(Para comemorar os 50 anos da Proposição de 9 de outubro de 1967 de Jacques Lacan)
Toda a Proposição de 09 de outubro de 1967 podemos dizer, gira em torno de um “Tornar-se responsável do progresso da Escola, tornar-se psicanalista de sua experiência mesma(1), que continua vivo instituindo o novo no funcionamento(2).
O dispositivo do Passe construído - prudentemente, como nos diz o próprio Lacan - com a “intenção de isolar o que existe do discurso analítico”(3), segue levando à frente o seu objetivo de poder emprestar alguma luz ao princípio que está inscrito nos textos originais da Escola: “o analista só se autoriza de si mesmo”(4). Em outras palavras, é o dispositivo do Passe que “permite a quem pensa poder ser analista, comunicar o que o fez decidir-se e engajar-se num discurso do qual não é, certamente, fácil, ser o suporte”(5).
Mas de que experiência se trata? J. A. Miller nos diz que não é uma experimentação qualquer. “É a experiência entendida como subjetiva”(6), onde o “sujeito se dispõe a experimentar uma, talvez várias transformações, ou ao menos (...) certos estados inéditos para ele”(7). É uma experiência, podemos dizer, que implica num consentimento. Um consentimento com a experiência do inconsciente(8). Uma experiência que só se faz conhecer no “só depois” da significação, ponto onde se pode enlaçar, “no horizonte mesmo da psicanálise em extensão, o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intensão”.(9)
Proponho começarmos pelo “envelope formal do sintoma, que é o verdadeiro traço clínico...”(10) para examinarmos a incidência de uma interpretação que possibilitou a entrada em análise e, em seguida, trabalharmos a estrutura do sintoma enquanto “geometria do real”(11) para, assim, esclarecermos a interpretação que propiciou a criação de um ponto de báscula no quadro de uma cena onde a travessia do fantasma aconteceu.
O conceito, “envelope formal”, vamos encontrá-lo quando Lacan menciona a genialidade clínica de Clérambault, numa época em que desenvolvia sua teorização a partir da barra que mantinha separado significante e significado. Esta proposta girava em torno da possibilidade do simbólico recobrir todo o campo do imaginário. Nesta perspectiva, o sintoma seria o que vem atrapalhar a bela ordem articulando-se ao que “representa o retorno da verdade como tal na falha do saber”(12).
Minha proposta é instalar o “envelope formal do sintoma”, no andar inferior do Grafo do Desejo. Assim, a “verdade como falha do saber”, vai mobilizar o sujeito na busca de um “suposto saber” que possa restabelecer a estabilidade perdida instalando, na transferência, o sintoma analítico. Este momento de alienação ao Outro vai requerer uma intervenção do analista para que uma entrada em análise possa acontecer.
Se for bem sucedida, esta intervenção vai propiciar ao sujeito um encontro com as demandas do Outro que designam o ponto de fixação do circuito pulsional.
No segundo andar do Grafo, proponho trabalhar o sintoma como “geometria do real”(13). Ora, é o simbolicamente imaginário que vai constituir a verdadeira geometria e não o que surge dos espíritos puros. A geometria do real, nos diz Lacan, é a que tem um corpo, é a que nos referimos quando falamos de estrutura [S(A/)].
Nesta “geometria do real”, o sintoma é o que faz laço com o inconsciente, colocando-se como o quarto elo do nó para, assim, manter ligados o Imaginário, enquanto corpo, ao Simbólico da fala, enquanto o que produz efeitos sobre este mesmo corpo. O Real é o furo que o simbólico promove e contorna.
Esta última formalização, Lacan só pôde construí-la ao deslocar a ênfase que estava colocada sobre a barra do algoritmo S/s o que implicava uma esperança do simbólico recobrir todo o imaginário, para a relação do Simbólico com o Real onde o que está em jogo é um corte que deixa um resto.
Proponho-lhes localizar o final de análise neste ponto onde, depois de um percurso em que uma cena da fantasia fundamental pode ser construída vai acontecer uma interpretação que poderá desmontar o enlaçamento do sofrimento que trouxe o sujeito à análise, ou seja: a fantasia e o sintoma, deixando o sujeito frente a frente com o seu desejo.
Notas:
(1)Lacan, J., “Proposition du 9 october 1967...”, in Scilicet nº 1, Ed. du Seuil, Paris, 1968, pag. 14.
NOTA: Esta frase foi motivo de amplo debate entre Guy Clastres e J.A. Miller, publicado em Revue d’École de la Cause Freudienne, nº 18, pag. 209.
(2) Ibidem.
(3)Lacan, J., “Sur l’experience de la passe”, in ORNICAR? 12/13, Ed. du Seuil, Paris, pag. 117.
(4)Lacan, J., “Proposition...” op. cit. pag. 14.
(5)Lacan, J., “Sur l’experience de la passe”. Op. cit. pag. 118.
(6)Miller, J.A., ”Donc, je suis ça”, in Revue de Psychanalyse nº 27, pag. 10.
(7) Ibidem.
(8)Lima, C.R., “A segunda entrada em análise...”, in Opção Lacaniana nº 15, pags. 66-68
(9) Ibidem.
(10)Lacan, J., “De nos antécédents”, in Écrits, Seuil, Paris, 1966,pag. 66.
(11)Lacan, J., “Conferences et Entretiens”, in Scilicet 6-7, Seuil, Paris, 1976, pag. 40.
(12)Idem, - “Du sujet enfim en questions”, in Écrits, Op. cit. pag. 234.
(13)“Symboliquement imaginaire - c’est la geometrie ... la geometrie véritable n’est pas celle que l’on croit, celle que relève des purs esprits, mais celle qu’a un corps. C’est ce que nous voulons dire quand nour parlons de structure.”
- Imaginairement Symbolique - ça s’appelle la vérité.
- Symboliquement rèel - c’est l’angoisse (ce qui du rèel se connote à l’interieur du symbolique)
- Rèellement symbolique - c’est le symbolique inclus dans le réel - le mensonge.
Lacan, J., “Vers un signifiant noveau”, in ORNICAR? nº17/18, pag. 9.