Finalmente chegamos ao ponto: O Outro como Gozo: corpo e feminino.
Lacan vai, em 1957, no resumo que faz do seu Seminário XIV - A Lógica da Fantasia (LF, OE, 327) dizer que “esse lugar do Outro não deve ser buscado em parte alguma que não seja no corpo”. Dai se deduz a idéia de um “gozo do Outro” ou de um “Outro gozo”, como alternativa ao gozo comum, que conhecemos como "gozo fálico”. Ainda daí surge a noção de gozo suplementar, não complementar, da mulher: “O gozo do Outro é fora da linguagem, fora do simbólico” (A terceira)
Ora , isto implica um para-além ou um para-aquém do Pai: “Como saber se … o próprio Pai mesmo, nosso eterno pai de todos, não é apenas um Nome entre outros da Deusa Branca, aquela que perde-se nas noites dos tempos, por ser a Diferente, o Outro perpétuo em seu gozo?… (PDP, AE, 559).
Assim se confirma essa polissemia rigorosa na obra de Lacan: do Outro simbólico ao Outro gozo, passando pelo Outro materno.
Vamos, então, dar um passo a mais e entrar no tema central do Seminário XX, Mais, ainda.
Sabemos que Freud, ele mesmo, evocou o gozo (Genuss) a propósito da satisfação (Befriedigung) das necessidades vitais, mais do que em relação à realização de um desejo (Wunscherfüllung). Lacan foi quem fez desta noção, correntemente referidas aos prazeres sexuais ou ao uso de um direito (gozar do usufruto, p.ex.) um conceito considerado, a partir de então, como importante para o campo da psicanálise.
Num primeiro momento, ele separa este conceito claramente do prazer, colocando-o no fundamento de sua teoria da perversão, essa entendida como uma de suas principais estruturas, ao lado da neurose e da psicose. A estrutura perversa se caracteriza pela obediência de um sujeito a uma lei que o transforma em escárnio anulando-o nesta mesma submissão.
Num segundo momento, Lacan vai introduzir o conceito de gozo no interior de sua teoria da diferença dos sexos ao distinguir o gozo fálico e gozo feminino. Assim fazendo ele pressupõe que o desejo no ser humano está constituído por sua relação com as palavras e, talvez exatamente por isto, "não existe relação sexual”. Explicito: quer dizer que o sujeito, no ato sexual não encontra nem o objeto de seu desejo que o outro parecia representar, nem a completude que ele ansiava a partir desta experiência.
Para nós que não temos o francês como língua mãe, pode ser difícil encontrar uma palavra que dê conta deste conceito de gozo, tal como o entende Lacan. Até onde posso saber com respeito ao português, penso que assimilamos bem o conceito que, como estamos vendo, tem sempre uma relação a uma forma muito particular de satisfação ou, ao menos, a uma satisfação diferente da plenamente satisfatória.
Para Lacan esse conceito se estrutura a partir deste gozo de exceção que é aquele do Pai simbólico, o chefe da horda primitiva ao qual se atribui a posse de todas as mulheres. Essa crença produz, em todos os outros homens, a fantasia de um lugar de “gozo absoluto”, inacessível e interditado. Esses homens, eles não conhecerão outro gozo que o “gozo fálico”, Gozo submetido à falha da castração e, por isto mesmo, marcado de forma irredutível pela falta e não pela plenitude. Assim se conota habitualmente esse termo: gozo.
Este gozo masculino suscita a preocupação de “um Outro gozo”, diferente do gozo absoluto, bem como do gozo fálico e que Lacan sugere que será dado à mulher. A posição deste "Outro gozo" no campo da sexualidade mostra uma mulher não-toda sujeitada à lógica fálica do complexo de castração. Lógica esta que ela excede, nesta medida, a uma tal determinação. Este excesso que, cumpre sempre ressaltar, não é simplesmente complementar do gozo masculino, mas constitui, com respeito à esse, um “suplemento”, provocando, na mulher, uma forma particular de divisão entre o “gozo fálico e o “Outro gozo”. Como consequência “este gozo que nela é não todo, a faz um pouco ausente dela mesmo, ausente enquanto sujeito"
Desta forma a brecha que existe entre os sexos pode ser definida da seguinte forma: “Como tal, (o gozo) está fadado às diferentes formas de fracasso constituídas pela castração, isso quanto ao gozo masculino, e pela divisão, quanto ao feminino” (Estou falando com as paredes, pág. 34). Mas o gozo suplementar, próprio às mulheres - do qual elas não podem, nem sabem nada dizer - e que experimentam, particularmente aquelas que são místicas, também é vivido como gozo do Outro e, mais precisamente, como da falta no Outro.
