Total de visualizações de página

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Seminário na EBP-MG - Sobre o Outro, o Gozo e o Amor (Primeira Parte)

O gozo fálico está na junção do simbólico e do real, fora do imaginário, do corpo, entanto algo que parasita os órgãos sexuais” (Lacan, conferência na Yale University, 25 de novembro de 1975, in Scilicet 6-7)


Comecemos por algumas considerações com o objetivo de esclarecer os termos que habitam esse seminário e assim podermos enfrentar as dificuldades que ele nos apresenta. Sim, as dificuldades são muitas! Talvez em função da fala de Lacan, mas principalmente por causa do tema deste seminário. Aqui vemos Lacan fazendo uma passagem do que podemos chamar de pensamento estruturalista para nos apresentar um mais além. Um mais além do simbólico, um mais além do prazer onde os limites se esfumam e nos trazem dificuldades de estabelecer parâmetros estanques que possam orientar nosso pensamento. Aqui temos, como está já posto no título do seminário, que nos dedicar “mais, ainda” para navegar nos mares lacanianos.
Por isto mesmo fiz a opção de trabalhar com vocês, hoje, Três temas importantes, com o objetivo de podermos ir passo a passo neste emaranhado de conceitos e de trechos que, por si só, se colocam como aforismos. 
Então vamos lá! 
Em primeiro lugar o conceito de Outro em Lacan e, em seguida o Gozo e, finalmente, os conceitos de Gozo do Outro e Outro Gozo. Neste caminho escolhido vamos ver o que temos de dicotomia nestes dois conceitos e como eles poderão nos ajudar a trabalhar a questão do feminino, tema central deste seminário.

Lacan introduziu o Outro, com maiúscula, para denotar uma função. Mesmo que esta palavra não esteja ausente em Freud, é com Lacan que ela encontra um destaque determinante. Denominar assim, o Outro, introduz uma função enigmática, metafísica e, até mesmo teológica. Na verdade, esse termo se encontra presente no regime conceitual no uso ontológico-metafísico, de Sartre a Levinas. Além disto, Lacan o emprega para designar diversas figuras, até mesmo heterogêneas, o que justifica plenamente a pergunta: o que é esse Outro?

Foi em Hegel que Lacan encontrou a referência decisiva para estabelecer esta relação do sujeito ao Outro: é de nosso conhecimento que no seu trabalho Fenomenologia do Espírito, ele descreve um trajeto onde a dialética com o outro é que vai constituir o sujeito. Ali temos a famosa dialética da “consciência de si” e o “reconhecimento”. Esse momento do ensino de Lacan, marcado pela intersubjetividade - anos 1950 - vai ser ultrapassado por uma concepção do Outro como, exatamente, um antídoto à intersubjetividade. Ele vai resolver esta questão jogando com a "relação de objeto”. Ele submete a intersubjetividade mesmo a uma séria contestação: o eixo, diz ele, é mais aquele do sujeito ao Outro, do que de sujeito a sujeito. No texto onde ele vai apresentar o passe para a Escola Freudiana, ele chega mesmo a “puxar as orelhas” de quem o acompanha: “ Fico espantado que ninguém jamais sonhou em me contestar, visto certos termos de minha doutrina, que a transferência faz, ela sozinha, objeção à intersubjetividade. (P09, OE, pág. 247)
A questão da relação sujeito a sujeito vai ser retomada mais tarde, exatamente neste seminário que é o objeto de nosso trabalho, quando ele vai tratar a questão do amor.

O "Grande Outro” apareceu no Seminário II, na lição de 25 de maio de 1955. Com o Outro o que vamos ter é um lugar, a Idee einer anderer Lokalität (Fechener). Assim Lacan nos diz no Seminário XI. Por um lado, o Outro vai apenas designar um lugar, para evitar toda concepção “onto-teológica” existencial (aquele próximo). Em outras palavras, não se trata de algo “transcendental" já que a questão central, para Lacan naquele momento, era: “de onde isso fala?”, isto impôs a referência ao Outro como nome desse “lugar”. É "o lugar de manifestação da fala” (“a outra cena”, eine andere Schauplatz…) (DT, E, pag. 634 ; PVF, OE, pag. 175). Uma outra forma de dizer isto é: “Isso fala no Outro… designando por Outro o próprio lugar evocado pelo recurso à palavra em qualquer relação onde este intervém”.(SF, E, 696)

Será importante, antes de passarmos mais à frente, deixar claro que o Outro designa negativamente o princípio de alteridade, ou seja não é redutível à identidade e, jamais à “mesmice".

