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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Sobre o Incurável

Em seu primeiro encontro com o Outro, consequência da incidência de um significante, o sujeito tem de lidar com um incurável, que não se subjetiva, que não permite que desejo e percepção coincidam. Ponto de opacidade e de silêncio, nos diz Lacan, que indica o lugar onde poderá se edificar a determinação significante capaz de escrever o fenômeno sintomático, na esperança de se “curar” a diferença que se instala na contingência deste primeiro encontro.
O sintoma é o sinal de que alguma coisa não anda, pois há uma dessemelhança definida como incurável, que se coloca como uma pedra no caminho do sujeito e se explicita no fato de que homens e mulheres estão privados do elemento que poderia propiciar a escritura da relação sexual.
É o incurável que promove o sintoma como única possibilidade de fazer laço, ao mesmo tempo em que permite uma leitura, uma vez que ele participa de uma escritura, função da letra. O sintoma é uma verdade mentirosa sobre este incurável, sobre a relação sexual que não existe. É por isso que Lacan pode dizer que é o sintoma que nós colocamos neste lugar da impossibilidade da relação sexual, constituindo-se, talvez, no único Outro que existe. 
Há, portanto, um incurável sobre o qual o sintoma se apóia e vai construir seu envelope formal. Incurável que se instala no ponto em que a presença do singular, do recusado e recalcado pelo sujeito vai se manifestar sob a forma de um mal-estar, presença de um excesso que não foi absorvido no processo de identificação, como disse Freud. É este processo de busca de uma identidade entre o que se deseja e o que se encontra que foi definido como pulsão. Em outras palavras a pulsão é o que se apresenta com seu caráter incurável, rebelde e refratário ao laço social, convocando o sintoma como uma forma de inscrever, de fazer coincidir o que insiste como marcas da singularidade do sujeito e de suas fixações.
O sintoma, assim como a cena da fantasia fundamental, nada mais é do que envelope da pulsão, modalidades de seu exercício, formas que o sujeito busca para apreender um objeto, no campo do Outro, que lhe sirva de parceiro. Este objeto “pequeno a”, se define a partir dos orifícios do corpo e marcam o ponto por onde o sentido não se deixa apreender nas malhas do discurso. É o pequeno “a” que apresenta o incurável em torno do qual a pulsão faz seu circuito desenhando uma escritura que situa a repetição do sintoma. 
Lacan nos diz que “O Outro é uma matriz com duas entradas”. O objeto pequeno “a” constitui uma destas entradas. E a outra é o Um do significante. Desfazer a presença deste Outro é fundamental para que o sujeito possa se livrar das diretrizes que determinam a fixação do circuito pulsional e o faz mola da repetição sintomática. 
O sintoma, por comportar um efeito de sentido, sofre a ação da interpretação. O seu valor de gozo é antinômico ao sentido, só se deixando apreender pelo equívoco, dai se deduz a função da letra. A redução do sintoma à letra é uma forma de renovar o estatuto do simbólico, resumindo a pulsão à função de furo. 
Por isso, a interpretação do analista pode apontar o incurável e esclarecer o circuito que delimita o objeto velado pela interpretação que o inconsciente fez do encontro traumático com o Outro sexo.
Este objeto, desde o congelamento do sentido na fantasia, passa a ser uma constante, nos dizendo de um ponto de incurável denunciado na atividade pulsional. Ora, a pulsão é sua força real ao mesmo tempo em que denuncia o limite do sintoma à ação do simbólico. O resto que escapa, foge, retorna sob a forma de mal-estar e relança o vetor pulsional sempre na direção determinada pelo imperativo do supereu. Desfazer este circuito, devolvendo ao objeto sua característica de ser qualquer um, mobilizando o seu valor de gozo é um dos objetivos de uma análise. Neste seu objetivo, a estratégia da qual se utiliza a psicanálise consiste em oferecer, a quem a busca como solução, a possibilidade de que esta cena se repita na transferência ao instalar, no ponto de não saber, um sujeito suposto saber da significação de seu sofrimento. Esta estratégia se utiliza do fato de que o inconsciente ex-siste e sua ex-sistência se sustenta, exatamente no fato da inexistência da relação sexual e que a sexualidade só se representa no inconsciente pela pulsão.
Utilizando-se do objeto pequeno ‘a’ enquanto agalma pode-se ter entrada ao Outro, fazendo possível a construção desta cena fundamental, a partir mesmo da determinação de uma constante através da qual o sujeito se relacione ao real do gozo. Balizada por esta construção, uma interpretação pode operar separando S1 do S2 e criar um intervalo deixando transparecer a dessemelhança entre o que se chamou de “A Coisa” e o seu “atributo”. Este é o momento em que acontece a produção de um significante que pode indexar a falta, um nome que estabelece novos rumos, fazendo intervir a letra como borda do real. 
O amor, resposta ao real da não relação sexual, sustenta o trabalho da transferência nesta relação ao Outro do saber, e se esvazia pela ação da interpretação que desfaz o mistério da diferença sexual. Este é o momento em que se abre, para cada
sujeito, uma nova relação ao saber a partir do consentimento com seu modo próprio de gozo. 
Esta passagem estabelece uma nova aliança com a pulsão. Nova aliança que só pode acontecer pela revitalização da marca do Nome Próprio propiciando um “saber aí fazer com o sintoma”, uma das fórmulas possíveis da liberdade. 
Assim o incurável, o resto que persiste passa, após o trabalho que leva ao consentimento com o inconsciente, do mais-de-gozar ao estatuto de causa. Desta forma o desencontro entre “esses dois investimentos”, como nos diz Freud, podem se colocar numa posição de trabalho para que a “coincidência entre ambas” produza uma nova aliança pulsional. Ou seja, uma aliança onde o resto não se apaga nem se cura, mas persiste como vivificação do objeto-resto não mortificado pela palavra. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Psicanálise ou Psicoterapia: O lugar do analista! (II)

