirmou a impossibilidade da “relação sexual”. Foi esta a intervenção do analista que abriu caminho para que uma retificação ao nível da pulsão pudesse acontecer: o que, até então, era o colocar em ato um sentido congelado, regido pela estrutura da fantasia fundamental, pode apresentar-se, agora, na realidade pulsional do inconsciente.
Partindo, pois, do “sintoma da identificação” o sujeito foi desconstruíndo a palavra até obter dela seu valor de letra, o valor de significante enquanto escrito: S(A/) “O S, o verdadeiro significante de A/ - o que do significante permanece, uma vez que se eliminou a palavra”. Esta é a escritura que permite ao ser falante subtrair-se aos artifícios do inconsciente, ao mesmo tempo em que deixa claro o que do inconsciente pode se traduzir por uma letra: “que o desciframento se resuma ao que constitui a cifra, ao que faz com que o sintoma seja, antes de tudo, algo que não cessa de escrever-se do real...". Assim posto, uma nova identificação pode acontecer, uma identificação que não é ao inconsciente. Identificar-se ao inconsciente está fora de cogitação pois, como nos diz Lacan, “o inconsciente permanece, o inconsciente permanece Outro”. A identificação da qual se trata, quando falamos em final de análise, é à letra do sintoma, àquela que, uma vez rompido o circuito pré-estabelecido pelo sentido congelado da fantasia fundamental, poderá tornar-se um traço que desvela a alíngua como corpo do Simbólico e enlaça o corpo do Imaginário ao corpo do Real fazendo consistir os três termos Real, Simbólico e Imaginário. Esse é o caminho que culmina na transformação da experiência da fantasia fundamental, em pulsão, ao restabelecer o vazio do lugar do objeto pulsional. Este vazio que só se sustenta como tal pela função do traço unário que escreve a letra singular a cada sujeito. Singular tanto no que ela tem de mais particular quanto no que apresenta de determinante no destino do ser falante. 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Os enigmas do masculino (III)

Os enigmas do masculino (III)O Seminário V: “As formações do inconsciente” de Lacan, na lição do dia 05/03/58 nos possibilita dar um passo a mais. Nesta lição Lacan vai trabalhar o que podemos chamar de vestimentas fálicas, roupagens com que se apresentam os sujeitos diante do real do sexo. Sabemos que o que vai caracterizar a posição perversa como recusa da mediação simbólica, ou até mesmo diante da falha no simbólico [S(A/)], é uma extrema valorização da imagem: “se trata de uma projeção disso que não se cumpriu na ordem simbólica, sobre o eixo imaginário”.
Após comentar sobre a ‘mascarada’ de Joan Riviére, com sua “assunção de todas as funções masculinas” e fazer um longo estudo sobre a escolha de Gide, Lacan passa a trabalhar com a comédia ‘O balcão’ de Jean Genêt.  
Por que comédia? Digamos que é para: “pela intervenção de um parecer que se substitui ao ter, para proteger (o sujeito) de um lado, para aí mascarar a falta no Outro, e que tem por efeito proteger inteiramente as manifestações ideais [I(a)] ou típicas do comportamento de cada um dos sexos, até o limite do ato da cópula ...”. A comedia não é o cômico. Para tomar apenas uma referência que nos fornece Lacan, podemos dizer que a comédia é aquele momento onde o sujeito toma sua relação à fala não como sendo seu ‘affaire’, mas como algo que, ao se articular ele mesmo como aquele que aí goza, ... está destinado a absorver a substância, a matéria. “A comédia, podemos dizer, é qualquer coisa como a representação do fim da refeição comunitária, a partir da qual a tragédia, ela mesma, invocou. É o homem, ao final das contas que consome tudo isso que esteve aí presente de sua substância e de sua carne, e se trata de saber isso que isso vai dar.” Ora, o que isso vai dar é que o seu próprio significado, ou seja, “ fruto da relação significante, vai surgir efetivamente sobre a cena da comédia plenamente desenvolvida. É esse termo que designa ele mesmo necessariamente, enquanto ele é significado, quer dizer, enquanto ele recolhe, ele assume, ele goza da relação a um fato que está, fundamentalmente, numa certa relação com a ordem significante, a aparição desse significado que se chama falo.”
