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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Consentir com o inconsciente


Começo pela constituição do sintoma, partindo do seu "envelope formal": a cadeia significante, para dizer do que é o ser do sintoma: a castração. Deste ponto pode-se perceber sua função de se prestar a fazer laço entre o sujeito e o Outro, aí onde a incidência da fala abriu um espaço entre dois campos: o do sujeito e o do Outro. Em outras palavras, o sintoma está presente no ponto em que a transmissão da castração não se faz toda, enquanto um quarto nó que se presta a enlaçar o ponto mesmo de impossibilidade entre o real e o simbólico. Chama atenção a importância da particularidade do sintoma para aquele que se apresenta com uma queixa em busca de uma análise. A função do analista, neste momento, pode ser resumida da seguinte maneira: transformar o que lhe chega como queixa em sintoma analítico. É o que Lacan chamou, num certo momento de seu ensino, de retificação subjetiva. Operação necessária porque o sujeito da queixa se apresenta mostrando uma certa distância, um certo hiato, entre o que ele deseja ao nível das identificações e os efeitos próprios do sintoma pois, se o sujeito reconhece seu sintoma, ele não quer aí se reconhecer, o que nos leva a supor um caminho que vai desde identificar o sintoma, à entrada do tratamento, até saber do porque foi necessário. Em outras palavras, é fundamental situar o sintoma do lado do que não cessa de se escrever (necessário) que está aí para responder ao não cessar de não se escrever do impossível do real. Em outras palavras, "o ser do sintoma substitui o não-ser do sujeito a partir do lugar onde, no inconsciente, isso pensa. Identificar-se ao sintoma poderá ser entendido, então, como a subjetivação do saber, para o sujeito, do que causou seu sintoma." 
Dito isto, pode ser dada um passo a mais e afirmar, com Lacan, que "no começo da psicanálise está a transferência". Esta frase, escrita na Proposição de 9 de outubro ..., pode ser lida em suas duas vertentes. Por um lado ela diz que foi necessário escutar a ação da transferência, desde o relato de J.Breuer sobre o caso Anna O. e seu manejo (de empecilho para estratégia) para que o método de tratamento (psicanálise) se estabelecesse. Por outro lado, não é possível acontecer uma entrada em análise se a transferência não estiver presente, colocando em ato o laço analítico. A própria transferência é definida como a colocação em ato da realidade sexual do inconsciente. 
A partir desta afirmação, pode-se dizer, com Hervé Castanet, que "a referência à manobra estratégica do início indica, de resto, em que o analista está implicado na sua direção." E que lugar é esse? De uma forma simples, nada mais é que um lugar que trata de preservar um buraco, um vazio, de preferência sob a forma de uma interrogação, que o analisante tenta tamponar, cada vez mais completamente. É isso que o analista deverá manter por seu ato, desde as primeiras entrevistas: um lugar que Lacan especificou como sendo aquele do objeto “a”, mas que, à entrada da análise, toma a consistência do que ele chamou de sujeito suposto saber Este é o lugar que sustenta o analista, na vertente da transferência, como sintoma. Esta é a suposição estranha que traz cada um que chega à análise, de que o Outro sabe, de antemão, o que ele mesmo acredita não saber. Poder das palavras, já postulado no próprio endereçamento ao Outro, pois elas guardam em si mesmas algo do ser do sujeito que deverá vir à luz. 
É, pois, diante deste convite que faz o analisante ao analista: que ele ocupe um lugar que possa restituir o equilíbrio, a harmonia perdida no momento que o sintoma não pode mais sustentar o ponto de inconsistência do enlaçamento do simbólico e o imaginário, que este deverá manejar o tempo necessário para que a operação de esvaziamento dos outros discursos possa abrir espaço ao discurso analítico. Esta operação só é possível a partir do ponto onde o desejo do analista se faz operacionalizável.  Ao tratar deste ponto em sua Proposição..., Lacan, chama a nossa atenção para a objeção que a transferência, por sua estrutura mesma, faz à intersubjetividade. Ponto importante do início de sua teorização, a intersubjetividade cai por terra a partir mesmo do fato de que "nenhum sujeito é suposto por outro sujeito", pois "um sujeito não supõe nada, ele é suposto (...) pelo significante que o representa para um outro significante." 
Daí a fórmula:
                           
                      S ———————————> Sq    
                              s(S1, S2,.... Sn) 

onde "S é o significante da transferência, quer dizer de um sujeito, com sua implicação de um significante que diremos qualquer, quer dizer, que não supõe senão a particularidade". Lacan, mais adiante, nos diz que se ele é passível de ser nomeado por um nome próprio, não quer dizer que ele se distingue pelo saber. Se há um saber que faz toda a diferença, é que, diante da reciprocidade demandada na relação amorosa que se estabelece na transferência este, que se nomeia neste lugar, sabe que há uma dissimetria fundamental: ele não tem o que lhe é pedido. O saber que lhe é atribuído, na verdade está instalado sob a barra, sob o primeiro significante e representado pelo "s” que representa o sujeito que aí resulta implicando, ao parênteses, o saber, suposto presente, dos significantes no inconsciente, significação que toma o lugar do referente ainda latente nesta relação terceira que o une ao par significante-significado." 

