Seminário na EBP-MG
Demanda de análise
25 de Abril de 2018
“Na ética que inaugura o ato analítico a lógica governa”
(Jacques Lacan, citado por JA-Miller em "Lógica da la cura Y posición feminina (El homologo de Málaga)
O saber no real coloca à prova o direcionamento ético dos psicanalistas, pois é
inquestionável que há “um real em jogo na formação do psicanalista”. É o saber
portanto que, acedendo ao real o determina ou, em outras palavras, aponta para o
impossível do real da estrutura do Inconsciente: S (A/). Essa estrutura, como real, deverá
ser subjetivada na experiência de uma análise e exigirá um franqueamento que se dará
em salto – da realidade fantasmática ao saber no real – marcando a verdade como um
lugar onde se escreve esse saber.
Ao se tratar da clínica psicanalítica é fundamental que se fale da entrada em análise pois somente uma “boa entrada” pode promover uma “boa saída" e, uma “má entrada”, muitas vezes, provoca uma interrupção precoce do tratamento. É evidente que praticamos a Psicanálise desde o momento em que recebemos um candidato a analisante pela primeira vez em nosso consultório pois, o que se espera de um analista é que ele possa assumir esta condição desde este início.
No nosso primeiro encontro falamos do sintoma. Definimos o sintoma como “uma solução para evitar a castração”. Ressalto que nossa referência é o sujeito da linguagem, o sujeito do inconsciente, e não a pessoa ou indivíduo. Esse sujeito nasce como efeito de um menos (-). Lacan define esse (-) como “menos de gozo”. Para evitar qualquer mal entendido a vertente do gozo de que vamos tratar se refere àquele estado em que o sujeito está ali, sem existir como sujeito, mas sim como coisa.
Nestas circunstâncias, a percepção de um significante, de uma palavra que veio do Outro cava, neste espaço vazio, uma extração. Retira-se um elemento e, desse lugar onde o elemento foi retirado, pode surgir ali um sujeito. Isso é o que Lacan define, de uma forma concisa e às vezes enigmática: o sujeito é a resposta do real. Isso porque no lugar onde deveria haver um significante que o designaria totalmente tem-se um vazio. Diante desse vazio que Lacan chama de Real tem-se uma resposta que é o sujeito.
Essa operação de extração de gozo do campo do Outro é uma operação que instala o que se pode denominar de mal-estar ou incômodo. Esse incômodo foi definido por Freud no “Projeto de uma Psicologia Científica” como encontro com o das Ding que produz, como consequência, uma busca incessante ali, onde algo se perdeu numa tentativa de reduzir a zero o que incomoda, dando início a uma repetição infinita.
Essa repetição, como já vimos no nosso último encontro, Lacan chamou de automaton no Seminário 11: uma repetição que não é a repetição de um mesmo significante, mas sim, a repetição da impossibilidade. A cadeia significante constitui-se em automaton porque nela se repete a impossibilidade. O que não cessa de se não escrever.
Lacan denominou isto que não cessa de não se escrever de objeto “a”, ou seja, algo que escapa à tentativa do significante de apreender em suas malhas e que dele temos apenas as bordas.
Assim, pode-se dizer que a repetição acontece porque algo não cessa de não se escrever, e porque algo não cessa de não se escrever promove-se um movimento que não cessa de se escrever: a palavra. Ou seja, uma necessidade. Essa necessidade nada mais é que o sintoma que nasce exatamente a partir do recalque originário, aquele que Freud definiu como o primeiro impossível da existência de um sujeito.
Esse movimento só se sustenta porque nesse “não cessa de não se escrever” fica uma promessa, a promessa de que um dia, quem sabe, isso que “não cessa de não se escrever” vai se escrever. Lacan nos diz que quando se está na cadeia de significantes, sob o regime do automaton, pode-se eventualmente se deparar com uma tyke, um encontro. É um encontro sempre faltoso que exige, como diz Freud, um dispêndio de energia adicional para lutar contra o desprazer original que a falta constitutiva do sujeito promoveu. Esse desprazer ou sofrimento é o que pode promover a criação do novo.
Portanto, vamos ao que é importante: o sintoma é algo da ordem da necessidade que está regida pelo automaton e que pode, na sua repetição, promover uma tykhe, ou seja, um encontro; encontro este que pode propiciar uma retificação qualquer neste sintoma. É por isso que Lacan, num texto muito interessante que está nos Escritos – “De Nossos Antecedentes” – nos diz que o envelope formal do sintoma - que eu entendo como a cadeia de significantes - pode nos levar a um ponto de encontro onde o sintoma reverte-se em efeito de criação. Em outras palavras, uma análise acontece porque o sintoma propicia, na sua repetição, pontos onde uma intervenção pode acontecer e trazer um novo sujeito como efeito de criação.