Vamos retomar a questão da transferência pelo o esquema L, na tentativa de explicitar o mecanismo da relação narcísica: Vamos instalar o sujeito que chega no lugar de S, dizendo que ele aí está na mais pura ignorância do que lhe causa mal. O que este sujeito vem buscar no Outro a quem ele supõe um saber é um traço qualquer que possa dizer-lhe o que, na verdade, ele é. Este traço, poderá ser tomado aqui como o 'a', na medida que este traço faz exatamente a borda deste objeto que se encontra como um vazio, no espelho. A partir daí, vai se estabelecer a relação de transferência e o sujeito vai se identificar a este traço na esperança de que, assim colocado, seja amado pelo Outro que vai lhe fornecer a resposta para a questão de sua existência. 

                                                         

Alguns esclarecimentos são necessários: Na verdade a questão da existência do sujeito se coloca a partir de um Outro lugar, e não a partir de um outro sujeito como se tenta acreditar na relação transferencial, que se sustenta no eixo a - a', eixo narcísico, lugar do engodo amoroso. 
Cada vez que o analista intervêm, ele o faz do lugar do Outro (A), como se fosse a boca do Outro visando o sujeito do inconsciente ($), naquilo que ele tem de mais íntimo, kern unseres wessen, o coração do nosso ser, ou seja o que não tem palavra [S(A/)], ou ainda a causa de desejo. 
O que se espera liquidar, então, é esta suposição de saber que se estabelece no eixo da relação narcísica que tende a exercer o fechamento do inconsciente. 
Quando Lacan trabalhou o esquema L, ele nos disse que este eixo narcísico, imaginário, é o muro da linguagem. Isto pode parecer estranho, colocar a linguagem no eixo imaginário, uma vez que a linguagem seria simbólica. No entanto, o que temos aqui é um muro da linguagem que se constitui pelo véu do sentido que impregna a fala do sujeito quanto ele se dirige ao outro, exatamente para escamotear a sua relação ao Outro. Desta forma estará impedido o  acesso do simbólico ao real, estabelecido, aqui, pelo eixo A - S. Função esta que vai ser atribuída, mais à frente no ensino de Lacan, à fantasia fundamental. Por isto podemos até mesmo desenhar o matema da fantasia neste eixo a—-a’ ($<>a). Ora, cada vez que o analista intervêm, ele o faz do lugar do Outro, como nos diz Lacan em "A direção da cura..." promovendo uma brecha neste muro da linguagem, 
esburacando esta cortina de sentido que cega o sujeito". Este momento se traduz, na clínica, por aquela surpresa que têm, analista e analisante, quando o sujeito que está falando no divã, imerso e gozando de um sentido preestabelecido, se percebe pego em um vazio que produz uma mudança. Este momento é fugaz, mas fundamental. É o momento em que podemos testemunhar o aparecimento do sujeito como resposta do real no estabelecimento de um novo sentido que se apresenta promovendo o fechamento do inconsciente. Podemos dizer que é isto que produz um ato: relança o sujeito em uma nova cadeia significante, uma nova série produzindo no lugar da verdade um saber que possa sustentar a causa de desejo. 
Retomando a questão da identificação que, a meu ver é uma das balizas das diferenças que podemos estabelecer entre a psicanálise e a psicoterapia, vamos observar que ela ocorre a partir da escolha que o sujeito faz de um certo traço no Outro. Não é um traço qualquer. É um traço tal que o sujeito acredita dizer do desejo deste Outro. É um traço que vai dizer que deste ponto o sujeito vai ser amado pelo Outro. Este traço idealizado vai constituir o núcleo de sua fantasia, a borda do enquadre da realidade para este sujeito, porque é a partir deste traço que vai se constituir a fantasia fundamental do sujeito e que vai nos dizer como o sujeito interpretou o desejo do Outro. Esse traço é o traço unário (Einzeger Zug). Em outras palavras, este traço está inscrito no S1 ao qual o sujeito se encontra assujeitado. É o mestre que dita o caminho que o sujeito deve seguir para ser amado. Quando Lacan diz que a interpretação deve visar para além da significação que se produz a partir do significante ao qual o sujeito se encontra assujeitado, é a isso que ele está fazendo alusão. Ora, tudo isto poderá ser traduzido pela fórmula lacaniana: "o desejo é sua interpretação". 
