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sábado, 5 de dezembro de 2015

Sobre “O Balcão” de Jean Genet - Uma formalização (II)

     
O esquema R, de Lacan, pode nos servir de orientação neste ponto. O eixo lateral phi à I e o eixo I à P esclarece que no lugar de se constituir um Ideal do eu - que nos diz da simbolização do falo como produto da castração, do Édipo - verifica-se a transformação em imagem deste falo. Esta inversão do vetor na direção do phi esclarece, por sua vez, o ponto onde a castração não pode fazer barreira a este imaginário que aí prolifera.
Em seu texto sobre Kant com Sade, Lacan nos lembra que é neste ponto que vamos ver surgir uma vontade de gozo onde um desejo deveria acontecer, deixando o sujeito, como disse certa vez um paciente, "escravo do prazer". 
Neste ponto de nossa elaboração, acredito podermos pensar um eixo que parte de uma afirmação de J-A. Miller, em SILET: "a toda falha simbólica responde uma inserção imaginária"(15) e que pode ser articulada com a questão do enigma, com a questão deste lugar da significação que, na Metáfora Paterna, permanece como um X. 
Eric Laurent, em um texto sobre "Enigma e Psicose" (16) nos diz que, "segundo Littre, o enigma é a definição de coisas em termos obscuros, mas que reunidos, designam exclusivamente seu objeto e são dados à adivinhar". 
Dentro da perspectiva do enigma, o ensinamento de Lacan pode ser dividido em três momentos: 

1 - De inicio o enigma é abordado a partir do sentido e de sua fuga. Lembro-lhes que, nesta fase Lacan desenvolvia sua teorização a partir da barra que mantinha separados significante e significado. Sua proposta girava em torno da possibilidade do simbólico recobrir todo o campo do imaginário, ficando o desejo como um X, um enigma que desliza metonimicamente a partir da significação produzida pela ação da metáfora paterna. 

2 - Num segundo momento vemos Lacan deslocar o enigma do sentido para uma "significação segunda, significação de significação", como nos diz Laurent. Desta forma o enigma passa a ser a significação produzida pela ação do significante, "que é o objeto mesmo da comunicação".

