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quinta-feira, 24 de maio de 2018

Seminário na EBP-MG - Ato Analítico: Uma Formalização


“… a psicanálise não poderia se instaurar sem um ato, sem um ato daquele que aí autoriza a possibilidade, sem um ato do psicanalista, e que no interior deste ato do psicanalista, a tarefa psicanalisante se inscreve …”
(J. Lacan, Sem. O Ato Psicanalítico. Lição de 21/02/68)

“Tornar visível o que não é, fazendo sofrer o olho” (Paul Klee) 
Numa determina passagem de seu livro “O terceiro Ouvido” Theodor Reik (1) nos diz que, assim como um observador que assiste a um trem adentrar um túnel e sair do outro lado, sem nada saber do que se passou lá dentro, o psicanalista faz uma interpretação e reconhece os resultados sem saber bem o que aconteceu.
Esta passagem, que mantenho guardada na memória há alguns muitos anos, é despertada de seu sono em função do tema deste seminário pois, se há algo que um analista pode, e deve, é tentar formalizar os passos da direção de um tratamento de tal modo que eles possam deixar o obscuro inefável para se tornarem fatos transmissíveis.

Nesta linha afirmo que formalizar o momento de uma análise onde o ato analítico acontece, instalando no lugar da verdade um saber que “possa operar enquanto verdade”, é nosso objetivo. Podemos dizer que um sujeito procura análise no momento em que se torna insuportável para ele sua divisão entre saber e verdade. Isto se dá no ponto onde o deslizamento metonímico da cadeia significante se interrompe: “As coisas até aqui caminharam, nos diz alguém, mas não sei porque pararam de andar e até pioraram”. Lacan no seu seminário XI nos diz que “os pacientes, não se satisfazem, como se diz, do que eles são. E portanto, nós sabemos que tudo isso que eles são, tudo isso que eles vivem, seus sintomas mesmo, surgem da satisfação, (...) eles satisfazem a qualquer coisa (...) e estando neste estado de tão pouco “contentamento, eles se contentam”. Só que “por este tipo de satisfação eles se dão muito mal. Até certo ponto é este mal-a-mais que é a única justificativa de uma intervenção" para que no nível da pulsão este estado de satisfação possa ser retificado. 
Assim, sendo, é a partir deste “mal-a-mais” que, surgindo neste ponto em que o saber constituído do sintoma deixa de obturar a verdade da qual o sujeito não quer nada saber, que vamos ver nascer uma demanda de análise e com ela a transferência. 
Uma pequena palavrinha sobre essa verdade da qual o sujeito não quer nada saber: Segundo J. A . Miller no seu seminário de 09.05.90, os escritos de Lacan dividem seu ensino em duas partes e terminam por uma exaltação da verdade, com o texto “A Ciência e a Verdade” (...) Na primeira fase deste ensino a verdade é colocada em oposição ao saber pelo seu caráter nascente na palavra. Ela corresponde à verdade horrível da castração. Já na 2a fase, a verdade não é mais formulada no singular e torna-se uma variável. Em 1973, na “Nota italiana”, o horror da verdade é deslocado para o saber: Lacan vai opor ao horror de saber, o desejo de saber do psicanalista.
A transferência, portanto, está no início do tratamento e se instala aí na tentativa mesmo de, atribuindo a um Outro o saber que falta, alcançar uma resposta que seja o saber último sobre esta sua verdade. É o Sujeito Suposto Saber que surge, fazendo valer um significante qualquer como aquele onde um sujeito poderia ser representado.
Este atribuir a um Outro o que lhe falta é a base da relação amorosa por excelência. Ama-se no Outro o “agalma”, objeto precioso, essência de um ser-em-falta que se ilude no amor ao saber.
Em se tratando da transferência, no entanto, vemos uma dissimetria colocada a priori já que nesta relação há pelo menos um que quer a mudança, há pelo menos que calcula e, ao recusar o lugar de amante que lhe é oferecido responde, por seu não-saber, com um Che Voui ?, um desejo de saber.
Isto nos aponta uma mudança na maneira de ver as coisas pois, se no início da psicanálise muitos pensavam que o inconsciente era um não sabido que iria se tornando cada vez mais sabido, a introdução do objeto pequeno “a” por Lacan, nos diz de uma exteriorização do não-sabido que escapa à cadeia significante e se coloca radicalmente excluído dela.
Fazer operar este objeto “a” enquanto semblante no discurso do analista é tarefa a ser sustentada por alguém: um analista. “A psicanálise é o que se espera de um analista” nos diz Lacan no seu seminário XVII, e continua “e o que se espera de um analista é que faça funcionar seu saber em termos de verdade. É bem por isso que ele se confina num meio-dizer”. 
Em outras palavras podemos dizer que é preciso que exista um analista e este analista só existe na medida em que se colocando como ponto fora da linha, faz operar o vazio onde uma verdade poderá ser transmitida e não um saber ser ensinado. 
Esta operação de transmissão só se faz em ato, ato analítico que, preparado pelo amor de transferência – é o amor que possibilita, enquanto signo, o giro do discurso da histérica para o discurso do analista – se conclui pelo vazio do sujeito. O ato acontece ali onde um sujeito deverá advir. Esta operação que tem como pivô o Sujeito Suposto Saber e por objetivo a destituição deste sujeito suposto, só se sustenta pelo desejo do analista.
Esta é uma operação lógica. O ato enquanto puro não-sentido institui um dizer e cria um fato, onde o axioma da existência – que Lacan traduziu por “Há do UM” (Y a d’l’ UN) – aponta todo o tempo para a impossibilidade do desejo e o infinito da demanda fazendo valer a castração como saída do Édipo.
Lacan, desde o início de sua atividade de transmissão da psicanálise, coloca a topologia, a lógica, e a matemática – enquanto campos da ciência que não comportam nenhuma afirmação de sentido – para auxilia-lo em suas elaborações teóricas.
Escolhi a topologia para tentar levar adiante minha elaboração. Na topologia, escolhi este objeto estranho e de tão difícil apreensão que é a esfera provida de um Cross-Cap, “asfera” como a denomina Lacan. Produto da imersão de uma superfície de duas dimensões no espaço de três dimensões, o Cross-Cap é um objeto também abstrato engendrado teoricamente e sem impurezas. 