A identificação especular imediata é apenas a sustentação da identificação que está em jogo nesta entrada do S1, já que é esta identificação primeira que sustenta a perspectiva do sujeito no campo do Outro. Em outras palavras, o que acabo de lhes dizer pode ser assim descrito: eu desejo o que o Outro deseja que eu deseje. Esta é a perspectiva do sujeito no campo do Outro onde a identificação especular poderá ser vista como algo que satisfaz. Esta identificação estabiliza a imagem e sustenta o sujeito no mundo de alguma maneira. 
Na verdade nunca nos livramos disto inteiramente, sempre vão existir pontos de identificação, de ancoragem, afinal Lacan coloca no fim do seu Grafo do Desejo o matema I(A): impossível viver sem ideais!
No percurso pelo gráfico sempre se esbarra em pontos de ancoragens onde se busca uma identificação. Na verdade cada ponto de estofo nada mais é que ponto de identificação significante. 
Mas, retornando ao percurso de uma análise, vamos dizer que o mal-estar a partir da claudicação do sintoma produz uma demanda ao Outro para que seja reconstituído o sintoma. Uma vez feito o percurso e experimentado o vazio no ponto onde a falta do Outro se apresenta, vai acontecer a possibilidade de se mudar o endereçamento da demanda 
que não será mais de reconstituição do sintoma, mas de relançamento do desejo de saber. Não mais de apaziguamento no sintoma, mas de uma inquietação produtiva. É o trabalho de transferência se transmutando em transferência de trabalho. 
De volta ao ponto do Ideal do Eu, o ponto no campo do Outro que o sujeito elege como sendo aquele onde ele pode ser visto pelo Outro e,portanto, amado, é o que lhe permitirá se suportar numa situação dual. Caso não houvesse esse ponto de ancoragem, de identificação no campo do Outro, esta dualidade especular seria insuportável. É o que acontece na psicose, quando a “Bejahung” fundamental não acontece e, como consequência, vai faltar ao sujeito este ponto de ancoragem produzindo uma tendência a fazer desaparecer o intervalo entre um e outro, sempre que a dualidade especular ocorrer. Na psicose a saída é o delírio, a erotomania; na neurose é o amor. A diferença entre um e outro fica por conta da certeza que o psicótico tem. O neurótico, mesmo que seu amor seja tão intenso que fica como que colado ao outro, vai existir uma certa distância que é colocada pela dúvida: será que ele me ama mesmo? Na psicose a certeza é plena: ele me ama, ou me odeia. 
Enquanto miragem especular, o amor tem a essência do engano, é aqui que se instala o único significante necessário a introduzir uma perspectiva centrada sobre o ponto do ideal. Este ponto, este traço, para que ele possa se tornar um ponto de visada do sujeito, tem que ser um traço que se refere ao objeto 'a'. É o traço da borda de onde o objeto foi subtraído. O 'I' é o significante que desenha o contorno nesta borda. É um significante qualquer, mas não pode ser qualquer um. É aquele que elegemos por estar mais próximo do objeto perdido, por isso Lacan matematiza assim este ideal: I(a). É sustentado por este traço que vai se instalar o sujeito suposto saber a partir do que Lacan chamou de significante da transferência. Todo o trabalho de análise, todo o trabalho da interpretação, vai na direção de promover a separação deste I do a, para reconstituir, no final, o I(A) na transferência de trabalho. 