É neste contexto que se apresenta, neste seminário de Lacan, “O Balcão” de J. Genêt, onde nos é apresentado, sob a forma da perversão, o que é definido por uma linguagem crua como sendo “todo o bordel no qual vivemos, na medida que é como toda sociedade, sempre mais ou menos em estado de degradação, pois a sociedade, continua Lacan, não sabe se definir de outra forma senão por um estado mais ou menos avançado de degradação da cultura”.
É neste estado de degradação, colocado a céu aberto pela confusão que se estabelece no momento em que a peça se desenvolve, é que vai “colocar em causa a relação do sujeito com a função da fala”. 
É neste contexto de total desordem que toda a manutenção da ordem vai se estruturar em torno do que se chama a polícia, encarnada pelo “resíduo de todo poder, o chefe de polícia”, o herói da peça.
Neste jogo de imagens, onde cada qual é somente pelo que o espelho lhe diz só se sustentando pela confirmação do outro, o Chefe de Polícia se encontra fora da “Nomenclatura”, como se denomina a lista dos que já tiveram suas “funções elevadas à uma nobreza suficiente para propor aos sonhadores uma imagem que os console”. Em outras palavras, como nos diz Lacan, o Chefe de Polícia não havia ainda sido elevado à dignidade dos personagens em cuja pele nos podemos gozar. 
O que é que pode ser gozar de, p. ex. seu estado de bispo, de juiz ou de general? O que nos apresenta este artifício é uma Casa das Ilusões onde, efetivamente, isto que se produz ao nível do Ideal do Eu. Isto não é, como se pode pensar, o efeito de uma duplicação do sentido onde a neutralização progressiva de funções enraizadas no interior é esperada, mas sim algo que “é sempre mais ou menos acompanhado de uma erotização da relação simbólica”. Em outras palavras, “gozar de seu estado com essa alguma coisa (...) essa alguma coisa com a qual ele se coloca em relação com uma imagem, com uma imagem portanto, na medida que ela é o reflexo de algo essencialmente significante”.
É este quadro que vai sendo desenhado por Gênet, levando cada um dos personagens a, pouco a pouco, ocuparem imaginariamente lugares de poder. A dona do bordel, p. ex. se transforma em rainha ...
O destino do chefe de polícia, é que vai dar o tom à peça na medida em que ele busca, insistentemente “seu lugar imaginário onde ele pode encontrar, nem que seja por um instante, uma satisfação difícil a obter”. Nesta busca ele apela para suas funções enquanto sendo o último baluarte da ordem, situação esta que não carece de significação se lembrarmos, com Lacan, “que a descoberta do Ideal do Eu foi, em Freud, coincidente com a inauguração deste tipo de personagem que oferece à comunidade política uma identificação única e fácil, a saber o ditador”.
É neste ponto que o chefe de polícia assusta a todos que o circundam ao propor o que será o símbolo de sua função, um falo. Após questionar a igreja, a magistratura e o exército sobre a conveniência de sua escolha, o chefe de polícia é levado a assistir a performance de alguém que havia, pela primeira vez, feita a opção de gozar de sua imagem. 
O desfecho desta cena mostra o freguês do bordel, sendo impedido pela prostituta de levar o personagem que escolheu ao ponto de seu destino, exclama no momento em que estava sendo retirado do local: “Nada! Não me resta mais nada! Mas ao Herói não restará grande coisa ...” e, dando as costas ao público, faz o gesto de se castrar.
Para concluir esta série de informações e articulações que, espero, possam trazer mais perguntas que respostas, relembro a pequena passagem do Silet de J.A. Miller, já citada no início deste seminário, quando ele nos fala do exemplo que Lacan nos fornece em seu Seminário VI da análise de um caso de exibicionismo reacional. “Trata-se, no fundo, nos diz Miller, de um comportamento exibicionista induzido por um momento da elaboração simbólica tal que ela se repercute na análise e testemunha um falha. A esta falha, a este déficit simbólico responde esse comportamento que consiste a apresentar ao Outro anônimo uma imagem fálica”.  De alguma maneira é o que pudemos ver se desenrolar no relato da peça de J. Gênet, ou seja, “na falta de uma harmonia com o símbolo viril, o sujeito apresenta ao Outro a imagem fálica (...) o que caracteriza a posição perversa como uma recusa da mediação simbólica, o que é correlativo de uma valorização da imagem, fôrma da perversão.” 