Lacan, portanto, introduz o Outro sempre que se trata de lembrar que o sujeito não é sua própria origem e não podemos nos deixar levar pela polarização ou equivalência como o faz Melanie Klein. Digamos que antes que o sujeito perceba algo ou que entre em relação com um objeto, o Outro é o que já está lá. Assim pode-se entender que “encontro" com o Outro vai se dar em diversas situações, sempre que uma instabilidade acontecer com respeito a saber sobre si. A existência do Outro está ligada à do significante. A presença deste Outro joga por terra a autonomia do imaginário puro, ou seja, de tentar determinar o imaginário pelo simbólico: o Outro é o lugar de origem do significante sem o qual a imagem do corpo fica sem significação. Vamos deixar claro que se o registro do significante é o da enuciação, o registro do Outro é o da invocação. E o inconsciente não pode ser pensado sem esta função invocante.

Esta referência ao Outro fica melhor explicitada se nos lembrarmos desta espécie de tautologia negativa que Lacan nos diz, de uma forma quase que mágica: “Não existe Outro do Outro”. Formula essa que faz eco à: “não existe metalinguagem” na vertente do significante. Pode-se dizer isto assim também: “Um significante faz falta no Outro.” Ele chega mesmo a dizer que esse é “o grande segredo da psicanálise”(S VI, 8 abril 1959). Ideia que ele retoma no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo. Já na lição de 18 de março de 1975 do Seminário XXII ele assim esclarece essa questão: “Daí meus matemas, que procedem do fato que o simbólico seja o lugar do Outro, mas que não existe Outro do Outro”. (Le Séminaire de Caracas, in L’Âne, no 1, 1981, p. 31)

Não podemos esquecer que todos os grafos de Lacan figuram o Outro (A) na sua relação ao sujeito, seja aquele que define o inconsciente (no esquema L), seja como A marcado pela barra, no grafo do desejo (S(A/). 

Quando se fala em Outro é sempre em relação ao registro simbólico: “O Outro, distinguido por um grande A, sob cujo nome designamos um lugar essencial à estrutura do simbólico”, diz Lacan em (PE, E, 455). No entanto, é preciso destacar que na sua releitura da experiência do espelho, Lacan vai destacar a importância primordial desta referência ao Outro, melhor, ao “olhar do Outro” no qual a criança busca o testemunho, o sinal do “assentimento do Outro” parental (S VIII, 7 junho 1961). Sem dúvidas, é da “relação ao Outro” que o sujeito “recebe o primeiro olhar, signum”. (S VI, 11 novembro 1958).

Em outras palavras, o Outro designa o lugar da fala, sendo assim, solidário da categoria do simbólico. Lembro-lhes isto para dizer que ele é esse terceiro, testemunha da verdade, lugar de referência da verdade da fala entre dois sujeitos: “O Outro é o lugar onde se constitui o eu (je) que fala com aquele que ouve” (CF, E, 432). Pode-se mesmo dizer que aí está o código, se se levar em conta a teoria da comunicação. Ele é “o tesouro dos significantes, suposto saber a multiplicidade das combinações significantes” (SSDDIF, E, 820).

A letra maiúscula com a qual se escreve o grande A designa, fundamentalmente esta dimensão simbólica, enquanto que o outro minúsculo,  o “pequeno outro” nos envia ao imaginário - De um Outro ao outro, segundo o título do Seminário XVI, de 1968-1969. Este seminário deixa claro que o Outro, com maiúscula, é assimilável ao “conjunto vazio”, cuja enunciação matemática torna possível um cálculo, no sentido da "teoria dos jogos”.

Mas, por outro lado, o Outro será identificado ao corpo. O afeto mas apropriado a fazer surgir o Outro é a angustia, caraterizado como “a sensação do desejo do Outro”. Este é o momento em que a “falta falta”, em outras palavras, quando o sujeito se encontra na impossibilidade pontual de “apoiar-se na falta”. É preciso reconhecer aí, também, “a angustia que o Outro, (com um grande A) inspira por não ser um semelhante” (DT, E, 621). Este ponto nos permite uma releitura da série dialética freudiana inibição/sintoma/angustia.

Mais um aspecto deste Outro diz respeito a sua relação com a necessidade, a demanda e o desejo. A demanda nos diz do sujeição da necessidade à demanda, uma alienação fundamental. Nesta perspectiva é a relação à demanda de amor que institui o Outro. O desejo do Outro se constitui pela passagem da demanda ao desejo. Relação esta que somente é possível pela mediação do falo, significante do desejo.

Daí advém a formula: “O desejo do sujeito é o desejo do Outro”. Esta tese deve ser entendida em sua radicalidade antropológica: “o desejo do homem” nada mais é que “o desejo do Outro”.

