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quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Anorexia - Um para além da Histeria

A clinica sempre nos coloca novas questões, ao mesmo tempo em que re-atualiza antigas. É neste movimento que nos vemos, nesta jornada, a trabalhar em torno das possibilidades e impossibilidades que os “novos sintomas” têm apresentado quando abordados pela psicanálise.
Esclareço os termos desta minha contribuição: trata-se de questões e, portanto proponho conversar a partir do “não saber” sobre estes sujeitos que têm chegado até nós, seja por iniciativa própria ou trazido por familiares, e que apresentam, como característica comum, a ausência de sinais de uma subjetivação capaz de fazer funcionar seus sintomas como demanda.
 Estes sujeitos, diante da força unificadora da globalização, lançam mão de sintomas impermeáveis à intervenção do analista, na esperança de fazerem sobreviver uma singularidade ali, onde se está cada vez mais submetido às demandas de um discurso que tenta, de todas as formas, apagar a possibilidade da escolha e, conseqüentemente, do desejo.
A radicalidade destes  “novos sintomas” toma formas variadas: anorexia-bulimia, toxicomanias, compulsão ao consumo, entre outros.

Escolhi a anorexia. Um recente “caso clínico” demonstrou a ineficácia de certas abordagens apontando para a existência do que estou chamando “Um para Além da Histeria”. Sim, um para-além, pois parto do pré-suposto de que o Discurso da Histeria jaz subjacente ao clamor que se escuta nos sintomas que, exatamente por estarem para além dele, dizem de um modo de gozo, aparentemente refratário, ao Discurso Analítico. Pretendo lançar algumas idéias que possam ser discutidas, pontos por onde o Discurso Analítico poderia fazer sua entrada e promover alguma retificação pulsional.
Um passeio pela história da anorexia, enquanto um sintoma importante para o ser falante, nos diz da pobreza de sua descrição pelas classificações psiquiátricas atuais. Refiro-me aqui ao CID 10, que, em sua tentativa de acompanhar o discurso de nossa época, universaliza, categoriza, classifica a anorexia na série de outros, fazendo com que sua especificidade desapareça. E, mais ainda nos faz esquecer que, como fenômeno ou síndrome, ele já era encontrado em épocas remotas. Já no século XI, tem-se descrição de sintomas anoréxicos, assim como de apresentações públicas dos chamados “esqueletos vivos”. Mais recentemente, durante a primeira guerra mundial, p. ex., descreve-se a presença de homens esqueletos, nomeados “artistas da fome”, expostos ao olhar do Outro, em cabarés. Esta relação entre a anorexia e o olhar é freqüente o bastante para nos autorizar a pensar, no contexto destas jornadas, que o anoréxico é um sujeito que se faz devorar pelo olhar do Outro. O parceiro sintoma do sujeito anoréxico se identifica, portanto, pela presença do olhar, nos dizendo que a pulsão escópica ocupa um lugar importante na formação deste “sintoma-parceiro”.  
A fórmula “sintoma-parceiro” foi proposta por J-A. Miller, “para dizer do que se servem alguns sujeitos para entrar no discurso social e a repartir, assim, os gozos que estão fixados em uma identificação mortífera (holofrásica) a um traço paterno.”
Hoje, mesmo que os “artistas da fome” estejam reduzidos a um ou outro sobre os quais escutamos ou vemos pela mídia, eles proliferam nos consultórios médicos onde se verifica a presença desde gozo escópico onde cenas são descritas e repetidas para dizer do olhar assombrado que assinala o terror que experimentam os familiares destes pacientes. Assim este olhar sustenta uma pareceria, tornando-o um componente indissociável do invólucro formal deste sintoma clínico. 
A anorexia, portanto, não estaria a serviço do culto à beleza ditada pela “moda”, mesmo porque o que ela produz está longe do ideal de beleza.  Ao contrário, o que vai se apresentar é a face do horror, deixando claro que o véu do belo, último anteparo do real, não cumpre aqui sua função. Verifica-se, então que, longe das razões culturais com as quais tenta-se justificar a proliferação dos “artistas da fome”, o que se vê é o ideal de beleza passar ao largo das imagens que estes sujeitos explicitam.
Carlo Viganó, chama a atenção para o fato de que o movimento presente nestes “novos sintomas” vai, exatamente, na contra-corrente do ideal. 