Mas, afinal, quais são os enigmas do masculino? Será que o “fato da feminilidade encontrar seu refúgio nesta máscara (fálica) pelo fato da Verdrängung inerente à marca fálica do desejo, (e) a curiosa consequência de fazer com que no ser humano o desfile viril, ele mesmo pareça feminino”, pode nos levar a pensar que, afinal de contas, o enigma do masculino é o feminino?

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Os enigmas do masculino (II)

Ora, esta solução encontrada por Lacan e que vai estruturar, basicamente, a relação do sujeito e do objeto, vai nos dizer que o que existe fundamentalmente é uma falta, “que é efeito do significante, que à falta devido ao efeito mortificante do significante responde este elemento de vida, este elemento de gozo vivo que é o objeto pequeno ‘a’, que diz também, enfim, resumidamente, que isso que a alienação engendra pela ordem significante conclama a necessidade de um objeto (...) à tudo que é da ordem da castração significante, da perda de vida que vai com o significante, portanto, deve responder como um aporte suplementar, que Lacan designa como objeto pequeno ‘a’ e que tem a necessidade, em Freud, do conceito de pulsão”.
Esta articulação do objeto ‘a’ e pulsão é fundamental para se dar mais um passo nesta discussão que - é importante destacar aqui, parte de um não saber. Sim, o tema proposto nos coloca diante de um não saber fundamental pela novidade do tema, ao mesmo tempo que nos deixa em condições de repensar conceitos que, até então, acreditávamos muito bem estabelecidos - vai desembocar no conceito de falo. J.A. Miller, neste seminário que tantas vezes já foi mencionado aqui, discute a evolução do ensino de Lacan tomando um conceito: Pulsão. Ele nos diz que num primeiro momento Lacan vai colocar o conceito de falo no mesmo lugar que Freud coloca o conceito de pulsão: entre o simbólico e o imaginário, ou, em termos freudianos, como um “conceito limítrofe entre o somático e o psíquico, o representante psíquico da demanda feita à mente, pelo corpo, para que ela trabalhe...” Esta demanda feita pelo corpo à mente para que esta trabalhe é, como desenvolve Freud, consequência do recalque originário. Em outras palavras, o conceito de pulsão em Freud, tornou-se necessário pelo recalque do significante que diz do sujeito do inconsciente. Partindo desta premissa, Lacan vai nos dizer no seu texto “Posição do inconsciente” que o lugar do eu (je) recalcado é o lugar do gozo, ou seja, aí onde há o recalque, aí onde o sujeito não é passível de ser identificado por um significante, ele pode ser cercado ao nível da pulsão na presença do objeto. (Importante lembrar que se uma retificação há de ser feita, ela se localiza ao nível da pulsão, Lacan, S.XI)
Objeto ‘a’, pulsão, falo, conceitos que foram sendo trazidos para esta discussão, à medida que se desenvolveu o tema do enigma, mais especificamente dos enigmas do masculino. 
Porque O enigma do feminino e OS enigmas do masculino? 
Para tentar fazer avançar a discussão, parto da seguinte proposição de Lacan que se encontra no texto “A significação do falo”. Peço-lhes permissão para trazer um pequeno trecho, uma vez que ele poderá sustentar o debate que, tenho certeza, vai se seguir: 
“O falo aqui, se esclarece de sua função. O falo na doutrina freudiana não é um fantasma, se é preciso entender por aí um efeito imaginário. Ele também não é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, mau, etc...) na medida que este termo tende a apreciar a realidade interessada numa relação. Ele é menos ainda o órgão, pênis ou clitóris que ele simboliza. E não é sem razão que Freud tomou a referência do simulacro que ele era para os Antigos.
