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segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Célio Garcia, um Psicanalista

 Célio Garcia, um Psicanalista



Conheci Célio Garcia no final dos anos 1970, mais exatamente em 1977, quando comecei a fazer o que era conhecido como Formação Psicanalítica no Circulo Psicanálise de Minas Gerais. Até então não havia escutado uma palavra sequer sobre Lacan, pois vinha de um convívio com a IPA de São Paulo. 

O encontro com Celio, em um dos semestre da “Formação" foi também um encontro com o ensino de Lacan e, então criou-se um amor a primeira vista. Como consequência uma transferência se estabeleceu com esse que, com seu jeito simples e firme, me apresentou um novo saber estabelecendo um lugar que foi muito importante para a minha vida pessoal e profissional. Digo firme porque àquela época e naquele espaço de transmissão o ensino de Lacan era chamado de “lacanagem" por muitos, o que deixava quem se interessasse por ele fora do “círculo”. 

Mas, mesmo assim, a transmissão que Celio fazia me levou aos textos, e consequentemente, direto ao ensino de Lacan o que produziu uma virada no meu trajeto abraçando e buscando criar um espaço onde pudéssemos levar em frente o ensino de Lacan. Foi quando pudemos participar do Grupo de Estudos Freud Lacan - GEFLA - até que foi criada Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano. 

Entre esse primeiro encontro e a minha decisão de escolher Celio Garcia como meu analista 10 anos se passaram onde dois analistas sustentaram o lugar de Sujeito Suposto Saber sem muito poderem fazer para mobilizar o sujeito em questão.

Como os sintomas insistiam foi necessário uma terceira experiência e, então, fui acolhido pelo Dr. Célio. É verdade que eu já tinha estado com ele, nos encontros de estudos que promovia em sua casa. Ali, muito me impressionou a disponibilidade de Célio para escutar, dar espaço a que todos falassem sem destituir o que era produzido. Essa forma de estar com as pessoas foi fundamental. Ele nunca se recusava a fornecer do seu saber para quem quer que seja, ao lado de uma dedicação impressionante às questões sociais. Ao lado destes fatos a transferência que se instalou propiciando uma demanda de análise veio sustentada por uma questão da fantasia do sujeito: ele sabia escrever. Isso foi muito trabalhado quando dos relatos da experiência de final de analise. 

Mas, de toda a vivência impar que pude ter com  minha convivência no divã de Celio Garcia, destaco os momentos de espera em sua sala de visitas, ao lado de uma biblioteca que despertava e sustentava meu desejo de saber. E assim foram 10 anos de analise com dois momentos muito importantes que relato aqui. Sim, porque sem esses momentos uma análise não se concluiria.

Relatei acima que me encantou como Célio estava sempre disposto às demandas e sempre solicito em atendendo-las. Pois bem, isso sustentou o imaginário da transferência e as   produziu inclusive uma saída precipitada da análise em um momento que o sujeito se arvorou em tudo saber. Mas na retomada, poucos meses depois o sujeito se depara com um corte que produziu uma primeira virada em seu percurso. Um corte que somente quem pode se sustentar neste lugar de um analista diante das demandas de seu analisante. Chegando de volta e, talvez, contando com a “disponibilidade” do sujeito Célio foi solicitada uma negociação com algumas “exigências" tipo horário, preço da sessão, recibos. A resposta veio imediata: “aqui não tem negociação”. Esse ato analítico desenhou todo um novo trajeto que veio a se concluir alguns anos depois com um final que teve uma outra intervenção memorável que colocou o sujeito em cena para que tomasse posse de suas escolhas e pudesse transformar o resto que sempre permanece ao final, em causa de desejo: estando às voltas com o imbróglio de seu nome próprio e as demandas do Outro que reeditavam infinitamente as demandas maternas: seja um Rennó, um sonho traz o Lima à cena e a intervenção veio prontamente: Mas Rennó é o nome da mãe e Lima o nome do pai. Este ato que reintroduzir o pai na cena foi fundamental para desfazer o enlaçamento do Real, Simbólico e Imaginário que sustentavam esse sujeito na cena do mundo para poder estabelecer um novo enlaçamento a partir de um Nome Próprio que pode sustentar um Sinthoma e propiciar um saber aí fazer.