Cabe agora uma pergunta: por que o sujeito procura um analista? A maioria das pessoas não procura a análise porque o sintoma delas funciona. Só se procura uma análise quando o sintoma deixa de funcionar. Esse é o momento em que acontece uma conjunção entre queixa e sofrimento.
Nós conhecemos um grande número de pessoas que passa a vida se queixando e não aceita nenhuma indicação de análise. Por que isso? Porque o "sujeito é feliz", nos diz Lacan em "Televisão". “Eis justamente sua definição dado que ele só pode tudo dever à sorte (heur), à fortuna, dizendo de outro modo, e que toda sorte (heur) lhe é boa para o que o mantém, ou seja, para que ele se repita.” Traduzindo, ele se satisfaz porque está sob a regência de uma pulsão e não de instintos, portanto, ele se satisfaz com qualquer coisa. Em outras palavras, o sujeito se satisfaz, simplesmente, com o fato da pulsão fazer o seu trajeto, para logo se lançar novamente.
A diferença entre a pulsão e o instinto é que o instinto não se satisfaz se não tiver o seu objeto. Quando se está com fome não nos interessa o que comer, um pedaço de pão serve. Agora, quando se está sob a regência da pulsão, quando a fome não está se sobrepondo à pulsão oral enquanto elemento da necessidade, do instinto, pode-se, perfeitamente, ter prazer em assentar à mesa de um restaurante e escolher o cardápio. Esse é o exemplo que Lacan nos dá no Seminário 11 para dizer que à pulsão só interessa o percurso. Imaginem o cardápio como o campo do Outro. O sujeito passa por ele e escolhe seus significantes e fica satisfeito só com o fato de escolher.
A pulsão diferencia-se do instinto porque à pulsão não interessa o objeto. Freud descobriu isso a partir das pulsões sexuais e sabemos muito bem que a diferenciação da via da pulsão e do instinto é clara. Basta observarmos as escolhas sexuais. O fetichismo, por exemplo.
O sujeito busca uma análise, portanto, quando seu sintoma falha. O que esse sujeito busca é recolocar o sintoma no lugar onde estava antes, fazendo-o funcionar. Assim uma demanda de análise acontece no momento em que uma queixa se associa a um sofrimento. Na verdade, o que acontece é um pedido a uma outra pessoa, a um Outro que ele escolhe da seguinte forma: “estou aqui porque eu percebi que você sabe, porque eu acho que você sabe e, como eu não quero saber, suponho que você saiba como restituir meu sintoma ao ponto em que ele me dava satisfação sem este excesso de sofrimento”. Em outras palavras, é assim que chegam os candidatos à análise: quando o seu sintoma falha e ele procura alguém, qualquer um, a quem ele empresta um saber sustentado por um traço que ele acredita vai restituir-lhe um sintoma que funcione.
É assim que se instala o que chamamos de transferência. Em outras palavras, a criação de um sujeito suposto saber restituir ao seu estado anterior um sintoma que deixou de funcionar.
Temos então a seguinte situação: o sujeito chega e dirige seu pedido, sua queixa, sua demanda, a um Outro qualquer ou, em outras palavras, ele chega com o significante de sua queixa e se dirige a um significante qualquer. Lacan diz que é um significante qualquer mas não é qualquer um. É um significante qualquer porque pode-se escolher entre muitos, mas no momento em que se escolhe, esse "qualquer um" deixa de ser qualquer para ser aquele: o significante da transferência. É esse significante que vai nos dizer do sintoma, pois ele indica a borda onde um menos se instalou. Sintoma, este que se sustenta na fantasia fundamental e que nada mais é, portanto, que uma interpretação feita sobre o desejo do Outro. Por isso o sintoma implica numa certa alienação ao Outro.
S ………………………………… Sq
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S ( S1, S2, S3 .................Sn )
O matema da transferência, desenhado por Lacan no texto da "Proposição de 9 de Outubro", pode ser lida da seguinte forma: Um sujeito chega ao analista trazendo consigo um significante (S), sua queixa e transfere a um significante qualquer (Sq) uma suposição de saber sobre o sujeito em questão, constituindo esse outro como “sujeito suposto saber” decifrar todo o conteúdo do inconsciente.
Diante deste movimento, o analista tem duas possibilidades, pelo menos. Primeiro, ele pode acreditar que sabe e, segundo, ele pode ter certeza de que não sabe. Na primeira possibilidade vamos ter a Psicoterapia e, na segunda, uma possibilidade de análise.
