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segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Sobre a estrutura dos discursos - (II)

Começo por “este aparelho de quatro patas, com posições que servem para definir os quatro discursos radicais”, criados por Lacan, a partir da incidência do Discurso analítico. 
Já comentei sobre a importância da exterioridade do S1 em relação ao campo do grande Outro, onde se encontra o conjunto de todos os outros significantes que ali se colocam de forma a constituírem uma bateria significante que não temos nenhum direito de concebe-la como dispersa, pois formam um campo que se apresenta estruturado como um saber. A este campo pode-se supor um saber que é o sujeito, pois, estando representado por um significante para outro significante, ele representa este traço específico que o distingue como indivíduo vivo. Este traço, que ele toma como Um e que vai repetir-se a cada vez que um discurso se articula determina o ponto onde o gozo do Outro deixa a sua marca. Por isso Lacan chama “saber” ao gozo do Outro. Há um saber em jogo aí e do qual nos resta um ponto específico que se escreve na álgebra lacaniana como objeto pequeno “a”. 
Desta forma podemos articular nos quatro pontos da estrutura os quatro elementos que já defini anteriormente e que aqui repito:



S1 – este traço distintivo que é também o que inaugura a experiência do sujeito marcando uma separação e, ao mesmo tempo, se colocando em posição de poder intervir no Outro enquanto campo do saber. Por isso pôde-se dizer que é nesta função de significante que se apóia a essência do Mestre. 
S2 – O saber que se estrutura a partir de uma bateria de significantes que se organiza ao redor de um furo e que se apresenta pela extração do gozo a partir da intervenção do S1. Aqui se organiza um saber próprio do escravo, nos diz Lacan, o escravo da antiguidade quando este participava da família e se caracterizava pelo saber-fazer. O S2, portanto, enquanto encarna este saber que não se sabe, mas que se presta à subtração pela operação do Mestre. Este lugar do “saber que não se sabe” foi Freud quem revelou ao dizer que, mesmo subtraído à consciência, ele permanece estruturado (como uma linguagem, diz Lacan) e, por isso mesmo, articulável como um ponto de falta  deixando entrever seus efeitos. O inconsciente, a partir disto que acabo de assinalar, pode ser definido como “um termo metafórico para designar o saber que só se sustenta ao se apresentar como impossível, para que, a partir disso, confirme-se ser Real (entenda-se, discurso real).” Um exemplo disso é quando se espera uma sequência e, em seu lugar, vê-se surgir uma outra dizendo de um “ato falho”. Esta seria a face articulada do saber. A outra que Lacan aponta em seu seminário diz respeito à possibilidade que tem este saber de ser transmitido “do bolso do escravo para o bolso do mestre”. Trata-se aí da “epistéme”, ou seja, de um saber que pode tornar-se saber de mestre. Lacan exemplifica isso dizendo que a filosofia faz assim: subtrai ao escravo seu saber por uma operação de mestria. O texto de Platão – Menon – é fornecido como paradigma disto. 
"a" – Este elemento denota o que do campo do Outro permanece como impossível a saber. Trata-se de um resto da operação significante que visa eliminar o gozo do campo do Outro nesta operação de transmissão do saber do escravo ao mestre. Isto nos coloca a questão de “como é que se articula o escravo em relação ao gozo”. Lacan desenvolve isso ao longo de seu seminário e o seguiremos neste caminho. Uma das questões que já se coloca, em função mesmo da estrutura do discurso é a relação entre o saber, a verdade e o Real. Pôde-se adiantar aqui que a passagem que se apresenta barrada entre o lugar da produção e o da verdade nos diz que “o efeito de verdade decorre do que cai do saber, isto é, do que se produz dele, apesar de impotente para alimentar o dito efeito”.
$ – O sujeito, dividido entre os dois significantes que só fazem representá-lo ali onde espera ser, vê-se na condição de ex-sistir apenas na cena da fantasia que constrói a partir de uma interpretação que faz do encontro com a falta no Outro. Esta condição que se apresenta como uma promessa de saber é o que surge como “desejo de saber”. Enquanto submetido ao significante mestre o sujeito só faz seguir seu comando para que “isso caminhe”. Sua chance de abrir uma possibilidade de acesso ao saber acontece apenas quando, a partir mesmo do furo que o ponto de gozo apresenta no campo do Outro, um giro de quarto de volta lhe coloca em condição de questionar, pelo Discurso da Histérica (onde encontramos o inconsciente em exercício), o significante mestre ao qual está subjugado. É assim que podemos dizer:

Jogo e julgo sob o jugo
Jogado, julgado, subjugado.
Sob a solta liberdade
Que salta soldada

Na meia-verdade
Da meia-palavra
Que sempre se diz
Nas ocasiões propícias
Às humanas sevícias.