Por tudo isso e outras mais, hoje sou grato a Célio Garcia por ter me escutado como UM PSICANALISTA.


Minas com Lacan - Autores Mineiros

Entrevista com Celso Rennó Lima

Livro: “Psicanálise Caso aCaso”


Minas com Lacan: Trata-se de um livro dedicado à transmissão da psicanálise calcada na elaboração teórica a partir da construção de casos clínicos, ou seja, na práxis, experiência singular de um analista, inclusive na construção do caso clínico próprio, como no relato de um passe. Para você, qual a importância de se debruçar sobre as particularidades de um caso?  E como a singularidade de cada falasser, analisante, pode fazer avançar a psicanálise? 

R: Como o próprio nome do livro indica claramente, trata-se sempre do Caso a Caso. A psicanálise tem essa particularidade: busca sempre o mais singular, o um, que sustenta o sujeito na sua relação ao Outro. Assim se constitui o sinthoma como o bem mais precioso, a verdade identifica o falasser na sua relação com o pouco de realidade que o circunda. 

Mas para que isto possa ser cumprido, essa escuta do um, deve se desenhar num conjunto transmissível. Para isto o caso a caso acaba por fornecer elementos que nos ajudam a escutar o próximo falasser - sempre como novo, assim nos ensinou Freud - com elementos necessários para se fazer um cálculo possível e estabelecer paramentos para a direção do tratamento.   Daí a minha escolha do título deste livro: Caso aCaso. Um caso clínico só pode produzir alguma consequência se for marcada pela presença singular do objeto pequeno ‘a’. Sem essa possibilidade podemos cair na impotência ou na adivinhação, o que vai resultar, certamente, numa falácia.

 

Minas com Lacan: Comentando um de seus trabalhos em seu livro, Jacques Alain-Miller faz uma observação sobre o seu estilo de escrita e o aspecto propriamente literário de seu texto (pág. 47). O que você poderia dizer de seu processo de criação, tanto no aspecto artístico quanto teórico científico, na sua produção escrita?

R: Pergunta difícil, pois o processo de criação é particular e tem muito a ver com o momento e as motivações que se apresentam para cada texto. Posso dizer que sempre que me proponho a escrever ou fazer alguma fala numa lição de seminário, p.ex., só me permito ir em frente quando percebo que o que está sendo produzido é meu. Sim, depois de depurar todas as referências do Outro, consigo perceber que é um texto do qual tomei posse. Lembro-me sempre do que Freud disse, referindo-se ao texto de Fausto de Goethe: aquilo que herdaste de teu pai, conquista-o para faze-lo seu. Uma vez de posse do que escrever-falar, só resta produzir com liberdade o que se pretende transmitir. Costumo brincar, ao comentar sobre um texto que produzo, que ele só fica pronto quando está se movendo como uma música. Talvez por gostar muito de música e poesia, esta referência volte sempre.

Minas com Lacan: Há discussões importantes no meio psicanalítico sobre os diagnósticos e sobre o próprio posicionamento de Lacan em relação a essa questão. No seu livro, parece claro seu cuidado com a importância de sustentar o diagnóstico (estrutural) como um aspecto fundamental na prática clínica. Você poderia elucidar a importância de se sustentar essa vertente considerando a segunda clínica de Lacan?

