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terça-feira, 11 de junho de 2013

As estratégias do Psicanalista: Liquidação da transferência?

Este termo "liquidação da transferência" - mencionado na última postagem -, se ele tem um sentido, é o da liquidação permanente deste engano através do qual a transferência tende a exercer o fechamento do inconsciente. Ou seja, no duplo movimento da transferência onde o sujeito se engancha supondo um saber ao Outro - estabelecendo o amor de transferência - vamos ver acontecer o engodo do tamponamento da falta do Outro. Este mecanismo é o da relação narcísica onde o sujeito tenta se colocar no lugar em que ele acredita poder ser amado pelo Outro. É na relação de miragem, proposta pelo eixo a-a’, que o sujeito irá se referenciar para convencer-se amável.
Podemos tomar o esquema L, na tentativa de explicitar este mecanismo:
Vamos instalar o sujeito que chega no lugar de S, dizendo que ele aí está na mais pura ignorância do que lhe causa mal. O que este sujeito vem buscar no Outro a quem ele supõe um saber é um traço qualquer que possa dizer-lhe o que na verdade ele é. Este traço poderá ser tomado aqui na sua referência ao objeto 'a', na medida que é este traço que faz a borda deste objeto que, na verdade é um vazio no espelho. A partir daí, vai se estabelecer uma relação de transferência e o sujeito vai se identificar a este traço na esperança de que, assim colocado, seja amado pelo Outro que vai lhe fornecer a resposta para a questão de sua existência.
Alguns esclarecimentos são necessários: Na verdade a questão da existência do sujeito se coloca a partir de um Outro lugar, e não a partir de um outro sujeito como se tenta acreditar na relação transferencial, que se sustenta no eixo a - a', eixo narcísico, lugar do engodo amoroso.
Cada vez que o analista intervém, ele o faz como se fosse a boca do Outro (A) visando o sujeito do inconsciente (S), naquilo que ele tem de mais íntimo, kern unseres wessen, o coração do nosso ser, ou seja, o que não tem palavra S(A/), ou ainda a causa de desejo.
O que se espera liquidar, então, é esta suposição de saber que se estabelece no eixo da relação narcísica e que tende a exercer o fechamento do inconsciente.
Lacan chamou este eixo narcísico, imaginário, de muro da linguagem. Isto pode parecer estranho, colocar a linguagem no eixo imaginário, uma vez que a linguagem seria simbólica. No entanto, o que temos aqui é um muro da linguagem que se constitui pelo véu do sentido que impregna a fala do sujeito quando ele se dirige ao outro, exatamente para escamotear a sua relação ao Outro. Desta forma estará impedido o acesso do simbólico ao real, estabelecido, aqui, pelo eixo A - S. Ora, cada vez que o analista intervém, “é como proveniente do Outro da transferência que a sua fala continua a ser ouvida, e, com isso o momento do sujeito sair da transferência é adiado ad infinitum”. Mas, se o analista fala do lugar da “falta-a-ser” e não do “ser” ele promove uma brecha neste muro da linguagem, esburacando esta cortina de sentido que cega o sujeito. Este momento se traduz, na clínica, por aquela surpresa que têm, analista e analisante, quando o sujeito que está falando no divã, imerso e gozando de um sentido preestabelecido, percebe-se pego em um vazio que produz uma mudança. Este momento é fugaz, mas fundamental. É o momento em que podemos testemunhar do aparecimento do sujeito como resposta do real no estabelecimento de um novo sentido que se apresenta promovendo o fechamento do inconsciente. Podemos dizer que esta é consequência de um ato: relançar o sujeito em uma nova cadeia significante, uma nova série, produzindo no lugar da verdade um saber que possa sustentar a causa de desejo.
Retomando a questão da identificação, que é uma das balizas que podemos estabelecer entre a psicanálise e a psicoterapia, vamos observar que ela ocorre a partir da escolha que o sujeito faz de um certo traço no Outro. Não é um traço qualquer. É um traço tal que o sujeito acredita poder dizer do desejo deste Outro. É um traço que vai dizer que, deste ponto, o sujeito vai ser amado pelo Outro. Este traço idealizado vai constituir o núcleo de sua fantasia, a borda do enquadre da realidade para este sujeito, porque é a partir deste traço que vai se constituir sua fantasia fundamental e que vai dizer como o sujeito interpretou o desejo do Outro. Esse traço é o traço unário (Einzeger Zug). Em outras palavras, este traço é o S1 ao qual o sujeito se encontra assujeitado. É o mestre que dita o caminho que o sujeito deve seguir para ser amado. Quando Lacan diz que a interpretação deve visar, para além da significação, a qual significante o sujeito se encontra assujeitado, é a isso que ele alude. Ora, tudo isto poderá ser traduzido pela fórmula lacaniana: "o desejo é sua interpretação".
A identificação especular imediata é apenas a sustentação da identificação que está em jogo nesta entrada do S1, já que é esta identificação primeira que sustenta a perspectiva do sujeito no campo do Outro. Em outras palavras: eu desejo o que o Outro deseja que eu deseje. Esta é a perspectiva do sujeito no campo do Outro aonde a identificação especular poderá ser vista como algo que satisfaz. Esta identificação estabiliza a imagem e sustenta o sujeito no mundo de alguma maneira. Na verdade, sempre vão existir pontos de identificação, de ancoragem, afinal Lacan coloca no fim do seu Grafo do Desejo o matema I(A). Estes pontos de ancoragem deverão se sustentar na articulação lógica que vem se instalar ali onde a fantasia fundamental ditava as regras. Isto diz de um novo enlaçamento que se estrutura a partir da responsabilidade e não mais na hipotética garantia do Outro.