Sob o jogo, julgo o jugo,
Subjugado sob a lei onde
É julgada a meia liberdade
Solta na meia-palavra.*

*Rennó Lima, C. "Como quem duvida". Ophicina de Arte e Prosa, Belo Horizonte, MG. 2004

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Sobre a estrutura dos discursos


Nosso tema agora será “A psicanálise ao avesso” e o texto que nos servirá de base é o Seminário XVII de Jacques Lacan – “O avesso da psicanálise”.
 Vamos trabalhar por um tempo, este seminário seguindo os temas de suas lições, mas sem nos apegarmos a uma leitura minuciosa, como fizemos com o texto da “Direção do Tratamento”. Nosso objetivo será apreender a estrutura do discurso naquilo que ela ”ultrapassa em muito a da palavra” que é mais ou menos ocasional. Lacan fala de “um discurso sem palavras”. Seguiremos Lacan na sua dissertação sobre as relações fundamentais que os discursos estabelecem, sem deixar de marcar que eles não se sustentam fora da linguagem, pois é através desta que é possível estabelecer um “certo número de relações estáveis, no interior das quais pode se inscrever algo que é maior e vai mais longe do que as enunciações efetivas.”
Estas relações acontecem a partir da própria definição do significante como o que representa um sujeito para um outro significante. 
Mas, estaríamos hoje em condições de sustentar estas relações a partir destas definições que até então sustentaram nossa prática? Estaríamos nós, psicanalistas, em condições de enfrentar os desafios deste novo século com as mesmas armas que até então sustentaram a nossa clínica, já que a cada dia novos sintomas se apresentam com velocidade própria do desenvolvimento que a ciência proporciona? Estariam as estruturas dos discursos vigentes em condições de nos dizer do “savoir faire” analítico ou será necessário retomar o caminho de Freud no que ele mesmo propõe de reinventar sempre como forma de fazer sobreviver a sua criação?
Enfim, estas e muitas outras perguntas estarão na nossa mesa de discussões. Vamos repassar as estruturas discursivas e coloca-las em questão a partir do que vivemos em nossa clínica, na expectativa de que assim fazendo poderemos relançar o vetor da psicanálise em direção ao futuro. 
Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, em Comantaduba BA, Jacques-Alain Miller nos apresentou questões que vão na direção do que agora vamos tratar.
Para poder tornar isto mais claro vamos fazer um parêntese para tratar do que é a estrutura do discurso e quais os elementos que o vivificam.  
Lacan denomina “quadripode” a topologia que sustenta a estrutura discursiva, no sentido que ela é matematizável, pois está sustentada em quatro pontos que se articulam entre si de forma estável e calculável. Esta estrutura se completa com a presença de alguns vetores que dizem de um sentido a ser respeitado, na medida em que os quatro lugares, as quatro pontas do tetraedro abrigam elementos que podem sofrer deslocamentos, ou giros. 
Os lugares são: Semblante (o agente), Gozo (o Outro), mais de gozar (a produção) e a verdade. 
O que vai dizer de cada discurso será o elemento que se coloca no lugar do agente, deixando claro que a sequência dos elementos também deve ser respeitada, a partir dos vetores que acabam por transformar este tetraedro em dois triângulos isósceles. Assim se constituem os quatro discursos:



Esta formalização só foi possível a partir da emergência do discurso analítico, com Freud. Lacan o coloca em último lugar como uma forma de dizer que é este que dá significado aos anteriores, pelo movimento de “nachtraglichkeit”. A sequência deles não deve ser tomada como uma cronologia, mas é importante salientar que a cada giro do discurso, a cada passagem de um discurso a outro, há a emergência do discurso analítico e que o amor é o signo de mudança de discurso. O que não é signo do amor é o gozo do Outro, aquele do Outro sexo e do corpo que o simboliza.
Vamos a Miller: O homem moderno, este que veio da agricultura onde os parâmetros da terra e da família eram um suporte e um limite, encontra-se hoje sem direção. A era industrial seria um ponto de virada, pois favorecida pelo desenvolvido da ciência pode colocar um novo ritmo na vida do sujeito que ultrapassava, em muito, o ritmo das estações do ano e do giro dos astros. Podemos dizer que “um novo astro foi instalado no céu da civilização”. Nestes tempos do “Outro que não existe”, assistimos, muitas vezes impotentes, ao progresso de um discurso hiper-moderno cuja estrutura é a mesma do discurso do analista: “A razão da desorientação dos psicanalistas de hoje deve-se à convergência entre a civilização hiper-moderna e o discurso analítico. A única diferença, continua Miller, é que na civilização atual os elementos do discurso da psicanálise estão dispersos.” Esta dispersão se deve a uma mudança no uso, podemos dizer assim, dos elementos que articulam este discurso. 
O discurso do analista com seus elementos re-conceituandos a partir da hiper-modernidade fica assim estruturado: 