R: Primeira clínica x segunda clínica! Não penso assim. Cada caso vai exigir que se lance mão do que existe de teorização e formalização possível para que possamos fazer andar o que está congelado no sintoma de um falasser. O trabalho que Lacan desenvolveu ao longo do seu ensino foi constantemente revisado por ele mesmo. Este é o estilo de Lacan: sempre que havia um impasse na clínica com respeito a uma posição teórica que havia desenvolvido ele fazia andar o corpo teórico de seu ensino no sentido de fazer andar as coisas. Como ele mesmo disse: o Importante é que “ça marche”! Por isso não penso que possamos estabelecer uma hierarquia ao dizer que a segunda clínica, ou o ultissimo Lacan seja mais importante do que a primeira clínica. Existem situações em que a abordagem tal como ensinada na primeira clínica é fundamental para fazer as coisas andarem. Quero lembrar aqui um fato essencial que nunca vi referência quando se tenta discutir esse tema: o proprio Lacan foi buscar o “primeiro Freud” para fazer dele o baluarte de seu ensino. Por isso confio no Caso aCaso. Cito duas passagens de JAMiller no seu seminário que tem sido veiculado como O Ultissimo Lacan, que foi traduzido para o português como Perspectivas do seminário 23 de Lacan: o Sintoma.


“Por conseguinte, a teoria do inconsciente-história tem muitas coisas a seu favor. Nem se pode pensar em esquece-la. Não se devem conceber os termos que uso, tais como primeiro e último Lacan, no sentido de uma teoria sobrepujar a outra. Isso obedece mais propriamente ao tipo de formação evocada por Freud a respeito da neurose, ou seja, uma superposição e uma acumulação de teorias que, de certa forma, se encontram co-regentes. E hoje, quando escutamos um paciente em análise, quando relatamos o seu caso, existe, claro, uma dimensão que é a do inconsciente-história. Podemos dizer que conservamos  algo da vocação totalitária da teoria quando fazemos os seus diversos vieses ficarem lado a lado.”

E,

“Se nos deixamos levar pelo girar e círculos, sem duvida ficamos aturdidos com isso. Em contrapartida, a estrutura é o que permite sair do aturdimento…”


Minas com Lacan: No capítulo “Do delírio ao ato ou da clínica ao matema” você relata um caso emblemático: um psicótico grave, com sintomas de agressividade e atos de violência  ̶̶  inclusive contra o próprio analista  ̶ , que faria muitos profissionais recuarem. Entretanto, o que pode ser lido nesse caso, ao contrário, é a presença de um analista, com seu desejo, orientação, disponibilidade, oferta de escuta, que se propõe a não encarcerar e a secretariar um psicótico. Você poderia falar um pouco desse posicionamento ético?

R: Não ceder do seu desejo é talvez o preceito ético mais emblemático do legado de Lacan. Não só no “caso José”, como costumo denominar este escrito, mas em qualquer situação em que se é chamado a responder de um lugar onde o sujeito em questão é sempre o analisando. O “desejo do analista” se constrói na própria analise, na medida em que se pode deixar claro a distância entre o desejo de “ser” analista e o desejo de sustentar um lugar onde uma demanda, seja ela qual for, pode ser sustentada sem se deixar levar pelo que pode aparentemente apresentar. No caso em questão, a demanda do “José” era mostrar que eu o temia e iria embora como todos os que me antecederam. Ao sustentar o lugar e poder lidar com esta sua demanda, expressa nas próprias agressões, foi possível abrir um novo caminho onde uma escuta possível, sim possível pois se tratava de uma psicose, pode acontecer. Ficou muito clara a resposta a não ter cedido quando, assim está descrito no texto, após uma agressão ele dizer: “agora eu fiz um olho diferente do outro”, ou seja, uma diferença  foi sustentada e suportada na transferência. A isto se seguiu a seguinte fala: “Você não foi embora como os outros”. Estabeleceu-se ali, a partir da sustentação de um desejo, que se pode definir como sendo do analista, a possibilidade de uma “conversa” onde suas poesias e seus segredos puderam ser compartilhados e, como consequência, uma pouco de realidade ser construída onde José pudesse se locomover sem ser acossado pelo delírio de ser destruído.


Minas com Lacan: Ao final do livro, você sustenta que um “momento de concluir” é aquele “que relança o vetor do desejo na direção de um trabalho que pretende continuar vivo em função da causa que o sustenta” (pág. 155). Qual a relação deste momento e a vivacidade de uma transmissão com o endereço a uma Escola de Psicanálise, à relação institucional com a Escola?