Esta diversidade de formas de gozo e os dois traços principais que lhe são comuns - a saber: a relação de cada um deles com o impossível e sua radical distinção com os caminhos do registro do prazer (sentimentos, emoções, afetos) - fazem, como já disse acima, que diferentes línguas tenham muitas dificuldades em traduzir o termo lacaniano, gozo. O italiano recorre, geralmente, a godimento. O espanhol oscila entre goce (jouissance) e gozo (prazer). Alguns tradutores preferem esse último termo, que lhes parece mais restritivo que o primeiro em relação ao imaginário de uma satisfação plena. Em outras línguas, tal como o inglês, eles se contentam de tomar a palavra francesa “jouissance” entre aspas ou em itálico.
Para concluir o que me dediquei a falar para vocês aqui, hoje, vou tratar da dicotomia dos gozos no seminário XX.
Neste Seminário que é, hoje, nosso objeto de estudo vemos Lacan tratar dos gozos no plural. Aqui ele vai defini-los segundo a divisão dos “seres sexuados”. Essa definição marca a distinção que ele vai deixar clara em relação ao sujeito do inconsciente, que não tem sexo.
Ao tratar assim “os gozos” ele vai dar mais um passo na atualização de um problema que sempre esteve presente em seu ensino: o falo como único significante que daria conta da repartição dos sexos. Sabe-se que ao atualizar o complexo de castração e o Édipo para pensar a repartição dos sexos Lacan segue Freud, apesar de todo o movimento construído pelos pós-freudianos. Em seu artigo “A significação do falo” (1958) vai ser estabelecido um elo entre sua teoria do significante e o complexo de castração em Freud ao ser definido o falo como um "significante privilegiado” (SF, E, pag. 699)
Neste Seminário XX são novas referências teóricas que vão dirigir suas elaborações: a repartição dos sexos vai ser estabelecida a partir de como os falasseres vão se postar diante da função fálica, esta definida em termos lógicos. É nesse momento que o conceito de gozo vai passar a ser referido no plural, pois os falasseres experimentam o gozo de formas variadas, conforme sua posição enquanto seres sexuados. Impossível entender o que Lacan escreve sobre gozo neste seminário se não considerarmos a posição daquele que goza enquanto ser sexuado.
Partindo desta premissa vamos examinar duas dicotomias que se apresentam neste seminário. A primeira é a oposição que Lacan estabelece, deste o início, entre amor e gozo: “O gozo do Outro, do Outro com O maiúsculo, do corpo do Outro que o simboliza, não é o signo do amor” (S.XX, pag. 11). Essa citação é um bom exemplo de como esse Seminário está cheio de frases que provocam efeitos de sentido, mesmo isoladas do contexto em que foram proferidas. Podemos dizer, como já mencionei antes, que elas podem ser lidas como aforismos e, na verdade, é assim que são infinitamente repetidas. Mas, cada frase de Lacan traz uma precisão milimétrica na escolha das palavras, e assim devemos lê-las se queremos trabalhar os seus textos e seminários. Aqui Lacan vai se referir ao gozo do corpo. Esta referência não se constitui como novidade, uma vez que no Seminário anterior, XIX: “… ou pior", ele já esclarece: “Gozar é usufruir de um corpo. Gozar é abraçá-lo, é estreitá-lo, é picá-lo em pedaços” (S.XIX, pag. 31.). Com isso fica claro a determinação de Lacan em vincular o gozo ao corpo: o gozo é aqui o que o falasser experimenta no corpo (en corps que homofônico a "encore"), corpo entendido como isso que “se goza” (S.XX, pag. 29). Nesta citação aqui referida, o corpo é nomeado “corpo do Outro” e as expressões “gozo do corpo" e “gozo do Outro” já nos colocam problemas, pois pode-se lê-las de duas formas conforme o genitivo subjetivo ou objetivo: "[...] gozar do corpo comporta um genitivo que tem essa nota sadiana à qual acrescentei uma pincelada, ou, ao contrário, uma nota extática, subjetiva, que diz que em suma é o Outro que goza”.(S.XX, pag. 30) O que temos aqui é o corpo do Outro tomado como objeto de gozo, isto que Lacan chama de “nota sadiana”, em mais uma referência feita a Sade em seu ensino, ou será que ele se refere aos êxtases dos santos onde é o Outro que goza?