“a” – objeto da ciência, 
$ - o sujeito sustenta, ou melhor, tenta sustentar sua posição no campo do Outro, enquanto dividido.
S1 – resultado das avaliações que tentam higienizar a civilização, produzindo padrões de normalidade.
S2 – Filosofias que ensaiam uma leitura do homem hiper-moderno e que podem ser definidas por linhas tais como: cepticismo, niilismo e a linha perspectivista.
Quando Lacan escreveu o Seminário XVII, este que será nosso eixo, ele pensava que o discurso do analista era aquele que interpretava o discurso do Mestre, o discurso da civilização de seu tempo. Lembremos que este seminário foi escrito já sob os efeitos do movimento de maio de 1968, quando estudantes foram às ruas contestar o saber que lhes era imposto. No entanto, o que estamos vendo, de acordo com a leitura de JAMiller, é que o discurso da civilização não é mais o avesso mas sim o sucesso da psicanálise e, por incrível que pareça, sua maior ameaça. Sim, pois estamos assistindo a uma banalização tal que “a lâmina cortante da verdade freudiana” está sendo aplainada pelos efeitos da ciência. Podemos então alertar-nos enfaticamente dizendo que este “sucesso” é o fim da psicanálise. A relação da civilização com a psicanálise é da ordem da convergência. Eu diria: A peste foi tratada! 
Examinando um pouco mais de perto esta convergência vamos verificar que, se a estrutura do discurso converge, há uma diferença fundamental entre os dois discursos: No discurso hiper-moderno, o que vemos é uma disjunção entre os elementos. Falta uma orientação que possa fazer dele “um discurso” que, sabemos, tem como função sustentar um laço social. Este laço só é possível quando primeiro se destaca a exterioridade do significante S1 em relação ao conjunto que se denomina Grande Outro (A). Este Grande Outro é onde vamos encontrar a bateria de significantes S2. A presença do S1, então, é concebida como uma intervenção “sobre uma bateria significante que não temos nunca o direito de toma-la como dispersa”, pois ali se supõe um campo já estruturado de um saber, ou seja, ali existe um sujeito que sabe se distinguir de um traço que o identifica como único. 
A ausência deste traço tem produzido efeitos na psicanálise e explica a nostalgia que alguns psicanalistas apresentam em relação ao Nome-do-Pai levando-os a uma prática racional onde buscam fornecer significantes mestres a seus analisantes, na esperança de poderem reconstituir o inconsciente do “papai e mamãe” (S1 – S2). A estes podemos chamar de fundamentalistas psi. Outros, por sua vez, vão buscar na eternidade do inconsciente uma solução, já que aqui nada tem lugar. Assim vemos proliferar uma prática que enlaça religião e psicanálise com a promessa imaginária de uma paz que, sabemos, não advém jamais. Por fim, encontramos aqueles que buscam colocar a psicanálise no passo do progresso, tentando estabelecer uma aliança com o real da ciência. Estes se justificam pelos trabalhos de Freud com a metapsicologia e o dizer de Lacan sobre o real. No entanto, a estes interessa apenas que ao S1 advenha um S2, ou seja, que “isso caminhe!” (Ça Marche!).  Estas três posições dizem respeito à sugestão, pois estão na trilha do S1, da reconstituição de uma identidade que não se sabe distinguir de um traço que identificaria como único. 
Mas existe uma quarta posição, para mantermos nossa idéia do “quatro”, como única possibilidade de desenhar um espaço eqüidistante em nosso mundo. Esta possibilidade é a prática lacaniana que se sustenta no “último” Lacan. Aquele que coloca bem claro que na psicanálise há algo que fracassa. Este princípio é oposto a todos os outros, pois se sustenta no fato de que o “real é sem lei”, confirmando assim o axioma de Lacan da “não relação sexual”. O sucesso da psicanálise é contingente! Com esta perspectiva podemos sustentar que o matema (a $)  diz de um mais de gozo, estado do corpo próprio assexuado que agencia um “isso fracassa” da relação sexual.  Enquanto no discurso do analista há uma tentativa de enlaçar sentido e real, na sociedade hiper-moderna assistimos a uma cisão entre o sentido e o real, produzindo uma pulverização do sintoma que se reduz ao “toma” – desordem – e se espalha pelas páginas do DSM. A consequência disto é uma perda da verdade mentirosa do sintoma, a partir mesmo da desvalorização dos semblantes da própria psicanálise: (Complexo de Édipo e Castração). 
O sintoma fica, então, dividido em suas duas vertentes. Por um lado temos o “toma”, o distúrbio que fica a cargo da biologia, da ciência; e por outro lado permanece um “sin”, um sentido que fica como resto que deve ser acompanhado através de um semblante de escuta ou controlado pela química. Estas atividades ficam a cargo do que se pode chamar uma autoridade protocolar. Em contra partida, sabemos que para a psicanálise o sintoma representa uma verdade para um sujeito. É algo que verifica o Real, por isso Lacan renova o sentido do sintoma ao trata-lo sob a égide de uma nova grafia: sinthoma. (Em francês fica: sinthome que é homófono a sentido do homem ou, como diz Lacan em “Televisão”: saint homme: santo homem.)
Frente a tudo isso o que a psicanálise lacaniana tem a propor pode ser resumido no seguinte: uma nova aliança entre a ciência e a psicanálise baseada na não-relação sexual.