R: Uma análise não termina, mas o processo analítico que implica um analista e um analisante sim. Continuamos a trabalhar mesmo quando não mais precisamos de endereçar nossa falar a um Sujeito Suposto Saber, pois se construiu um saber fazer com seu sintoma. Posso até arriscar dizer que tomamos nas nossas mãos o saber suposto e, a partir dai, nos é permitido fazer outras escolhas, inclusive para onde dirigir nossa produção. Quando estamos vinculados a uma Escola que sabe acolher o que lhe é endereçado, então podemos continuar nosso trabalho na transmissão do que não cessa de se não se escrever e insiste em produzir um novo que relança novos vetores sempre. O lugar da transmissão já se coloca com toda sua força no próprio dispositivo do Passe. É daí que persiste o desejo de poder compartilhar o que se aprende a cada vez que, convocado ao lugar do analista, se pode produzir no Caso aCaso.


Minas com Lacan: Citando uma passagem do seu texto, “o que nos interessa no PASSE é saber como um sujeito pode se desvencilhar das amarras que o impediam de saber do Real que está em jogo na formação do analista”. Na experiência do PASSE, podemos dizer que há a construção do próprio caso clínico. Em quê a experiência do PASSE, e mais, a experiência com AE da Escola Brasileira de Psicanálise, modificou a sua prática como analista?

R: Penso que, de alguma forma, já trabalhei um pouco o que está sendo colocado nesta questão. Mas posso dizer de forma sucinta que a grande modificação que o final de análise e, como consequência, o procedimento do Passe e o período do exercício da transmissão durante a vivência do período como AE produziu foi um esvaziamento do Outro que sempre se apresentou como fator de inibição ao sujeito. Assim pode-se não só escutar cada falasser do seu lugar, como foi possível "escrever sem correr risco". Lembre-se que no texto do meu passe eu frisei que minha escolha dos analistas foi para aprender a escrever. Ora, o que pode ser definido ao final é que o que se escreve é sempre por sua conta e risco. Verdadeiramente um “agora é por sua conta”.

Minas com Lacan: Qual foi a importância de escrever o livro “Psicanálise Caso aCaso” e publicá-lo? Em 2004, você também publicou um livro de poesia – “Como quem duvida”, pela Ophicina de arte e prosa-, a poesia e a psicanálise se esbarram? 

R: Publicar o livro Caso aCaso foi a realização de tudo que o processo de análise veio a esclarecer: “sei escrever”. com isto todo o processo  de escrita foi atestado como possível e de minha inteira responsabilidade. Basta verificar o quanto pude escrever depois disto. Além do livro podemos encontrar vários textos no meu Blog (clinicalacaniana.blogspot.com.br) que, pelo visto, tem sido muito acessado.

A poesia, como se sabe, está presente no processo de análise. O livro de poesias que escrevi foi produzido durante minha análise. Muito do que ali se apresenta nada mais é do  elaborações das passagens que vinham acontecendo no divã. Dai o título do livro: “Como quem duvida”. Acho que uma das últimas poesias que foram escritas, apesar de não estar assim no conjunto do livro é bem suscita e diz do que pode se apresentar quando uma passagem acontece em uma análise:

Asas

Asas azuis,

Asas no azul…


Elos desbaratados,

Transparecem asas

E se deixam voar…


A história de Otávio, o Colecionador

Para darmos conta de “escrever um quadro”, ou seja “escrever isso que não se pode dizer nem se ver e que se mostra ao capturar seu espectador”, vamos convocar, com Hervé Castanet, à Otávio: 66 anos, admirador do Marechal Petain, Professor de Direito Canô­nico e de Escolástica na Faculdade Católica. Otávio é casado com Roberta, uma jovem e bonita mulher. Seu hobby é colecionar quadros de um pintor desconhecido da segunda me­tade do século passado. Trata-se dos quadros de Frédéric Tonnerre. Otávio se orgulha de ser seu único colecionador.