Em 1957/58 Lacan estava seriamente empenhado em esvaziar a parafernália imaginária que os supostos freudianos fizeram com a Psicanálise. Nos anos 30, nos anos pós-guerra e principalmente nos anos 50, a Psicanálise inflou-se de imaginário de uma forma insuportável. Lacan, então, se dedicou a esvaziar esse imaginário ou, em outras palavras, reduzir o processo analítico a certas fórmulas que ele chamou de matemas que pudessem trazer, como consequência, uma operação lógica e não uma operação imaginária, plena de sentido. O uso das pequenas letras pode, também, ser visto como uma tentativa de Lacan de trazer a pureza da letra destituída de seu significado e sua possibilidade de produzir poesia que, por não ter uma significação vinculada a ela, oferece a chance de criação a quem pode ler. Uma dessas possibilidades foi criada com o Grafo do desejo. “… o Grafo - que serviu de referência a Lacan durante anos para a direção do tratamento - apresenta um percurso que segue uma estrutura lógica e oferece a sequência de uma conclusão possível. No essencial inclui duas: o bem uma conclusão em curto-circuito que termina em uma identificação, ou um fim desenvolvido da análise que termina nesse ponto superior que Lacan chamou S(A/).” (J-A Miller, Conferência de fechamento das X Jornadas do Campo Freudiano na Espanha. Málaga, 28 de fevereiro de 1993).
Vamos a ele: No Grafo do desejo o s(A) significa, em linguagem lacaniana, “significação do Outro”. O sujeito procura a análise porque ele interpretou a significação que o Outro deu a ele... estou falando em interpretação porque isso diferencia do que o sujeito viveu na realidade. Vive-se muito mais essa realidade que é nossa interpretação do que aquilo que podemos chamar de realidade exterior. Na verdade nossa realidade, definida como "pouco de realidade" por Lacan, acaba por se constituir a partir mesmo do que foi a interpretação feita pelo sujeito: sua fantasia fundamental. Assim sendo, o que Lacan chama de significação do Outro é o que se constitui como um sintoma.
Quando a significação do Outro falha o sujeito vai perguntar ao Outro “o que foi mesmo que você falou comigo?” “Repete o que você quer!” Lacan, em seu Seminário XI, nos diz que a única coisa que justifica a nossa intervenção como analista é este mal-mais que acontece quando o sintoma claudica e, se há uma retificação a ser feita na relação do sujeito com a satisfação, esta deverá ser a nível da pulsão.
Neste momento um suposto analista pode dizer, se ele acreditar que sabe: “faça assim, seja assim, faça como eu”. Vai mostrar, uma série de modelos sustentados em um ideal do que deveria ser, para fornecer um ideal de identificação, como tal, imaginária. Ou seja, inundar de sentido o vazio que se faz presente na fala do sujeito. Seguindo o matema do Grafo do desejo, pode-se dizer que a esse sujeito lhe é oferecido uma i(a), um modelo “x” qualquer a partir do qual ele pode constituir no “m” (moi = eu) a partir da esperança de ser igual àquele modelo.
Esta pode bem ser uma primeira consequência da queixa transformar-se em sintoma e permanecer sintoma, e não passar a sintoma analítico.
Existe uma outra vertente. O sujeito encontra um analista que o acolhe em seu sofrimento. A partir daí as demandas poderão ser dirigidas àquele analista. Então, é colocada a questão da existência do sujeito a partir do esvaziamento dos significantes da demanda do Outro. Em outras palavras, é quando o envelope formal do sintoma não mais faz frente ao desamparo (Hiflosigkeit), que o sujeito vai encontrar a dor de existir.
Para que esta experiência possa ser levada a cabo é fundamental um silêncio. Um silêncio que é muito mais que um simples calar-se. É o silêncio da falta de palavra que coloca o sujeito num lugar de onde ele não tem outra saída senão construir algo.
O sujeito busca, então, um significante que poderia representá-lo – o matema da transferência , exposto acima, nos diz isto:
Ele se depara com uma falta e vai, então, se agarrar a um objeto apontado pelo significante que ele escolheu. Ele vai tentar se articular com esse objeto de alguma maneira. E ele o faz a partir dos restos perceptivos que o constituíram num primeiro momento. São as percepções de sua primeira experiência de satisfação e que nunca sofreram tradução de traços de percepção para traços de memória. Alguns destes traços ficam como restos e são estes restos que colocam para o sujeito a pergunta: Que queres? É a partir destes restos, que surgem no trajeto de uma análise, que o sujeito vai construir sua fantasia fundamental.