                                                                 








No entanto, se admitirmos uma linha de sutura onde existe abstratamente duas componentes conexas que não se cruzam, podemos obter uma imagem concreta do Cross-Cap. 
O Cross-Cap com o qual Lacan trabalhou, e que nos interessa aqui, é aquele que podemos visualizar mas ao qual atribuímos as propriedades daquele que não podemos ver. Dentre as muitas propriedades que este objeto apresenta escolhi algumas que mais convém ao meu propósito. Resumi-la-ei assim: no processo de imersão o ponto do infinito vem instalar-se exatamente ali onde as duas componentes conexas constituem esta linha de falsa auto-intersecção. Esta redução do horizonte a um ponto se precisa disso que esse ponto seja tal que toda linha traçada para aí chegar não o ultrapasse senão passando da face direita do plano a sua face avessa, após sofrer uma torção. Continuando meu pensamento posso dizer, com Lacan, que essa linha traçada é a “linha sem pontos” do corte que representa o dito que faz sujeito e que não pode se produzir senão de uma superfície já marcada de um “ponto fora da linha” ponto este que só se especifica de uma dupla volta instalada sobre uma esfera.
 Suponhamos agora, e aqui está a minha contribuição, que esta linha enquanto percorrendo a face direita da “asfera” seja a mostração do trajeto do sujeito na medida em que se faz representar na cadeia significante que sustenta o saber do seu sintoma. Suponhamos ainda que esta cadeia deslize sem maiores problemas até um ponto em que uma estagnação acontece. Ora é em função desta estagnação que vamos ver surgir aquilo que chamamos a pouco de “mal-a-mais” e que vai levar um sujeito a formular uma demanda de análise e uma transferência vai acontecer. 
Agora, se esta estagnação ocorre durante o tratamento é porque a transferência está operando enquanto resistência. Bom, Freud já nos esclareceu que estes pontos de resistência, pontos de silêncio que acontecem quando a associação livre é interrompida, são a consequência do analista estar ocupando um lugar destacado no pensamento do analisante. Estes momentos de estagnação, no entanto, longe de serem tempos mortos, perdidos para o sujeito, são ao contrário intervalos onde desponta um material específico, aquele da relação ao objeto, quer dizer, aquele da fantasia. 