Otávio passa horas a olhar aquelas telas, a ponto de escrever, no seu diário que, pelo olhar, o seu, é que as telas tomam vida. 

Mas é exatamente nessa sua tentativa de “fazer” o quadro pelo olhar que Otávio fracassa. Ele fracassa diante do que ele denomina “a glória” da obra, glória, esta, que ele compara ao mistério do Santo Sacramento. “A glória do quadro, diz Castanet, é que há nele, segundo nosso colecionador, uma “presença real” que absolutamente a ultrapassa ...  Uma presença real que lhe olha, enquanto que ele, somente vê a pintura e a descreve” As­sim, seu olhar não faz totalmente o quadro e alguma coisa perdura e o faz escrever longas descrições em seu diário.

Mas, o que, na verdade prende Otávio e o faz estabelecer um catálogo de suas obras está na epígrafe de seu diário. Trata-se de uma frase de Quintiliano: “Alguns pen­sam que há um solecismo no gesto, todas as vezes que, por um movimento da cabeça ou da mão, damos a entender o contrário do que se diz”. É, portanto, o solecismo o único motivo pictorial dos quadros de Tonnerre. 

(Nosso D. Juan dizia que à ele não importava se as mulheres eram bonitas ou feias, mas um traço de diferença que percebia nelas, assim que as via.) 

Diante deste ponto em que a pintura se cala é que Otávio vai dizer: “trata-se do desvelamento de uma violência, onde uma mulher está aí implicada. O que Tonnerre quer  exprimir é esta simultaneidade da repugnância moral e da irrupção do prazer na mesma alma, no mesmo corpo”. Este ponto de báscula, mostrado por uma mulher, é o que fascina Otávio. 

Isto se explicita no quadro de “Lucrécia”, a heroína romana, que Otávio descreve com precisão: “se ela cede, aos avanços de seu conquistador, ela trairá evidentemente; se ela não cede, ela passará por ter traído, pois, morta pelo seu agressor, ela será caluniada, por acréscimo”. Ao descrever o quadro, Otávio “vai perseguir aquele ponto de irrupção de prazer no corpo, ainda preso na repugnância, expressa pela posição das mãos que vão dizer de um desejo, ao mesmo tempo que evitam o crime”.

Sabemos que o personagem sadiano não obtém a adesão de seu interlocutor pela argumentação, mas sim por sua cumplicidade, que é afinal de contas, o que Otávio aponta no solecismo, na ambigüidade dos gestos.

Toda esta situação vai enfim questionar e embaraçar Otávio, “ao se fazer olhar, não é o ‘como pode gozar do Outro?’ que lhe atormenta, mas como e de que goza o corpo do Outro, prioritariamente tornado presente por uma mulher: ... Como mostrar e, portanto, como ver e fazer ver o gozo feminino?” É esta, no final das contas, a paixão de Otávio, que busca “este ponto onde o corpo da mulher dissimula os charmes, tanto mais exuberantes quanto mais eles são velados, pontos-báscula que a mancha de carne revela ao se furtar à vista” comenta Otávio e conclui que: “sem pintura não há dito”.

Para levar isto às suas últimas conseqüências, Otávio passa a colecionar quadros vivos, colocando em cena personagens de carne, procurando imitar a arte pela vida: “a vida se dando em espetáculo ela mesma; a vida permanecendo em suspenso”, num esforço de “passar por detrás de nossa vida para olhá-la”.

Todo o processo é de observar esta vida sob a “sensação de desaparecer como su­jeito: (...) a visão é para mim, insiste Otávio, a última chance de saída (...) a única certeza de minha existência consiste no fato de ver isso que chega quando se crê que eu aí não sou”. É assim que Otávio se torna “todo inteiro olhar envolvido”. É deste lugar que ele vai colocando em cena, uma a uma, as pinturas de Tonnerre, na intenção de obter esta “simultaneidade da repugnância moral e da irrupção do prazer na mesma alma, no mesmo corpo”. E ele aí vai implicar, sistematicamente, sua mulher Roberta.