Nesta coalescência do traço com o objeto, um dando suporte ao outro, um fazendo o outro existir na sua ausência, como ponto de visada, é que vai se estabelecer o engano da transferência. Este engano, podemos dizer muito simplesmente, é o seguinte: se você tem o traço da borda do objeto, você tem o objeto. Neste ponto acontece algo de paradoxal pois, ao se perceber que as coisas não são bem assim, ao se deparar com o vazio deste objeto vai acontecer, como diz Lacan, a descoberta do analista. Sim, pois se ao se dirigir ao sujeito suposto saber para se sustentar na alienação do seu sintoma, ele encontrar um analista, ele vai se deparar com este vazio, com esta inconsistência do Outro. 
Em outras palavras, vamos dizer que o sujeito busca um analista que vai sustentar o lugar de semblante onde vai reinar o objeto, mas somente para, ao fazer uma interpretação, dizer que esse lugar é vazio. Sabemos que toda intervenção do analista aponta para o final de análise. Em outras palavras, não há final de análise sem interpretação. 
Cumpre ressaltar aqui que há intervenções do analista que não são interpretações. Em outras palavras, é preciso que haja pelo menos uma interpretação que faz descolar o I do a para que se possa alcançar o final de análise. 
Um analista é aquele que escuta por detrás dos ditos do analisante. É preciso que o analista saiba que existe um para-além da demanda endereçada ao sujeito suposto saber, que é uma demanda de amor. É preciso que ele saiba se a demanda de amor aponta para um mais além e o desejo aponta para um mais aquém. Por isso Lacan forjou esta frase tão contundente quando ele tratou do amor de transferência: "Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente eu amo em ti qualquer coisa mais do que tu, o objeto a, eu te mutilo". E Lacan continua dizendo que apesar desta fala apontar para o oral, ela nada tem a ver com a nutrição pois seu acento recai totalmente neste efeito de mutilação. É o que vai nos apontar a possível continuação da fala do analisante: "Eu me dou a ti, mas esse dom de minha pessoa - mistério!, se transforma, inexplicavelmente em presente de merda". 
Na verdade, se pensamos no agalma, este que sustenta a transferência, este que está dentro do Sileno e que ninguém viu, o que está dentro deste sujeito é merda. Quando, diz Lacan, após esta passagem em que o psicanalista se transforma em resto, em merda, podemos dizer é que será possível dar-nos conta da vertigem que acontece quando estamos diante de uma página em branco. Esta é uma experiência que, acredito, todos já vivemos: enquanto as idéias estão na nossa imaginação tudo corre fácil, na hora de passar para a folha de papel em 
branco que fica à nossa frente, ofuscando nossa ação, as coisas não são tão belas, na verdade é merda. Se o sujeito não pode tocar nesta folha em branco, diz Lacan, é porque ele a toma como papel higiênico. Esta distância entre o ideal e o objeto criado, estabelecido pelo princípio de realidade é que promove esta desidealização aterrorizadora. 
Como dizia a pouco, a liquidação da transferência é um assunto de destituição do sujeito suposto saber que se transforma num resto, exatamente este resto que nunca foi absorvido pelo saber suposto. Ao final, o esvaziamento do analista vai deixar um resto que será elevado a condição de causa de desejo. É quando, finalmente, o analista estará reduzido ao representante da representação do objeto "a". 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Psicanálise ou Psicoterapia: o lugar do analista! (I)