No percurso pelo grafo sempre se esbarra em pontos de ancoragens que a identificação sustenta. Na verdade cada ponto de estofo nada mais é que ponto de identificação a um significante.
Retornando ao percurso de uma análise, vamos dizer que o mal-estar, a partir da claudicação do sintoma, produz uma demanda ao Outro para que seja reconstituído o sintoma. Uma vez feito o percurso e experimentado o vazio no ponto onde a falta do Outro se apresenta, acontece a possibilidade de mudar o endereçamento da demanda que não será mais de reconstituição do sintoma, mas de relançamento do desejo de saber. Não mais de apaziguamento no sintoma, mas de uma inquietação produtiva.
De volta ao ponto do Ideal do Eu, o ponto no campo do Outro que o sujeito elege como sendo aquele aonde ele pode ser amado, será visto pelo Outro. É esse ponto que lhe permitirá se suportar numa situação dual. Caso não houvesse esse ponto de ancoragem, de identificação no campo do Outro, esta dualidade especular seria insuportável. É o que acontece na psicose, quando a “Bejahung” fundamental não acontece e, como conseqüência, falta ao sujeito este ponto, produzindo uma tendência a fazer desaparecer o intervalo entre um e outro, sempre que a dualidade especular ocorrer. Na psicose a saída é o delírio, a erotomania; na neurose é o amor. A diferença entre um e outro fica por conta da certeza que o psicótico tem. Para o neurótico, mesmo que seu amor seja tão intenso que fique como se fosse colado ao outro, vai existir uma certa distância colocada pela dúvida: será que ele me ama mesmo? Na psicose a certeza é plena: ele me ama, ou ele me odeia.
Na relação especular, o amor sustenta o engano, mas é nesta relação que se instala o significante necessário à introdução de uma perspectiva centrada sobre o ponto do ideal.  Este ponto, este traço, para que ele possa se tornar um ponto de visada do sujeito, tem que ser um traço que se refere ao objeto 'a'. Ele é o traço da borda de onde o objeto foi subtraído. O “I” é o significante que desenha o contorno nesta borda. É um significante qualquer, mas não pode ser qualquer um. É aquele eleito por estar mais próximo do objeto perdido, por isso Miller pôde matemizar assim este ideal: I(a). Sustentado por este traço vai se instalar o sujeito suposto saber a partir do significante da transferência. Todo o trabalho de análise, todo o trabalho da interpretação, vai na direção de promover a separação deste I do a, para reconstituir, no final, o I(A) na transferência de trabalho.
Nesta coalescência do traço com o objeto, um dando suporte ao outro, um fazendo o outro existir na sua ausência, como ponto de visada, é que vai se estabelecer o engano da transferência. Este engano pode-se dizer muito simplesmente, é o seguinte: se você tem o traço da borda do objeto, você tem o objeto. Neste ponto acontece algo de paradoxal, pois, ao perceber que as coisas não são bem assim, ao se deparar com o vazio deste objeto vai acontecer, como diz Lacan, a descoberta do analista, pois, se ao se dirigir ao sujeito suposto saber para se sustentar na alienação do seu sintoma o analisante encontrar um analista, ele vai se deparar com este vazio, com esta inconsistência do Outro.
Sabemos que toda intervenção do analista aponta para o final de análise. Em outras palavras, não há final de análise sem interpretação. Cumpre ressaltar que há intervenções do analista que não são interpretações. É preciso que haja pelo menos uma interpretação que faça descolar o I do a para que se possa alcançar o final de análise.  
Um analista é aquele que escuta por detrás dos ditos do analisante, como já afirmamos antes. É preciso que ele saiba que existe um para-além da demanda endereçada ao sujeito suposto saber, que é uma demanda de amor. É preciso que ele saiba que se a demanda de amor aponta para um mais-além, o desejo aponta para um mais-aquém. Por isso Lacan forjou esta frase tão contundente quando ele tratou do amor de transferência: "Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente eu amo em ti qualquer coisa mais do que tu, o objeto a, eu te mutilo". E Lacan continua dizendo que apesar desta fala apontar para o oral, ela nada tem a ver com a nutrição, pois seu acento recai totalmente neste efeito de mutilação. É o que vai nos apontar a possível continuação da fala do analisante: "Eu me dou a ti, mas esse dom de minha pessoa - mistério!, se transforma, inexplicavelmente em presente de merda".
Na verdade, se pensamos no agalma, este que sustenta a transferência, este que está dentro do Sileno e que ninguém viu, o que resta é nada. Quando, diz Lacan, após esta passagem em que o psicanalista se transforma em resto – onde o desejo do analista vai ser forjado -, podemos dizer que será possível dar-nos conta da vertigem que acontece quando estamos diante de uma página em branco. Se o sujeito não pode tocar nesta folha em branco, diz Lacan, é porque ele a toma como papel higiênico. Esta distância entre o ideal e o objeto criado, estabelecido pelo princípio de realidade é que promove esta desidealização aterrorizadora.
A liquidação da transferência é um assunto de destituição do sujeito suposto saber que se transforma num resto, exatamente este resto que nunca foi absorvido pelo saber suposto e que ao final, será elevado à condição de causa de desejo. É quando, finalmente, o analista estará reduzido ao representante da representação do objeto "a".

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