Otávio passa, então, a descrever as cenas congeladas nestes quadros vivos, onde Roberta é a jovem pura, submetida aos impuros apelos  que vão despertar nela a irrupção do prazer. Cenas em que Roberta é descrita como estando inteiramente nas passagens e é reduzida ao ponto-báscula, imobilizada por homens desconhecidos que abusam dela. Otávio vai definindo, passo a passo, as regras perversas onde Roberta se torna uma puta: “É o momento tanto perseguido, nos diz Castanet, o instante da porta aberta onde os semblantes se desmancham deixando aparecer a verdade da essência da esposa: seu gozo próprio, o mal e sua irrupção, sem palavras, sinaliza a morte de Deus”.

É a maneira de desconectar o corpo dele mesmo, de trazer à tona “uma força estra­nha ao interior do significante”: as forças da não palavra. Do que se trata, afinal de con­tas, é de extorquir ao outro, para-além do semblante fálico, o Outro gozo que ele esconde.

A escolha dos homens estranhos acabava por produzir, em Roberta, exatamente o “frisson” que satisfaz e que sinalizará a irrupção do gozo que a divide e a deixa sem pala­vras.

Mas, novamente Otávio fracassa, como diante dos quadros de Tonnerre. Para re­petir infinitamente seus quadros vivos, ele segue atribuindo este fracasso à Roberta não ter seguido, precisamente, as suas regras. O que ele não sabe é que, na verdade, o que ele tenta é delimitar esse real (a glória da tela) que jamais será redutível `a rede significante. Este real que é o buraco delimitado no coração central do quadro, ponto esvaziado, para o qual  olha nosso herói, exatamente aí onde não pode vê-lo.

Cada vez mais insuportável, o fracasso constante leva Otávio a lançar-se, ele mesmo na cena. O quadro escolhido é o da “Bela Envenenadora”. É um quadro que pro­cura ilustrar uma cena de incesto. Otávio demanda a Roberta mais uma participação. Mais uma,  para que ele possa saber enfim ! Para que ele saiba, enfim, o que é Roberta.

E Otávio decide: “deve morrer para se reduzir a um puro olhar, propriamente fa­lando, eterno: ‘Eu verei sempre! Exclama...’ Ele, então, entra na cena e, ponto culminante, toma o veneno que lhe dá Roberta. Morrendo, nosso sujeito perverso tenta - tal é o ponto de seu fantasma que assim libera sua lógica - se colocar definitivamente do lado do Outro. Ao colocar em cena sua morte, ele ensaia se equivaler ao Outro, absoluto, não bar­rado, que concretizará o gozo que nenhum significante virá encantoar ou furar...  e se li­bertará definitivamente de sua divisão. (...) Morto, Otávio não dirá mais nada, nada mais de ‘Che Vuoi?’ tormentoso”. Assim ele tenta apagar do Outro toda falta que se simboliza pelo corpo dA mulher [S(A/)].

  Para concluir: “Tal teria sido, a partir desta Tiquê inaugural, o destino subjetivo de Otávio. Para se fazer olhar cego da ‘emoção satisfeita’ de sua esposa, onde ele tentou ver se desdobrar o gozo do corpo do Outro que não tem forma, nem nome, S(A), ele vai até desaparecer. Otávio não pode chegar a se fazer voyeur absoluto de Roberta. Tornando-se definitivamente Outro. Ele será, enfim ‘voyeur’ do gozo feminino, mas morto, Outro abso­lutamente

Quanto ao manejo da transferência...