Lacan, em seu Seminário XI, nos diz: “Não nos interessa explicar porque sua filha é muda, do que se trata é fazê-la falar !” Ora, a fantasia é muda. Ela é construída a partir de dois elementos estranhos entre si: Simbólico e Real, e se manifesta no Imaginário pois ela nada mais é que a colocação em cena dos significantes primordiais do sujeito.
É, pois, fundamental, que se faça falar o sintoma para construir a fantasia.
Para isto é preciso que o analista se cale como fez Freud diante de suas histéricas. Pois ao “calar-se” coloca aí uma pergunta a mais e cria a possibilidade para que, ao fim do tratamento, a experiência da fantasia fundamental se torne a pulsão.
Escutar as demandas, portanto, não implica ter que respondê-las. Aliás, longe disto. As demandas não são feitas para serem respondidas. Sabe-se que toda demanda, na verdade, é demanda de amor. E o amor? É dar o que não se tem, define muito bem o Dr. Lacan!
Exatamente por saber da não reciprocidade amorosa - e isto o analista tem que saber - , ele deve fazer silêncio para que as demandas que lhe são dirigidas possam retornar levando a própria mensagem de volta a quem demanda. Importante assinalar que esse silêncio não é qualquer um. Ele está muito bem matemizado por S(A/). Em outras palavras, ali onde se espera uma resposta do Outro é preciso que o falaser se responsabilize.
Essas duas situações aqui definidas como próprias à uma Psicoterapia e à uma Psicanálise, podem ser ditas de outra forma. Na Psicoterapia temos dois sujeitos em questão, o sujeito que sofre e o sujeito que sabe e diz as soluções. Numa Psicanálise temos apenas um sujeito em questão: o analisante. O sujeito do analista fica fora e aí se mantém graças ao exercício do desejo do Analista.
O discurso do mestre é o discurso do inconsciente. É o discurso que está o tempo todo produzindo sentido. É o discurso do sintoma. É o discurso que mantém sob a barra o sujeito e seu objeto, é o discurso com o qual normalmente o sujeito chega aos nossos consultórios.
No discurso do mestre, debaixo da barra, está o desejo inconsciente do sujeito: sujeito desejo de objeto.
O discurso do analista vai acontecer quando conseguirmos inverter isso, ou seja, passar para cima da barra os elementos que estão escondidos abaixo da barra no discurso do mestre.
Quando Lacan disse que o discurso do analista é o avesso do discurso do mestre, ele tinha em mente a estrutura moebiana. A banda de Moebius é aquela fita na qual se faz uma meia torção e se cola as pontas de tal maneira que podemos percorrer toda a fita sem tirar os dedos de cima dela. Ela é muito interessante porque diz do movimento do discurso do analista. A banda de Moebius tem somente um lado e uma borda, portanto diz muito bem que numa análise só tem um sujeito em questão, o analisante.
Ela demonstra bem como sair do discurso do mestre para o discurso do analista percorrendo um só lado pois, topologicamente, a banda tem um só lado. Ao fazer isso expõe-se a cena que sustenta o sujeito na vida: a cena da fantasia fundamental.
O discurso do analista é pontual porque ele é insuportável. Ninguém consegue estar frente a frente com sua verdade muito tempo e o objeto a é a verdade do falasser do sintoma: é o ser de verdade do sintoma. Lacan define o sintoma como contendo duas partes. Uma é o ser de verdade que remete ao real da castração, e a outra é o seu invólucro formal: a cadeia de significantes, as palavras, enfim. Então, cada vez que se pronuncia uma palavra, diz-se da fantasia fundamental. É isso que se chama estilo. A forma que cada um dá ao pouco de realidade que o circunda.
Sabendo que a estrutura do matema dos discursos traz na sua forma a Banda de Moebius verificamos que ao possibilitar o seu giro vemos passar para cima da barra, no discurso do Analista (a - $), o que está sob a barra no discurso do Mestre ($ - a).
Importante concluirmos dizendo que este giro só acontece se sustentado pelo amor. Pelo amor de transferência. Este amor que se instaura a partir de uma suposição de saber atribuída a quem se oferece como causa. No entanto cumpre ressaltar que esta causa só se sustenta se o analista sabe que ele não tem o “saber” a ele atribuído. Para isto é preciso fazer operar o desejo do analista. Este desejo construído em análise que propicia ao sujeito do analista ficar fora da cena. Esta é a ética que rege o encontro com um analista e que lhe fornece condições para que um ato analítico possa acontecer.
E para concluir e abrir um espaço para nosso próximo encontro posso, sem receio de estar exagerando, afirmar que uma análise só acontece a partir de um ato que coloque o sujeito em questão.
Até dia 23 de Maio de 2018, quando vamos conversar sobre “O ato analítico