Vamos olhar mais de perto essa dialética. A necessidade se define, e bem, no plano material e biológico. A demanda, que surge no momento da satisfação da necessidade, se dirige ao Outro e se constitui como infinita. Ela é, verdadeiramente, "sem fundo”, tal qual o tonel das Danaïdes, pois o sujeito sempre demanda para além da satisfação da necessidade. Na verdade, a demanda nada mais é que "um desvio das necessidades do homem pelo fato de ele falar, no sentindo de que suas necessidades estejam sujeitas à demanda, elas lhe retornam alienadas” (SF, E, 697). Já o desejo vai se introduzir como um mais além da demanda. De fato, o desejo “não se demanda”. De alguma forma preso na demanda, ele se revela como uma relação a uma falta qualificada: “Ao incondicionado da demanda o desejo substitui a condição ‘absoluta’" (SF, E, 698).

A melhor forma de mostrarão desta dialética entre a demanda e o desejo, em sua tensão neurótica, é a figura topológica do toro.

Um passo a mais, ainda! O que é mesmo que inscreve o Outro simbólico na imagem? Devemos tomar como princípio a identificação. Como isto acontece? Vamos tomar a experiência do espelho e, então, destacar a importância da referência do olhar do Outro. Este Outro que se introjeta por um “traço único” (einziger Zug) que Freud, em seu texto Psicologia das Massas, toma como característica da operação da identificação.

Freud destaca que “nas identificações, o eu copia uma vez a pessoa não amada, outra vez, ao contrário, a pessoa amada”. “Não deve mais nos escapar que a identificação é, nas duas vezes, parcial, extremamente limitada e só toma emprestado um traço à pessoa-objeto” (Freud - Psicologia da Massas e análise do eu). Mas, hoje compreendemos bem porque Lacan, ao substituir “único" por “unário" faz uma passagem ao limite da idéia freudiana por uma determinação “estrutural".

Importante destacar aqui que é no início deste texto que Freud emprega o termo “o outro” (der Andere) e não simplesmente outro (das Andere), que nos envia a esse “pedaço estrangeiro em nós” que é o inconsciente. Certamente que o contexto a que se refere é sua própria “psicologia social”: o “Outro" aponta para a figura de idealização e de identificação do individuo: “Na vida psíquica do individuo, o outro (der Andere) vem como um modelo, como objeto, como ajuda e como adversário” (Freud). Este é o ponto de articulação do individual ao coletivo.

Isto é o bastante para que Lacan veja, aí, “a figura desvelada … da identificação” (S IX, 13 dezembro 1961). Ele joga com o traço unário na teoria matemática dos conjuntos (S IX, 6 dezembro 1961): “Não há necessidade de todo um campo de organização e de uma introjeção maciça. O ponto do traço unário, esse signo do assentimento do Outro é suficiente para que o sujeito encontre e identifique na sua relação com o outro. Assim ele consegue que esse pequeno signo, este ‘einziger Zug’, esteja a sua disposição” (S. VIII, 7 junho 1961). Isto é fundamental para se esclarecer a função do nome próprio.

Agora, vamos nos perguntar sobre a relação do sujeito e o Outro.

Lacan introduz a noção de Outro com o objetivo de “desfazer definitivamente o mal-entendido  da linguagem-signo” (FCFL, E, 297). O conceito da comunicação é revertido, pode-se dizer, pela sua definição que leva um toque de humor: “na linguagem nossa mensagem nos vem do Outro (…) de uma forma invertida” (AC, E, 9). Ou, se quiserem: “O sujeito recebe do Outro sua própria mensagem invertida”.


 A consequência disto é que o sujeito vai se constituir a partir de um Che Voui? “Que queres?” Lacan encontrou na novela O diabo enamorado de Jacques Cazotte (1772) este significante que resume muito bem toda a tensão existencial desejante que diz que o sujeito do inconsciente se organiza em torno desta perplexidade radical: “O que o Outro quer de mim?” Mencionado, por Lacan, pela primeira vez em 6 de fevereiro de 1957, no Seminário IV, esta questão será retrabalhada até o final de sua obra.

Finalmente chegamos ao ponto: O Outro como Gozo: corpo e feminino.

Lacan vai, em 1957, no resumo que faz do seu Seminário XIV - A Lógica da Fantasia (LF, OE, 327) dizer que “esse lugar do Outro não deve ser buscado em parte alguma que não seja no corpo”. Dai se deduz a idéia de um “gozo do Outro” ou de um “Outro gozo”, como alternativa ao gozo comum, que conhecemos como "gozo fálico”. Ainda daí surge a noção de gozo suplementar, não complementar, da mulher: “O gozo do Outro é fora da linguagem, fora do simbólico” (A terceira)

Ora , isto implica um para-além ou um para-aquém do Pai: “Como saber se … o próprio Pai mesmo, nosso eterno pai de todos, não é apenas um Nome entre outros da Deusa Branca, aquela que perde-se nas noites dos tempos, por ser a Diferente, o Outro perpétuo em seu gozo?… (PDP, AE, 559).

Assim se confirma essa polissemia rigorosa na obra de Lacan: do Outro simbólico ao Outro gozo, passando pelo Outro materno.

(Continua…)