Seminário na EBP-MG
Consentir com o inconsciente
O Sintoma
Dia 21 de Março de 2018
Quem não sabe o que busca não identifica o que acha! (Immanuel Kant)
A noção de sintoma analítico é muito importante, pois somente ela nos permite diferenciar a psicanálise de toda outra prática que se refere à psicopatologia.
Hoje se fala muito de sintomas, sintomas do corpo, sintomas psíquicos, anorexia, bulimia, toxicomania, depressão, entre outros, como se existissem categorias capazes de definir um conjunto de indivíduos pelo que sofrem. Esse é todo o esforço do DSM.
Frente a esta objetivação do sintoma que se inscreve em uma política de identificação, é fundamental sustentar a definição do sintoma analítico que diz respeito à singularidade de um sujeito em sua relação ao Outro.
A constituição do sintoma analítico supõe, portanto, ir além dos fenômenos e das aparências do sintoma onde se nutre a queixa, para o articular aos significantes decisivos, produzidos pelo sujeito no seu endereçamento ao analista. O sintoma analítico exige, portanto, que seja decifrado.
É nesta perspectiva que, hoje, vamos trabalhar o conceito de sintoma e todas as suas consequências para a prática de uma psicanálise digna deste nome.
O sintoma, visto pela psicanálise, pode ser definido de uma forma bem simples: é uma solução para se evitar o encontro com a castração ou se preferirem, com a falta.
A castração, o “ser do sintoma”, pode ser entendida como um “menos-de-gozo" que advém da extração que o significante opera no campo do Outro. Isto esclarece a idéia de que, para o ser humano, o gozo — termo que deve ser situado em oposição a um outro: o prazer — está desde sempre marcado por uma perda, o que implica que a insatisfação é a marca que caracteriza todo psiquismo. Essa é a operação que traz como consequência, como efeito, o sujeito do inconsciente, e instala, no mesmo movimento, o que se denomina um mal-estar, um certo incômodo representado pela presença de um objeto que foi extraído do campo do Outro e que permanece como um resto não absorvido pelo simbólico, ou seja, um resto que permanece como o mais íntimo e, também, absolutamente estranho para cada sujeito. Essa presença, marcando um impossível, vai gerar um movimento de busca incessante. Esse movimento tem a intenção explícita de restituir o status quo anterior na busca do gozo perdido, esclarecendo que é a partir do que se chama “menos-de-gozo" que vai se instalar o que Lacan denominou Automaton — a repetição da impossibilidade na cadeia significante. Essa repetição, ou seja isso que “não cessa de se escrever” é uma necessidade que vem dizer da impossibilidade (o que “não cessa de não se escrever”) que o próprio recalque originário (Urverdrängung) produz. (Lacan, em Le Sinthome, S. 23, nos diz que não há nenhuma redução radical do quarto termo, mesmo na análise, pois Freud pode enunciar, não sabemos por qual via, que há uma Urverdrangung, um recalque que não é jamais anulado. É da natureza mesma do simbólico de comportar este buraco. É esse buraco que eu viso, e onde eu reconheço a própria Urverdrangung.) Contudo, todo esse movimento só se sustenta por existirem pontos de encontros — tiqué — que, pelo fato mesmo de serem sempre faltosos, acenam com a possibilidade de uma certa realização.
Assim, entre o que “não cessa de não se escrever” (o impossível) e o que “não cessa de se escrever” (necessário), depara-se com um sujeito que, como diz Freud, tem que se haver com um dispêndio de energia adicional para lutar contra o desprazer (Unlust) ou sofrimento (Leiden) que essa situação cria. Sendo isso o que todo ser falante tem como fundamento de sua estrutura, existe, ainda conforme Freud, uma precondição na formação de sintomas para cada sujeito.