"...le signifiant, c'est comme le style... 
si on ne part pas de ce niveau qui est le niveau de départ, on ne peut absolument rien faire de plus dans I’expérience psychanalytique... on ne peut rien faire de plus que de faire de la bonne psychothérapie"
(Jacques Lacan, Du discours Psychanalytique - Conférence à l'université de Milan, le 12 mai 1972) 

É a claudicação do saber, da certeza do sintoma, que abre um espaço para que um endereçamento possa ser feito a um Outro lugar, na esperança de que o estranho possa ser decifrado. Sim, decifrado, por que o sintoma, sendo a primeira mensagem cifrada, pleno de sentido, traz em si o "ciframento" do gozo, que se apresenta como um ponto sem sentido, como um estranho, como um "x" no caminho do sujeito. Este é o momento em que se instala, no ponto de inconsistência do Outro, um Sujeito a quem se supõe um saber sobre o que seria a sua verdade. Para que isto possa acontecer, uma escolha, forçada sem dúvida, deverá ser feita para que um significante qualquer venha se alojar aí, onde o saber falhou. Este significante será, ele mesmo, integrante do sintoma que se constituirá neste momento. É a transferência que, agora, pode sustentar estrategicamente a direção do tratamento, enquanto signo de um amor que possibilitará um giro de quarto de volta no discurso. 
No entanto, para que as coisas possam continuar caminhando em função da política do tratamento, é fundamental que este lugar, primeiramente imaginário, seja "cadaverizado", para usar uma expressão de Lacan em "A coisa freudiana", e que seja anulada a própria resistência do analista, o que equivale dizer que ele não vai simplesmente matraquear a significação que o paciente tenta fazer valer nas suas proposições. 

                                                  

Se tomarmos o Grafo do Desejo e colocarmos a claudicação do sintoma em s(A) teremos, no vetor que daí parte, um endereçamento ao (A), enquanto lugar. Se o analista se deixa levar pelo sentido que lhe é proposto, exaltando o Sq, o traço que lhe foi atribuído, ele estará favorecendo uma identificação e esvaziando sua palavra num discurso do convencimento que só vai se prestar a abrir caminho para a circulação no chamado andar inferior: s(A) ----- (A) ----- i(a) --- (m). Podemos também dizer do que se passa neste nível, utilizando a topologia da banda circular, com suas duas bordas e suas duas faces, para mostrar que estão presentes dois sujeitos e, portanto dois sentidos sem que nenhum, nunca, possa intervir sobre o outro. 
No entanto, para que uma análise possa acontecer é fundamental que, no amor de transferência que se instala, pelo menos um dos dois saiba que não tem o que lhe está sendo atribuído. Isto é o que se espera de um analista: que coloque em operação o desejo do analista que se constituiu em análise. É somente deste lugar que uma interpretação pode operar. 
Lacan, já em seu Relatório de Roma, nos diz que a interpretação por alusão é uma forma de se evitar este confronto narcísico próprio de um debate sustentado no eixo a ---- a'. A interpretação deverá, assim como o dedo 
de São João, apontar para o vazio. 
O que se objetiva, no final das contas, é uma primeira desarticulação do binário S1- S2 que, enquanto enunciado, sustenta sob a barra a relação de um sujeito com o objeto que ele escolheu a partir da interpretação que ele fez do desejo do Outro. Objeto esse que ele acredita poder consistir o Outro. A interpretação, portanto, abre um buraco no sentido até então estabelecido. Este vazio cria um estado de desamparo (hilflösigkeit) não deixando outra saída ao sujeito senão o bem-dizer pois, deslocando-se do eixo do enunciado para o da enunciação, ele se depara com a verdade que circula entre o gozo e a castração e que se elabora como uma relação do sujeito à pulsão. É neste ponto, e somente aí, que o sujeito poderá saber da causa de seu desejo pois, pela via da fantasia, esta causa está dissimulada pelos benefícios secundários. 
Este é o trajeto que vai, digamos, preparar o momento em que um ato analítico pode acontecer e possibilitar a "experiência da fantasia fundamental tornar-se a pulsão". 
Um pouco de topologia vai nos auxiliar a definir como esse 
caminho se desenha e ajudar a diferenciar uma psicoterapia de uma psicanálise. 
Se o analista não se cala impedindo que o objeto "a" possa reinar como semblante, o que vai acontecer é um favorecimento a uma identificação a partir mesmo da ação da sugestão através do convencimento, como vimos acima. Este movimento vai dirigir o vetor para o andar inferior do Grafo e estabelecer duas posições distintas aos dois sujeitos em questão: o terapeuta e o paciente, que permanecerão indefinidamente cada qual do seu lado sem que as intervenções possam produzir efeito. Teremos então uma topologia da banda circular onde o que se passa de um lado ali permanece. 
               

Mas quando o desejo do analista opera, fazendo reinar o objeto "a" ali onde uma resposta é esperada, veremos o vetor ser lançado na direção do andar superior do Grafo e, em função mesmo da não resposta, sofrer uma meia torção e retorna como mensagem invertida. 
A topologia que se desenha não é mais a da banda circular, mas sim a da Banda de Moebius, nos dizendo que em uma análise temos apenas um sujeito em questão pois a estrutura desta superfície demonstra a existência de um só lado e de um só corte. 