 Quanto ao manejo da transferência, minha liberdade, ao contrário, vê-se alienada pelo desdobramento que nela sofre minha pessoa, e ninguém ignora que é aí que se deve buscar o segredo da análise.”(1) (Escritos, pag. 594)


Celso Rennó Lima


A estratégia está ligada à transferência e aqui o analista não é senhor. Talvez tenha sido isso o que durante tanto tempo motivou os analistas a tentaram fazer semblante de tela branca, ou até mesmo de indiferença, com a intenção de transmitir uma imagem de domínio. O analista, no que concerne à transferência, está ali como alienado, por este motivo não é um sujeito indeterminado, não é o sujeito puro da teoria dos jogos. Teoria esta da qual Lacan lançou mão para dar conta de suas formulações no início dos anos cinquenta. (Cumpre ressaltar que esta época foi  marcada pelas teorizações de Von Neumann e que temos no texto "A carta Roubada", que abre a coletânea dos “Escritos", comentários importantes deste momento.)

Retomando a frase que escolhemos para comentar, ou seja, a da alienação que sofre a pessoa do analista pelo desdobramento que acontece na transferência, constata-se que Lacan critica a ideia de uma prática analítica como uma situação a dois e, principalmente, onde um Eu fraco se vê compelido por um Eu forte a uma reeducação emocional. Percebem-se, neste movimento, as razões para a tendência à padronização da pessoa do analista, julgando que quanto mais o analista fosse anônimo, invariável, mais ele poderia se prestar à superfície de reflexão, deixando-se enganar pela "metáfora do espelho" e, "sobretudo, à exaltação fácil de seu gesto de atirar os sentimentos - imputado à contra-transferência - no prato de uma balança em que a situação se equilibraria por seu peso que atesta, para nós, uma consciência pesada que se correlaciona com a renúncia em conceber a verdadeira natureza da transferência”. (2)

Tudo isto acontecia por se confundir a posição do analista com um objeto passivo da fantasia do analisante, congelando sua posição como pai morto, pai ideal, que teria o domínio de seus desejos sendo, portanto, completo e perfeito e podendo guiar o analisante pelo Aqueronte sem se deixar molestar por ele. A consequência disto consistia em dirigir o analisante a uma identificação ao analista, eternizando os laços transferências.

O lugar do analista é denominado por Lacan, a partir do Seminário "A Identificação”, como sendo aquele onde habita um Sujeito Suposto Saber exatamente por que o analisante supõe que nada sabe e que seu sintoma tem algo a ser interpretado. Isso indica que o sintoma, tomado na transferência, está sob a égide de uma nova significação da qual o analista é o suporte. O sintoma, na vertente da transferência, inclui o analista na sua constituição, assinalando a ele um lugar no inconsciente: o analista é uma formação do inconsciente, nos diz Lacan. Isso nos permite compreender como o analista pode operar sobre o sintoma, partindo do fato de que ele não é exterior ao objeto sobre o qual vai intervir. O analista, portanto, não pode fazer como um médico que coloca o objeto de sua observação e experiência a certa distância. Talvez por isso pode-se dizer que sempre algo de sua ação lhe escapa. Lacan nunca cansou de afirmar, na contra corrente do que dissemos acima sobre o ideal do analista perfeito, que é muito importante que ele preserve a dimensão imaginária de sua necessária imperfeição, de jeito algum como invariável, sendo ele próprio sujeito às investidas do desejo. Claro que isso só é válido se seu desejo de sujeito não estiver aí implicado fazendo com que uma vacilação calculada da "neutralidade" possa valer como interpretação. Lacan, já neste texto, apresenta o analista como fazendo parte da fantasia do analisante. 

É desta forma que ele vai, desde o início, participar do jogo do significante nas formações que o analisante apresenta. Ele surge como uma variável que deve ser levada em conta a partir da estrutura da fantasia. Por isso o analista deve saber, e aí está a dessimetria fundamental em relação à díade amorosa, ele deve saber aonde vai, pois não pode ficar entorpecido pela fantasia do analisante que estabelece as bases da chamada neurose de transferência. Por isso o terceiro termo: a política da psicanálise.


  1. Lacan, J. A direção do Tratamento e os princípios de seu poder, in “Escritos”, Jorge Zahar Editor Ltda, Rio de Janeiro, 1966, Pag. 594
  2. Idem, pag. 595.