3 - Finalmente, a partir da revisão que Lacan faz de sua teorização do falo e do objeto quando retoma os conceitos fundamentais freudianos, é que ele vai "se referir diretamente à experiência de gozo como sendo o verdadeiro enigma. No momento em que o sentido se ausenta do mundo, o sujeito é deixado vazio de significação, invadido por esta presença que é a experiência de gozo. Enigma fundamental para o ser falante, ele nada tem a ver com a liberação das alegrias do sexo"(17). 
Este deslocamento, do sentido e sua fuga para a experiência do gozo, só foi possível à medida em que Lacan foi, passo a passo, deixando de lado a formalização onde o simbólico se apresenta recobrindo todo o imaginário, a partir mesmo da barra do algoritmo S/s, para estabelecer que na relação do simbólico com o real o que está em jogo é um corte que deixa um resto. 
Ora, esta solução encontrada por Lacan e que estrutura, basicamente, a relação do sujeito e do objeto vai nos dizer que o que existe fundamentalmente é uma falta, "que é efeito do significante e que à falta devido ao efeito mortificante do significante responde este elemento de vida, este elemento de gozo vivo que é o objeto pequeno a (...), que tem a necessidade, em Freud, do conceito de pulsão"(18).
Esta articulação entre objeto a e pulsão é fundamental para darmos mais um passo que vai desembocar no conceito de falo, uma vez que é exatamente do lado deste conceito que está o complemento de vida a que faz alusão J-A. Miller na citação acima. Conceito que, desde a antiguidade até nossos dias, se apresenta como a grande imagem do fluxo vital. "Por isso Lacan pode dizer aqui, nos lembra Miller(19), que o vivo do ser do sujeito encontra seu significante no falo."(20) O paradoxo do falo se constitui exatamente no fato de ele ser, por um lado o que está pressuposto significar a vida, mas, sendo um significante, haver nele algo da morte. 
O falo será pois, o significante, a marca da conjunção do logos e do desejo, da morte e da vida. Pode-se dizer que ele é a marca da refenda do sujeito a partir da diferença que resulta da subtração do "incondicionado da demanda" à "condição absoluta do desejo". Isto vai estabelecer um "campo feito para que aí se produza o enigma que a relação sexual - pois ela é que vai ocupar esse campo fechado do desejo, é aí que o sujeito vai jogar sua sorte - provoca no sujeito ao lhe "significar" de maneira dupla: retorno da demanda que ele suscita, em demanda sobre o sujeito do desejo...."(21). 
No Seminário sobre "As formações do Inconsciente" nos deparamos com o que se pode chamar de vestimentas fálicas, as roupagens com que se apresentam os sujeitos diante do real do sexo. Sabemos que o que vai caracterizar a posição perversa como recusa da mediação simbólica, ou até mesmo diante da falha no simbólico [S(A/)], é uma extrema valorização da imagem: "se trata de uma projeção disso que não se cumpriu na ordem simbólica, sobre o eixo imaginário"(22). 
A peça "O balcão", de Jean Genet, fornece subsídios para se pensar a função da comédia através desta realização cênica onde o sujeito toma sua relação à fala não como sendo seu “affaire", mas como algo que, ao articular-se, ele mesmo, como aquele que aí goza, ... está destinado a absorver a substância, a matéria. A consequência disto é que o seu próprio significado, ou seja, "fruto da relação significante, vai surgir efetivamente sobre a cena da comédia plenamente desenvolvida (...) numa certa relação com a ordem significante (ou seja): a aparição desse significado que se chama falo."(23) 
Neste momento de sua elaboração teórica, Lacan atribuía a função de enigma, como se disse no inicio, "ao desejo como um x que desliza metonimicamente". Lembro-lhes que o falo, sendo o significante do desejo, é o que não pode ser atingido, porque "o falo ... é uma sombra (...) escorregando sempre entre os dedos"(24). 
Em seu Seminário RSI, Lacan retoma esta temática do falo para nos dizer, mais uma vez, do seu caráter essencialmente cômico. Após dizer que no horizonte de “um menos” e de “um mais” é onde se insere o gozo, ele assinala este ponto ideal, que é o falo, a essência do cômico no ser falante: "desde que se fale algo que tem uma relação ao falo, é o cômico - que nada tem a ver com o chiste. O falo é cômico como todos os cômicos - triste"(25). Esta citação de Lacan se articula, pode-se pensar, com o que ele mesmo disse 20 anos antes: "A comédia, podemos dizê-la ser a representação do fim da refeição comunitária a partir da qual a tragédia mesma foi evocada"(26). 
Este esforço para separar o cômico do chiste, já o sabemos desde Freud que, no seu texto "O chiste e sua relação com o inconsciente" assinalou que, enquanto no cômico são os muitos elementos imaginários que provocam risos, exatamente por sua relação ao ridículo com que se apresentam nas mais variadas formas de comportamento, o chiste vai se distinguir por seu elemento linguístico. Pode-se dizer que "a intenção do chiste é, antes de tudo, produzir prazer"(27) a partir de uma certa articulação significante que não deixa de inserir algo do enigma e sua resposta. 
Esta diferenciação entre o chiste e o cômico vai, também, nos auxiliar a acompanhar o desenvolvimento da peça até o ponto onde surge o desvelamento da inutilidade do uniforme fálico que os personagens utilizam (O Bispo, O General e O Juiz). O próprio ato de castrar-se, executado pelo indivíduo fantasiado de "chefe de polícia" (cuja roupa era uma pantomima do falo), deixa "claro que aquele que representa o desejo simples, o desejo puro e simples,(...) encontra seu assento, sua norma e sua redução a qualquer coisa que possa ser aceita como plenamente humana, e que só se reintegra á condição, precisamente, de se castrar, quer dizer, de fazer com que o falo seja qualquer coisa que seja, de novo, reduzida ao estado de significante ..."(28) 
O enigma não faz referência á condição do falo como um significante puro e simples, mas sim à letra, suporte material do significante, suporte da interpretação e do que mantém a borda do buraco do simbólico. É este buraco que vai produzir a fuga do sentido, ao furar o texto. Este furo, este buraco do simbólico que Lacan adjetiva de inviolável(29) tem, entre suas várias virtudes a de fazer enigma mantendo o interesse pela escritura e conferindo um poder a quem sabe decifrá-lo(30). 
O falo, no entanto, enquanto tentativa de pluralizar-se em imagens, nada mais é do que o cômico, como demonstra o estudo que faz Lacan da peça de Jean Genet e como, de alguma forma, nos diz o perverso quando expõe seu pênis ao tentar fazer frente à falta no Outro. 
Assim, do enigma ao cômico, vemos oscilar o paradoxo do falo que vai se traduzir nas mais diversas formas do que é "o coração da relação do sujeito ao significante (...) a identificação"(31). 


Notas:

15) Miller, J-A., "Silet", Seminario 94-95, inedito 

16) Laurent, E., "Enigme & Psychose", Revue de Psychanalyse, La Cause Freudianne, nº 23, pag. 43. 
17) Laurent, E. "Deficit ou énigme" in Revue de Psychanalyse, nº 23, ECF, pag. 3-4 

18) Miller, J.A., "Silet", Op.Cit 

19) Idem, "L'interpretation", seminário inédito, curso de 28/02/96. 

20) Cf. Lacan, J., in Écrits, Ed. Seuil, Paris, 1966, pag. 693. 

21) Lacan, J., "La signification du Phallus", in Ecrits, Editions du Seuil, Paris, 1966 pag. 691 

22) Miller, J. A. "Silet" op.cit., curso de 13/06/95 

23) Ibidem. 

24) Lacan, J., "Hamlet" in ORNICAR? nº 26/27, pag. 42-43. 

25) Idem, "RSI", Liçao de 11/03/75 in ORNICAR? nº 5, pag. 17. 

26) Idem, "As formaçoes do inconsciente", Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999, pag. 272. 

27) Miller, J-A., "L'interpretation", seminário 95-96, inedito, curso de 20/03/96. 

28) Lacan, J., "As formações do inconsciente", op.cit. pag. 279. 

29) Lacan, J., "RSI" Op. cit. 

30) Cf intervenção de Bernard Nominé no Seminário de J-A. Miller, curso de 20/03/96. 

31) Miller, J-A., "L'interpretation" Op. cit., curso 20/03/96.