                                                  


Esta articulação coloca uma questão e nos abre a possibilidade de discutirmos um outro aspecto desta diferenciação entre psicanálise e psicoterapia: trata-se do que encontramos no momento em que Lacan trabalha, especificamente no Seminário XI o conceito de liquidação da transferência. Ali ele estabelece um dialogo com os conceitos estabelecidos pela IPA, no que diz respeito ao final de análise. O corpo teórico que sustenta o trabalho na Internacional vai na direção de acreditar que no final da análise a transferência poderia ser liquidada. 
Para tanto, era fundamental que o analista levasse o sujeito a não deixar resto algum, já que a identificação, como é de nosso conhecimento, se estrutura em torno do eixo imaginário e a partir da idealização. Desta forma, um "Eu" (moi) surgiria ali onde um sujeito, como resposta do real, deveria acontecer. É o reforço da alienação onde uma separação deveria acontecer. 
Ao contrário, o silêncio do analista em 'A' faz com que a demanda que lhe é dirigida sofra uma meia torção, criando uma banda de Möebius (como explicitamos acima) e, retorna ao sujeito a partir mesmo do desamparo que se estabelece em (d) - lembro-lhes que Lacan, ao construir seu grafo nos disse que este pequeno (d), num primeiro movimento, indica o estado de desamparo (detresse - hilflosigkeit) no qual se encontra o infans em seu encontro com o homem ao lado (Nebemmensch) - passando pelas demandas do Outro ($ <> D) onde vão se estruturar as pulsões em seu movimento de ir e vir em torno do vazio da falta no Outro S(A/). Uma relação muito especial vai se estabelecer então, a partir da interpretação que se faz desta falta, construindo uma cena ($<>a) que precisa ser retificada para que um novo saber fazer possa se instalar s(A). É por isso que afirmamos que só há um sujeito em questão na análise, o analisando, e que é somente a partir de um ponto fora da linha - que eu correlaciono, nesta situação, à função do desejo do analista - será possível sustentar o corte de uma linha sem pontos. 
Retomo o que acabo de dizer um outro caminho. Partindo do conceito de Sujeito Suposto Saber, Lacan vai nos dizer que esse sujeito, que supostamente sabe sobre o analisante, na verdade não sabe nada. O que se liquida na transferência, portanto é esta suposição de saber, já que, todo o processo de análise vai, à cada intervenção do analista, desfazê-la. Em outras palavras, como nos diz Lacan, este sujeito suposto saber deve ser considerado liquidado exatamente no momento da análise em que ele começa a saber alguma coisa do seu analisante. Por isso ele pode, neste momento, ser chamado de sujeito suposto vaporizado. Ainda uma outra forma de se dizer isto, com Lacan, é que a sustentação da transferência se dá pelo fato do analista se colocar como um "X" para o analisante. Quando o analisante vai, passo a passo, esburacando este lugar, o analista vai perdendo esta aura de suposição de saber. A consequência disto é que o analista não vai mais 
ter o poder de relançar o sujeito para mais uma volta no seu percurso. 
Espera-se que este momento seja aquele que venha encerrar um tempo de compreender e o sujeito em questão possa fazer uma passagem a partir mesmo do resto a que o sujeito suposto saber se transforma. 
Para além de suas vestimentas imaginárias, semblantes que o analista pôde encarnar para um sujeito, este o verá cair do lugar do Outro do saber ao lugar do “a”, objeto libidinal. 
Esta passagem, nós a conhecemos da teorização de Lacan, é a de analisante para analista quando este sujeito deseja, ele mesmo se prestar a sustentar este lugar de causa. 

Este termo "liquidação da transferência", se ele tem um sentido, é o da liquidação permanente deste engano através do qual a transferência tende a exercer o fechamento do inconsciente. Ou seja, no duplo movimento da transferência onde o sujeito se engancha supondo um saber ao Outro - estabelecendo o amor de transferência - vamos ver acontecer o engodo do tamponamento da falta do Outro. Este mecanismo é o da relação narcísica onde o sujeito tenta se colocar no lugar em que ele acredita ser amado pelo Outro. "De sua referência àquele que deve lhe amar, ele tenta induzir o Outro numa relação de miragem onde ele se convence ser amável".