A relação analítica, portanto, só se sustenta em função da introdução deste elemento terceiro que é o significante qualquer, consequência do discurso que se instaura: sujeito suposto saber. Saber que o analista não encarna, pois ele nada sabe deste saber suposto, "o Sq da primeira linha nada tem a ver com o S da segunda". Aceitar este traço deixar-se envolver nesta suposição só faz reduzir sua ação à produção de uma identificação que vai reforçar a inércia própria do eixo imaginário. Na verdade, o que se coloca neste momento, é que há um saber a ser construído a partir "do não-saber que se ordena como o quadro do saber, (...) indicando aqui sua relação ao desejo que lhe deu consistência." 
Vamos retomar a clínica para dizer que um sujeito procura análise no momento em que "o sintoma se  apresenta como impossível a assumir" porque o rompimento de seu envelope formal vai colocar a céu aberto o que escapa à representação, à ação do pensamento (gedanken) e que permanece como um resto que Freud, no seu "Projeto ..." denominou de "a coisa" (das Ding). 
Buscar um analista torna-se, então, uma das saídas possíveis. Busca-se, no analista, um saber, como já lhes disse acima, que possa restituir a eficácia do envelope rompido. Na verdade, o analista é o único parceiro que tem a oportunidade de responder à esta demanda. A verdade é que todos procuram um analista, mesmo quando não se dirigem a um. Eles buscam um Outro que responda. Daí as paixões que se desenvolvem em torno da figura paterna, no sujeito histérico, que passa a vida inteira esperando que o pai diga alguma coisa de peso, e no sujeito obsessivo, de outra maneira, que, finalmente, possa falar com ele. Todo este movimento tem como causa a esperança de que seja devolvida, ao sujeito, a sua certeza de ser na singularidade própria de seu sintoma. É Albert Camus, numa passagem que só os escritores criativos produzem, quem diz muito bem do que se trata: "Ele não era nada senão esse coração angustiado, ávido de viver, revoltado contra a ordem mortal do mundo que o tinha acompanhado durante quarenta anos, esse coração que batia sempre com a mesma força contra o muro que o separava de toda e qualquer vida, querendo ir mais longe, ir além e, sobretudo saber*, saber antes de morrer, saber finalmente para ser*, uma só vez, um só segundo, mas para sempre." 
É, portanto, pela via do saber que começa uma análise e neste começo está a transferência: o amor ao saber. 
Responder deste lugar de saber, no entanto, poderá produzir alguns efeitos, mas nunca uma análise. Por isso é importante distinguirmos, com Gerard Miller, "a entrada em análise de seu começo (...) se quisermos dar conta desses alongamentos que se estiram sob o nome de uma análise, sem jamais iniciarem".
Para que uma análise possa acontecer é fundamental a intervenção de um analista. 
Novamente uma distinção se faz necessária. Quando Lacan, em sua conferência intitulada "A terceira" nos diz que "chama sintoma ao que vem do real", ele explicita que este, o sintoma, só se acalma se lhe nutrem de sentido, de tal maneira que só há duas saídas: ou o sintoma prolifera ou se reinventa. Ora, proliferar o sintoma não é bem o objetivo de uma análise, nem muito menos é seu objetivo extinguí-lo. O fundamental é que não nos esqueçamos de que na base do sintoma está uma impossibilidade que, sendo de estrutura, se define por: "não há relação sexual". É a partir mesmo desta impossibilidade que o sentido insiste no 'automaton' da cadeia significante.
Não nutrir o sintoma para que este prolifere, ou como usualmente escutamos: não responder às demandas do analisante propiciando a ele a oportunidade de escutar por detrás dos ditos, é função do analista. Uma interpretação não é, pois, aberta a todos os sentidos (como quiseram estabelecer alguns, entre eles Leclaire e Laplanche) mas ao real que constitui o núcleo do sintoma e aí se coloca como um “x” impedindo que as coisas andem. Ao visar este núcleo, este para-além da significação, a interpretação ou o dizer silencioso do analista - e aqui me refiro ao silêncio da falta de palavras [S(A/)], "porque o que é dito numa interpretação não é o sujeito do analista" - é que vão promover uma volta a mais a partir mesmo do um-a-menos de sua resposta.
  