Aqui, sua referência é à possibilidade do falasser gozar do corpo do Outro, tomando-o como objeto de gozo, do gozo sexual (nesta primeira lição, se vocês a leram, vão se lembrar que está se referindo à cama de casal e do que se passa nela – “estreitar-se”– delimitando um “espaço do gozo” (S.XX, Pags. 10 e 15)).
Nesta passagem ele se refere ao corpo como o que simboliza o Outro: O corpo, símbolo do Outro, nos indica aqui um corpo como representante do Outro. Esse Outro que é chamado, mais à frente no seminário, de “absoluto”, ou seja, o Outro sexo.
Lacan introduz, então, um caminho em que propõe tomar o corpo do outro, do semelhante, simbolizando o Outro com maíuscula, não como havia feito até agora, conforme trabalhamos no início deste texto, como Outro da linguagem, tesouro de significantes, etc.
Esse Outro aponta para a alteridade absoluta no que concerne ao sexo, aquela que se coloca, na posição masculina, do lado todo-fálico: "O Outro, na minha linguagem, só pode ser portanto o Outro sexo" (S.XX, pag. 45). A mulher é quem vai ter uma relação a esse Outro, lembrando que o inconsciente é radicalmente Outro.
Esse lugar de alteridade é, para Lacan, o lugar da mulher na repartição simbólica dos seres sexuados. Os falasseres que estão do lado feminino são automaticamente colocados na dimensão do Outro.
Tamanha é a importância desta alteridade no que diz respeito ao lugar da mulher que, no texto “O Aturdito”, contemporâneo ao Seminário XX, Lacan nos diz explicitamente: “Chamemos heterossexual, por definição, aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio” (A, OE. pags. 448-497 e pag. 467). Em outras palavras, não importa qual seja o sexo, todos aqueles que tomam a mulher como objeto do seu desejo ou do seu gozo estão no plano do hetéros, da diferença sexual. O que acabo de lhes dizer não se refere à oposição imaginária do “sexo oposto”, mas sim da posição simbólica frente à dimensão do Outro sexo.
Ocupar esse lugar Outro tem suas consequências, obviamente: O todo funda-se em uma exceção, esse famoso ao-menos-um, ou seja, o todo não se constitui senão ao preparar o lugar Outro. Mas, desde então, aquele que vem ocupar esse lugar, o do ao-menos-um, o do Outro, esse escapa do todo. Ele torna-se Outro ao risco, aliás, de que uma mulher seja perfeitamente identificável com Deus, mesmo assim! Porém, se ela ocupa esse lugar Outro, efetivamente a questão se coloca: ela não é mais humana porque temos a enganosa tendência a querer não fazer depender da humanidade senão o que depende da castração, ou seja, do traço fálico, do traço unário.
Diante deste Outro os homens se perturbam, pois o que se coloca em questão é a lógica fálica. Por isso é tão frequente o movimento masculino de tentar anular tal dimensão, convertendo a mulher não-toda, que está ao seu lado, em toda fálica. Em outras palavras, "fazê-la rapaz” e, com isto, estabelecer um laço confiável. O mesmo que ele acredita ter com seus companheiros.
Caminhemos mais um pouco dentro desta perspectiva de trabalhar essa dicotomia do amor e gozo neste Seminário XX. O que acabamos de falar sobre a relação dos homens com as mulheres pode transparecer que Lacan retoma aqui, simplesmente, a conhecida clivagem entre amor e desejo que Freud já trabalhou em seu artigo de 1912, “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”. É verdade que ele mesmo faz referência a este texto freudiano em “A significação do falo”. Ainda em um momento posterior de seu ensino, ele ainda mantém a concordância com a tese freudiana: No final da última aula do Seminário XVIII, De um discurso que não fosse do semblante, ele cita o Eclesiastes: “Goza com tudo que tu és, goza com a mulher a quem amas”. E conclui: “É o cúmulo do paradoxo, porque é justamente do amá-la que vem o obstáculo”(S. XVIII, pag. 166.).
Nestas duas passagens citadas Lacan parece equivaler desejo e gozo e os opõe ao amor, mas no Seminário XX essa relação - amor e gozo - não é mais de oposição, mas de disjunção. O que isto representa? Que Lacan percebe que esta relação não é mais necessária nem suficiente (S.XX, pag. 12) e que só pode acontecer de forma contigente. A grande diferença entre o amor e o gozo é que o amor chega a fazer semblante de laço conectando os dois. O que nunca acontece com o gozo. “No amor, o que se visa é o sujeito, o sujeito como tal [...]” (S.XX, pag. 56) – enquanto o gozo não faz laço, uma vez que é uma relação do sujeito com o objeto do seu gozo.