“Pois o falo é um significante, um significante cuja função na economia intrasubjetiva da análise eleva, talvez, o véu disto que ele tem nos mistérios. Pois é o significante destinado a designar no seu conjunto os efeitos de significado, na medida que o significante os condiciona pela sua presença de significante.”
Mais adiante, após dizer que “o falo é o significante privilegiado desta marca onde a parte do logos se conjuga ao advento do desejo”, Lacan aponta este significante privilegiado como “o mais destacado disso que podemos apreender no real da cópula sexual, assim como o mais simbólico no sentido literal (tipográfico) desse termo, porque ele aí equivale à cópula (lógica). Podemos dizer também que ele é, por sua turgidez a imagem do fluxo vital na medida que ele passa na geração”.
Continuando ainda com Lacan, “todos esse propósitos nada mais fazem que velar o fato de que ele não pode representar seu papel senão velado, quer dizer como signo ele mesmo da latência da qual é atingido todo significado, desde que ele seja elevado (aufgehoben) à função de significante.”
O fato de ser o falo o significante da marca da conjunção do logos e do desejo, a marca da refenda do sujeito a partir da diferença que resulta da subtração do “incondicional da demanda” à “condição absoluta do desejo”, vai estabelecer um “campo feito para que aí se produza o enigma que a relação (sexual - pois ela é que vai ocupar esse campo fechado do desejo, é aí que ele vai jogar sua sorte) provoca no sujeito ao lhe “significar” duplamente: retorno da demanda que ele suscita, em demanda sobre o sujeito do desejo....”.
O falo, portanto, sendo um significante vai engendrar significações. Estaria aí uma razão para falarmos em OS enigmas?

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Os enigmas do masculino (I)

Partirei, hoje, de perguntas tais como “O que é enigma?” De qual enigma falamos quando nos propomos a trabalhar ‘Os enigmas do masculino’? Por que se fala em “enigmas” do masculino, utilizando um substantivo no plural, enquanto que para se falar de “enigma” do feminino se utiliza o singular? O falo poderia ser colocado como sendo o enigma do masculino, e a multiplicidade seria o que é próprio de sua  estrutura?
Em seu seminário Silet, J. A. Miller trabalhou cuidadosamente o conceito de falo na obra de Lacan, partindo da relação que existe entre o conceito freudiano de pulsão  (“A pulsão, do ponto de vista do biológico, é um conceito limítrofe entre o somático e o psíquico, o representante psíquico da demanda que o corpo faz a mente para trabalhar ...”) e o conceito de falo que Lacan desenvolve a partir do seu Discurso de Roma, mas principalmente no Seminário IV: A relação de objeto, como o que se encontra no limite entre o Imaginário e o Simbólico. 
O eixo de nosso texto deverá partir da afirmação de J.A.Miller que “a toda falha simbólica responde uma inserção imaginária”. Isto para dar conta de um caso, descrito por Lacan no seu Seminário IV, que apresentava o que ele chamou de um “exibicionismo reacional”. Este consistia, para este determinado sujeito, em exibir seu pênis no momento em que um trem passava em grande velocidade. “Se trata, diz Miller, de um comportamento exibicionista induzido por um momento da elaboração simbólica tal que ela se repercute na análise e testemunha uma falha. A esta falha, a esse déficit simbólico responde esse comportamento que consiste a apresentar ao Outro anônimo uma imagem fálica...”
O que é o enigma? 
Eric Laurent, num texto que se encontra publicado na Revue de Psychanalyse, La Cause Freudianne, nº 23 e que se intitula: “Enigme & Psychose” à pag. 43, nos diz que “segundo Littré, o enigma é a definição de coisas em termos obscuros, mas que reunidos, designam exclusivamente seu objeto e são dados à adivinhar”. Para iniciar seu texto ele esclarece com um exemplo: “Não sou o que sigo, pois se fosse o que sigo, não seria o que sou”. A solução deste enigma é: “um criado (valet)”. Na verdade, em português este enigma perde em parte sua condição de enigma, pois este se sustenta na homofonia existente entre os verbos “être”(ser) e “suivre” (seguir), em francês: “Je ne suis pas ce que je suis, car si j’étais ce que je suis, je ne serais pas ce que je suis”.