O sintoma, tal como definido por Freud, é “o resultado de um conflito, que surge em virtude de um novo método de satisfazer a libido (Libidobefriedigung). As duas forças que entraram em luta — que poderiam ser representadas pelos dois movimentos: “não cessa de não se escrever” e “não cessa de se escrever” — encontram-se novamente no sintoma e se reconciliam, por assim dizer, através do acordo representado pelo sintoma formado. Em outras palavras pode-se dizer que esse “acordo” seria uma negociação feita de tal forma que o sujeito diria assim: “pago um preço para não saber que existe algo que 'não cessa de não escrever', e esse preço é uma satisfação substitutiva que, ao mesmo tempo em que provoca um certo desprazer (Unlust), é onde posso obter minha satisfação".
Então, aqui tem alguns dados que são muitos importantes para o desenvolvimento deste seminário: o sintoma é uma tentativa de criar uma harmonia, ali, onde um menos se instalou, provocando uma desarmonia. Ou, levando em conta os desenvolvimentos construídos no último ensino de Lacan, podemos dizer que o sinthoma é um arranjo que cada sujeito cria para sustentar funcionando o enlaçamento de RSI. Este arranjo se define pela presença de um quarto nó, o sinthoma. J.A Miller no texto Seminário sobre os caminhos da formação dos sintomas. (JAMiller in Opção Lacaniana, 60. setembro 2011) nos diz: “Parece-me que, para Lacan, trata-se, em certo momento de seu ensino, de aprender a pensar o sintoma sem o conflito, de subtrair a perspectiva do conflito, apesar do sofrimento, e privilegiar o real da satisfação. A clínica dos nós é uma clínica sem conflitos.
O único conflito é que não conseguimos fazer os nós que queremos - o que gera sofrimento, indicado às vezes por Lacan. Mas a novidade invisível desta clínica, que agora procuro evidencia-la, é que se trata de uma clínica sem conflito. É uma clínica do engodamento e não da oposição, dos arranjos que permitem uma satisfação e conduzem ao gozo. Há dificuldades, mas não há conflito. A estrutura mesma dos nós não permite a dimensão do conflito.
(…) Nesta clínica não se trata, como em Freud, de resolver o conflito, mas de obter um novo arranjo, um funcionamento menos custoso para o sujeito.
É nesse ponto que se pode ver uma discordância fundamental entre os conceitos de sintoma para a medicina e para a psicanálise. Se, por um lado, a posição médica se refere à noção de harmonia como um objetivo a alcançar quando se está diante de um sintoma — este, portanto, aparecendo como o que perturba e destrói a harmonia —, o sentido do sintoma vai mudar caso a referência não for mais a harmonia que ele vem perturbar, mas, sim, o fato de que ele é harmônico a uma falta, a um menos, ou seja, à castração. J.- A. Miller, em um texto sobre o envelope formal do sintoma, diz que a palavra sintoma contém o radical “sin”, que quer dizer síntese, reunião, conjunto, o que vem junto, o que coincide. Dessa forma, o sintoma é o que faz coincidir duas coisas: a castração e a satisfação.
A castração é “o ser do sintoma”, seu núcleo. Esse núcleo vai se apresentar embrulhado, envolvido pelo “envelope formal do sintoma” — seu invólucro significante. Esse termo, utilizado por Lacan no texto De nossos antecedentes, surge de um certo retorno à psiquiatria clássica de Clérambault e da “necessidade que levou Lacan à psicanálise” por ocasião do seu famoso caso Aimée: “Pois a fidelidade ao envelope formal do sintoma, que é o verdadeiro traço clínico do qual tomamos o gosto, leva-nos a esse limite onde ele retorna em efeitos de criação”. Esta afirmação de Lacan, feita em 1966, aparece como um prenúncio do que, mais tarde, será definido como “saber aí fazer com seu sinthoma”. “É na medida que o o sintoma faz um falso-furo com o simbólico que existe uma prática qualquer, quer dizer, algo que aparece do dizer, o que, no caso, chamarei de a art-dizer para deslizar rumo ao ardor.”(S.23)
E Lacan continua mais adiante neste seminário: “Eu não penso que a psicanálise seja um sinthoma. Eu penso que ela é uma prática cuja eficácia, apesar de tudo tangível, implica, para mim, que faça isso que chamam meu nó, a saber, esse nó triplo (que posso desenhar)no quadro.” (E neste nó) “O Real, sendo desprovido de sentido, eu estou seguro que o sentido desse real não poderia ser esclarecido senão por tomá-lo por nada menos que um sinthoma.”