Seguindo esta trilha conclui-se que os “novos sintomas” colocam problemas na significação proposta pelo discurso do Mestre. Eles dizem de um distúrbio neste intervalo, S1 – S2, ali onde um sujeito desejante poderia ex-sistir, pois a identificação que levaria o sujeito a propor um S2 como seqüência ao S1 que dita a orientação, vai ser deslocada, substituída por uma identificação mortífera a um traço paterno que não se fez diferenciar da significação que lhe acompanha, produzindo o que Carrabino, citado por Viganó, denomina uma “holófrase de posição” distinguindo-a daquela própria à estrutura psicótica. Esta “holófrase de posição” se localizaria na passagem da histerização do discurso, ou seja, no momento em que o sujeito se dirige ao Outro na esperança de que uma significação, um saber sobre a sexualidade, lhe seja fornecida. O distúrbio se apresenta como conseqüência do sujeito encontrar não um S1, mas uma massa composta da somatória de S1+S2, fechando a possibilidade do circuito pulsional neste ponto.
Se este é um problema, também pode apontar uma saída, e é por aí que vou caminhar. 
Ao se tomar a pulsão em sua relação com a satisfação, o prazer e o gozo, verifica-se que quando o sujeito extrai um pouco de prazer com o que está mais além do prazer, isto é, quando ele consegue um pouco de prazer com o gozo, trata-se aí da sua fantasia. Mas, quando o sujeito vai satisfazer a algo que o confronta com o mais além do princípio do prazer, dizemos que é um assunto que se passa entre a satisfação e o gozo, estando em questão a pulsão. Em outras palavras, se colocamos o sujeito do lado da fantasia, ele será satisfeito por algo, se o colocamos do lado da pulsão, teremos um sujeito que satisfaz a algo. Isto é para dizer que, de modo algum o sintoma será o mesmo se o abordamos pela dimensão do prazer e do gozo (fantasia), ou do gozo e da satisfação (pulsão).
Abordar a anorexia pelo viés do “desejo de nada”, como temos feito até aqui, seria aborda-la pela fantasia, onde prazer e gozo se enlaçam num circuito congelado e silencioso. 
Pensemos, portanto, pelo viés da pulsão, onde o que se enlaça é gozo e satisfação.
O espelho é, ao lado do olhar de terror dos familiares, um outro parceiro do sujeito anoréxico. O que ele descreve de sua visão pode ser resumido em dois pontos: por um lado busca encontrar aquela “gordurinha a mais”, por outro ele vê a imagem do ideal, o “belo” que procura sem cessar. Entre um e outro se desenha o que poderia ser uma demanda: “quero apenas emagrecer 4 quilos”, dizia o sujeito, “se você não puder me ajudar aí, me diga que vou procurar outro!”. O que lhe interessa é o imediato traduzido em medidas, seja quilos ou centímetros, não importa. 
O que está priorizado pela sociedade consumista e globlizanate é a ética da satisfação e não a do desejo.
O fragmento de um romance que relata a pretensa biografia de uma menina que “desejava” fazer parte do corpo de baile do “Opera” de Paris nos ensina sobre a importância desta subversão ética nos sujeitos anoréxicos: “anunciar a Plecture, que ela não poderia mais dançar, correspondia a anunciar a Napoleão que ele nunca mais comandaria o exercito. Era priva-la não de sua vocação, a vocação está ligada ao desejo, está certo !, mas de seu destino.”

Da mesma forma o sujeito que nos procurou não admitia que lhe dissemos não poder emagrecer os quatro quilos a mais. Este pedido estava para além de uma escolha e, portanto, ele não estava interessado no retorno do saber produzido no campo do Outro, dizendo da ineficácia da interpretação do analista. Ele sabia do objeto que poderia produzir a satisfação imediata: Uma imagem especular onde o “a mais” não se apresentasse, nos dizendo que sua identificação com esta “holófrase de posição”, este amalgama de S1+S2 impede que o desejo do Outro lhe chegue como causa, mas sim como marca de uma identificação que não deixa espaço ao sujeito do desejo. A identificação é ao objeto da pulsão fazendo valer o circuito da fantasia ao fazer-se devorar pelo olhar do Outro. Esvaziar este lugar no Campo do Outro pode ser uma possibilidade de se restituir à pulsão sua satisfação pelo viés do seu circuito. Em outras palavras, ali onde ele seria satisfeito por algo – objeto da fantasia ao qual se identificou, poderá se construir um sujeito que satisfaz a algo, desmanchando a solução que o sintoma anoréxico edificou.