Momento crucial onde o ato não deve faltar pois somente um ato vai restaurar a função do objeto “a” enquanto semblante, assim como foi um ato que colocou o sujeito em análise. E não deve faltar sob pena do analista, então, se apresentar como presença maciça, fixa, entravando a espontaneidade da fala. Importante assinalar  neste ponto que esta operação se sustenta no desejo do analista que faz barra ao gozo que aí se apresenta relançando o vector na direção de uma construção da fantasia. 
Retomando o nosso modelo topológico podemos dizer que se o ato falta o analista vai ocupar, não este ponto fora da linha (a), mas um ponto na linha (I (a)), impedindo o deslizamento metonímico ao não permitir o ultrapassamento no ponto do infinito, ao não permitir uma passagem da face direita para a face avessa. Em outras palavras, eu diria que teremos então um duplo corte e não mais uma dupla volta. Isto transforma as propriedades do objeto, criando uma banda circular e não mais uma banda de Moebius e um disco. Talvez então, agora, possa afirmar que é exatamente o ato, o ato da interpretação que, tal qual o dedo de São João de Leonardo Da Vinci apontando para o vazio, enquanto fio cortante da verdade e considerando “a necessidade lógica do momento onde o sujeito como X se constitui da “Urverdrängung, da queda necessária do significante primeiro”, restaura o significante enquanto puro não sentido e portador da infinitização do valor do sujeito. Temos aí então a verdade não enquanto horror mais enquanto uma variável quântica: A verdade é não toda! Desta forma vamos ter não a instalação de um único sentido com se tenta, quando se ensina um saber a alguém, nem muito menos a abertura a todos os sentidos. O ato analítico simplesmente abole todos os sentidos. Desta forma, não se deixa outra saída ao analisante senão que aí, neste ponto do infinito, neste ponto onde um puro não-sentido foi produzido faça uma passagem e construa um saber no campo que se abre em consequência da incidência do fio cortante da verdade, pelo ato psicanalítico. Podemos concluir dizendo que este saber que se constrói, tem como centro um “não-saber” que, sendo o núcleo do entusiasmo, não surge por uma relação a si-mesmo, mas como pertencendo à estrutura de um modo essencial, até o ponto de constituir a possibilidade do “Único saber oportuno”. 
Para concluir posso dizer que esta mostração, a partir do Corss-Cap, torna-se melhor compreendida se acrescentar algumas observações de ordem teórica:
1 – A castração e o infinito estão enlaçados e marcam da mesma maneira, essencial, a ordem do desejo. Castração, infinito e desejo têm o mesmo alcance “lógico”, aquele de um axioma ou teorema da existência.
2 – A interpretação é do sentido (na mostração que lhes apresento, sentido da linha que visa para além deste ponto do infinito) e vai contra a significação.
3 – A fantasia, esta que se apresenta nos momentos de estagnação da cadeia significante, não se interpreta e a interpretação visa recolocar a “causa” em função de agente para que uma construção desta fantasia possa ser efetivada. Da fantasia em sua relação com a cadeia significante posso apenas dizer, com Jacques-alain Miller que ela é “uma fixidez silenciosa”.
4 – Se a interpretação nos deixa uma certa liberdade quando a seu modo, o modelo topológico que escolhi para esta mostração nos aponta para o contrário quando se refere ao seu momento. O instante de olhar coincidindo com o momento de concluir nos diz disso que funda, no sentido e não-sentido radical do sujeito, a função da liberdade, como sendo propriamente um significante que mata todos os sentidos.
5 – Infinito e castração, representados no Cross-Cap pelo ponto do infinito, apontam para o “existe UM” fazendo limite ao “todo” e nos diz que a razão aí é que isso que o discurso analítico diz respeito é o sujeito que, como efeito de significação, é resposta do real.

NOTAS:

(1) - O livro mais famoso de Reik, O terceiro ouvido (1948) descreve como psicanalistas usam seu próprio inconsciente para detectar e decifrar os desejos inconscientes e fantasias de seus paciente. De acordo com Reik, analistas conseguem entender seus pacientes mais profundamente examinando suas próprias intuições inconscientes sobre seus pacientes. (Wikipedia)