Este exemplo tomado de E. Laurent, não só ilustra o fato de que o enigma se sustenta nos fatos da língua e não na realidade factual, como demonstra que, por ser fundamentalmente um fenômeno da enunciação, ela escapa ao sentido preestabelecido e diz de um certo impasse quando tentamos traduzi-lo.
Dentro desta perspectiva do enigma, o ensinamento de Lacan pode ser dividido em três momentos: 
1 - De início o enigma é abordado no ensinamento de Lacan a partir do sentido e de sua fuga. Pode-se sustentar, para dizer isto, lembrar-lhes que, nesta fase Lacan desenvolvia sua teorização a partir da barra que mantinha separados significante e significado. Sua proposta girava em torno da possibilidade de o simbólico recobrir todo o campo do imaginário, ficando o desejo como um X, um enigma que desliza metonimicamente a partir da significação produzida pela ação da metáfora paterna. O “esquema L” e a “Metáfora Paterna” são matemas que podem resumir bem o que lhes digo, assim como os “textos “Discurso de Roma”, “Questão Preliminar...” e “Instância da Letra ...” são nossa referência. 
2 - Num segundo momento, vê-se Lacan deslocar o enigma do sentido para uma “significação segunda, significação de significação”, como nos diz Laurent. Este momento pode ser situado entre os anos 57-64, quando Lacan vai produzir o seu Grafo do Desejo e concentrar parte de seu estudo ao conceito de Falo. Desta forma o enigma passa a ser a significação produzida pela ação do significante, “que é o objeto mesmo da comunicação”. “Trata-se de fato de um efeito do significante, à medida que seu grau de certeza (...) toma peso proporcional ao vazio enigmático que se apresenta primeiramente no lugar da própria significação”
Os textos da “Direção da Cura...”, “Observações sobre o Relatório de Daniel Lagache” e, principalmente “A Significação do Falo”, marcam esta passagem na teorização de Lacan. É interessante assinalar, “en passant”, que é por estar sustentado nesta proposta da significação que Lacan vai dizer, na “Direção da Cura...”, que “A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que aí se compõem, alguma coisa que subitamente torna a tradução possível...”  Este processo de tradução, que na psicose é substituído pelo delírio, vai dizer “que é a título de elementos de discurso particular, onde esta questão no Outro se articula (...) (que) sua cadeia mostra subsistir numa alteridade em relação ao sujeito, tão radical quanto a dos hieróglifos ainda indecifráveis na solidão do deserto”. 
3 - Finalmente, a partir mesmo da revisão que Lacan faz de sua teorização do falo e do objeto da psicanálise, ao retomar os conceitos fundamentais freudianos e em especial a pulsão, é que vamos vê-lo “se referir diretamente à experiência de gozo que é o verdadeiro enigma. No momento em que o sentido se ausenta do mundo, o sujeito é deixado vazio de significação, invadido por esta presença que é a experiência de gozo. Enigma fundamental para o ser falante, ele nada tem a ver com uma liberação das alegrias do sexo”. 
Este deslocamento só foi possível, como nos diz J. A. Miller em seu seminário Silet, na medida em que Lacan foi, passo a passo deixando de lado a formalização proposta onde o simbólico se apresenta recobrindo todo o imaginário, a partir mesmo da barra do algoritmo S/s, para estabelecer que na relação do simbólico com o real o que está em jogo é um corte que deixa um resto, na medida mesmo em que o simbólico não dá conta de recobrir todo o real. “Acompanhamos no  ensino de Lacan, nos diz Miller, um deslocamento que, no fundo, faz passar, para qualificar a operação significante, da barra ao corte. A barra suprime, a barra apaga, a barra mata, a barra risca, e vem outra coisa. Enquanto que o corte, como marca do significante, ele corta, e por isso mesmo ele deixa um resto. E, durante todo o tempo, digamos antes do objeto ‘a’, Lacan fala da barra do significante, mas a partir do momento em que ele promove o objeto pequeno ‘a’, ele fala do corte, isso que ele promove correlativamente, é o corte significante.”