E, para concluir essa passagem ele afirma: “Não é a psicanálise que é um sinthoma, é o psicanálista.”
Retomando a frase de Lacan descrita acima, sobre o envelope formal, vemos Miller chamar a atenção para os dois eixos do sintoma: (1) existe, por um lado, um núcleo que se pode denominar castração, sofrimento, “mais-de- gozo” em consequência do “menos-de-gozo” da operação significante. (2) Existe, por outro lado, no sintoma, uma mensagem endereçada ao Outro e que espera uma decifração.
Em outras palavras, é possível um trajeto na formação do sintoma que, a partir de um "menos" que se instala como consequência da extração do objeto "a" pela operação significante, fazer surgir uma intenção de significação que produz uma resposta que, exatamente por ser da ordem do impossível, relança a busca de significação. Essa busca de significação é a transformação da queixa que emerge do fundo do desprazer em mensagem, fazendo existir o sujeito de uma maneira nova no campo do Outro e sob forma constituída. No entanto, quando se formata uma queixa ou, como nos diz M. Silvestre, quando fazemos coincidir uma queixa e um sofrimento, vamos perceber que ela se desnatura, pois há o que se pode dizer e o que não se pode dizer pela própria impossibilidade do significante em dizer tudo.
Essa dificuldade é o que faz com que a lógica própria do Outro, ao estabelecer essa relação entre queixa e sofrimento, vá congelar e fixar a queixa numa certa cena. Ou seja, do que se trata aqui é de um certo percurso pulsional que se estabelece na relação do sujeito com um dos objetos que havia anteriormente abandonado, porque a libido é induzida a tomar o caminho da regressão pela fixação que deixou atrás de si, nesses pontos do seu desenvolvimento. Pontos em que queixa e sofrimento, gozo e mensagem, castração e envelope formal se fizeram coincidir.
Quando alguém vai até um analista, o que se espera é que ele faça um relato de sua infelicidade. Nesse relato, pode-se, então, perceber que há uma harmonia, há um arranjo que faz existir uma satisfação ali mesmo onde o sujeito se queixa de dor. Esse é o paradoxo que Lacan define em Televisão, quando nos diz que “o sujeito é feliz”. E continua: “É mesmo sua definição, pois que ele não pode nada dever senão ao momento oportuno (heur), à sorte (fortune) - em francês felizidade é bonheur - dito de outra forma, e todo momento oportuno é bom para isso que o mantém, ou seja, o porque ele se repete”.
Por tudo isso se pode afirmar que o sintoma analítico, quando formatado no campo do Outro, constituído como o que se instaura da cadeia significante, tem estrutura de ficção. Isso demonstra-o muito bem o sintoma histérico, à medida que, na histeria, vê-se o sintoma como ser de verdade do sujeito. Quer dizer, no sintoma histérico o objeto ‘a’ como real virá no lugar da verdade, como muito bem o mostra a estrutura do Discurso da Histeria.
Pode-se acrescentar, ainda, que, ao se instalar como “ser de verdade”, o sintoma promove a construção de uma suposição de saber no campo do Outro. Partindo da premissa estrutural de que não há relação entre o sujeito e o Outro, o sujeito está, desde sempre, afastado de sua verdade. O laço possível entre o sujeito e o Outro faz-se pelo sintoma. E se faz com a criação de um “ser de saber” ali, onde a verdade lhe está vetada.