Esta volta a mais só será possível se o analista não ceder de seu desejo, permitindo que os efeitos do reinado do objeto 'a', enquanto semblante, levem o sujeito à experiência de desamparo (Hilflösigkeit), condição primordial ao surgimento do desejo. É o que pretendo mostrar ao desenhar sobre a topologia do Grafo do Desejo, um Oito Interior. (Vide figuras acima)
Esta volta a mais podemos dizê-la correlativa de um tempo para compreender na medida que, frente à frente com a demanda do Outro, e não mais submetido a um "querer" do analista, o analisante poderá dizer, como o fez outro dia uma cliente: "Saí daqui preocupada com a última sessão. Parece que eu estava sempre querendo falar coisas que lhe interessassem." Este é um sinal claro da presença de uma transferência e, mais ainda, de um certo saber que aponta para um mais-além da demanda, dizendo que uma análise poderá acontecer. 
No entanto, muitas vezes este percurso é paralisado, é interrompido, ou pode até ir um pouco além deste ponto, quando o saber que o sujeito adquiriu durante este tempo de compreender apresenta-se como "suficiente". Para manter-se não sabendo o analisante faz a opção pelo luto do analista para, assim, poder sustentar seus ideais e a crença num Outro. Esta é a esperança de poder evitar saber o que há para saber da "perda forçada" que a entrada na linguagem impõe ao sujeito.
Podemos denominar este momento de uma saída terapêutica aí, onde uma análise poderia ter começado.
Em sua "Nota aos Italianos" Lacan já dizia desta possibilidade ao afirmar que a humanidade não deseja saber e que "não há analista, senão quando um desejo lhe vem"..
Quando, portanto, este certo desejo lhe vem, este analista pode sustentar uma "subversão topológica" e um passo a mais pode ser dado, o que temos é um começo, ou uma "segunda entrada em análise". Este termo, introduzido por Gerard Miller é relembrado por J. A. Miller em seu artigo sobre "As saídas de Análise": "poderíamos nos perguntar se não há sempre, em certo sentido, uma segunda entrada em análise. O sujeito entra em análise antes de efetivamente saber o que é uma análise; por isso é necessário que o analista intervenha para confirmar sua opção".
A confirmação desta opção, acredito, não se faz pela via do saber, mas sim por um consentimento com a experiência do inconsciente. Quando me refiro a consentimento, tenho em mente o que Lacan nos diz em seu Seminário VII - A Ética da Psicanálise: quando, uma vez cumprido o ato do assassinato do pai da horda primitiva, "se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição da lei, quanto à qual a arte de Freud será vinculá-la ao assassinato do pai, de identificá-la à ambivalência que então funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno do amor após efetuado o ato."
Destaco o "retorno do amor" para dizer que aqui também, nesta passagem, o amor de transferência se enlaça neste ponto onde o sujeito vê, para além do narcisismo, o Outro como a própria presença da morte, espreitando. É o momento em que, já não mais podendo ter a garantia da sobrevivência deste Outro de suas virtudes, o sujeito encontra no amor o signo que vai sustentar o giro de quarto de volta  do discurso. Uma segunda entrada em análise poderá acontecer.
Neste ponto convém destacarmos uma diferença entre o que podemos chamar de efeitos da psicoterapia e o que se espera numa análise, a partir mesmo dos efeitos de uma interpretação: as psicoterapias buscam restaurar as significações, ou seja, restaurar a sutura da fantasia. A passagem referida acima, dizendo da "subversão topológica" visa justamente o efeito de separação entre o sujeito e o objeto da fantasia, produzindo um novo sujeito (ein neues subjekt) "no sentido de um efeito novo de separação, na fronteira entre o sujeito e o objeto".


Este percurso descrito até aqui aponta para a passagem de um saber sobre o inconsciente para consentir com a experiência do inconsciente
Este consentimento, obtido a partir da operação do ato analítico, quando o analista não aceita a negociação proposta pelo analisante, é o que permite que se continue o caminho na construção da fantasia fundamental. Construção esta que abre a possibilidade de escolhas, na medida em que o enigma subjetivo, que se mantem sob a máscara da demanda do Outro vai, passo a passo, se fechando. 
Afinal, "obter um sujeito idêntico a si próprio, que não desliza mais na diferença significante" e que possa ter um saldo de gozo possível ao fim de seu trajeto pulsional é o que se espera de análise.