Sintoma: um novo caminho
Estrutura de ficção, queixa, sofrimento... não importa como a ele se refira, a verdade é que o sintoma é o que vai dizer de algo que não vai bem e o “clamor da humanidade” é pelo apaziguamento do mal-estar que isso provoca.
No entanto, é preciso repetir aqui uma afirmação que merece toda atenção: o sintoma é o mais particular que cada um tem e, por outra parte, o mais real. O sintoma é, precisamente, o que faz com que cada um, em alguma coisa, não consiga fazer absolutamente o que lhe está prescrito pelo discurso de seu tempo. Esta afirmação alerta para uma questão de ordem prática e, por que não?, ética. É fundamental ao se escutar o relato da infelicidade de alguém, que se tenha em conta o fato de que essa infelicidade é o que há de mais particular, é o que sustenta esse sujeito como constituído e, mesmo que tenha sido por não estar mais funcionando, como antes, que ele procura uma análise, ainda assim é seu traço mais particular: “Eu sou assim!”, dizem de várias maneiras os candidatos à análise. Talvez, por isso, é que, ao se diferenciar o lugar do analista do lugar do terapeuta, diremos de um compromisso que não é com o movimento humanitário que, com seu clamor, espera poder universalizar o que há de mais particular. O compromisso que se estabelece é com a particularidade de cada um. Pôr-se a serviço dessa verdade supõe um desejo que já foi qualificado de inumano. Talvez, por isso, é que Lacan, em sua Nota Italiana, diz que o analista é o rebotalho da humanidade, à medida que quer saber daquilo que todos querem esquecer. Ou seja, Lacan vai afirmar que o mal-estar na civilização consiste em gozar da renúncia ao gozo. Sim, porque, ao estabelecer uma solução de compromisso entre as duas forças opostas que estão em conflito, o sujeito renuncia a uma possibilidade de um gozo possível. Gozo este que só será possível à medida que o Outro é, por sua vez, esvaziado de gozo, ou seja, à medida que o sujeito deixa de acreditar que o Outro quer dele sua castração, que o Outro vai retirar o que ele tem de mais precioso: seu pequeno nada. Uma analisante explicita muito bem essa questão ao pronunciar esta frase: “Percebi que sempre tive medo de perder o que nunca tive.”
Na verdade, o que estamos falando pode muito bem ser melhor esclarecido quando colocamos a questão da sexualidade em pauta. Ora, o que está no cerne do que se entende por sexo, mais precisamente por relação sexual — e aqui se refere, obviamente, ao que diz a psicanálise — é a sua impossibilidade, o menos, o resto irredutível de gozo que se assinalou há pouco. Assim, a única possibilidade de estabelecer uma relação com o Outro sexo é pelo viés do sintoma, este sustentado pela fantasia fundamental: [($<> a) - A]. É por isso que as tentativas de se curar o “sexo”, seja pela medicina, seja pelas terapias “sexológicas”, acabam, na maioria das vezes, em fracasso, pois apenas reforçam a impossibilidade que já existe ali.
Mas, seria possível curar o sexo através da psicanálise? Talvez o que se possa dizer é que, diante da impossibilidade da relação sexual, ela deixe claro que homem e mulher estão do mesmo lado, qual seja, ambos têm apenas uma única maneira de representar o sexo: o simulacro fálico. Em outras palavras, pode-se dizer que ambos os gêneros têm em comum uma só espécie de gozo: o gozo fálico. O que vai diferencia-los é o acesso ao Outro. É essa diferença que os reparte em duas espécies, fazendo obstáculo a que a dimensão cultural de gênero venha recobrir a sexuação.
Diante do que lhes expus hoje fica aberta a questão que está proposta para esta série de seminários: Como é que, diante do sintoma, pode um sujeito formular uma demanda de análise e como pode um analista promover a escuta desta demanda e dirigir um tratamento a partir daí?
Até o próximo encontro dia 25 de abril de 2018 quando vamos conversar sobre “demanda de análise”!