O que está sendo falado aqui do amor nem de perto se aproxima do ideal de fusão de dois em um, tantas vezes criticado por Lacan ao longo de seu ensino e muitas vezes mencionado aqui. Estamos falando de possibilidade de laço: A função do amor concerne ao fato de que o amor trata a falha introduzida no campo do ser pelo significante. Cumpre chamar a atenção para a forma contigente que o amor sempre apresenta, ou seja, existem encontros, existe o feliz acaso (bon heur). Aliás só existe isso: a felicidade (bonheur) do acaso. (T, OE, pags. 550-556 e pag. 553.)
Assim vemos se desenhar a primeira dicotomia neste Seminário entre o amor e o gozo. Mas logo ele começa a questionar o que ele mesmo apresentou como um aforismo quando anunciou "o gozo do corpo”: "Vou um pouco mais longe – o gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não chega, eu diria, a gozar do corpo da mulher, precisamente porque o de que ele goza é do gozo do órgão. […] O gozo, enquanto sexual, é fálico, quer dizer, ele não se relaciona ao Outro como tal. (L, OE, pag. 14 e p.16)
Nesta passagem vemos Lacan apresentar, de uma forma incisiva, o conceito de gozo fálico, ao mesmo tempo que define o gozo sexual como uma subespécie do gozo fálico
O que nos chama a atenção nesse Seminário é que, após questionar a origem do gozo e negar várias procedências: não é do amor, não é dos caracteres sexuais secundários, nem tampouco do sexo da mulher, Lacan determina por convocar o significante, atribuindo a ele a causa do gozo: "O significante é a causa do gozo. Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo? Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material? Por mais fluído , por mais confuso que isto seja, é uma parte que, do corpo, é significada nessa inscrição” (S.XX, pag.30).
Mas não fica só nisto, pois vai também definir o significante como o que faz limite ao gozo. Esta condição peculiar do gozo, causado e limitado pelo significante, o faz inscrito no campo da linguagem: o gozo não pode ser a satisfação de uma necessidade, trazida por um objeto que a preencheria. O gozo fálico é descontínuo, recortado, impossibilitando que se goze do corpo na sua totalidade, mas apenas da escansão que o significante produz nesse corpo. Daí que é sempre “o corpo de um que goza de uma parte do corpo do Outro” (S.XX, pag. 30). Como consequência deste vínculo com o significante, vemos os recortes no corpo que são conhecidos por zona erógena. Mas não se limita a estes pontos, pois pode recortar qualquer parte do corpo do outro e transformá-lo em zona erógena. Em outras palavras, o significante é erógeno. Isto define a zona erógena como um lugar de “pura diferença". Algo se metaforiza pela fala, ou se preferirem usar o termo lacaniano, pelo gozo fálico.
Cumpre ressaltar que Lacan não está nos dizendo que o significante é gozo, como pode muito bem ser e é confundido por alguns. Nem tampouco ele vai abandonar sua definição do significante como o que representa um sujeito para outro significante. (S.XX, pag. 55 e pags. 154-153)
Vamos deixar claro o que acabo de falar acima a respeito das zonas erógenas: elas não se limitam às zonas erógenas tais como Freud as delimitou a partir da pulsões, mas acontecem em todo recorte possível feito sobre o corpo pelo significante. Em última instância, como os significantes têm sua significação determinada pelo falo, é este que recorta as partes do corpo, investindo esses objetos parciais com um valor fálico. Essa operação, ao mesmo tempo em que torna possível o próprio gozo, imprime nele a marca da castração. Assim marcados pode-se constatar o que Lacan disse nas conferências que fez nos Estados Unidos: “o gozo parasita os órgãos sexuais”.
Assim, o homem crê que aborda a mulher, “Só que, o que ele aborda, é a causa de seu desejo, que eu designei pelo objeto ‘a’” (S.XX, pag. 78). Aquele que deseja a partir da posição masculina não alcança o corpo do Outro sexo, mas visa no campo da parceira feminina, o objeto causa do seu desejo, o objeto a. Este objeto supõe um recorte no corpo da companheira: cabelos, voz, olhar, pernas, seios ou outra coisa qualquer.
No entanto o falo, esse que faz um limite ao Outro, é o responsável pela organização de nossa libido. E ele assim o faz promovendo o fracasso em possuir o Outro, impendindo-nos de o fechar em nossos braços. Em outras palavras é o falo que impede que tomemos o corpo de nossa parceira como um todo: apenas posso ter acesso, imaginariamente a esse falo que organiza meu gozo.
Diante de tudo isto que estamos expondo até aqui no que concerne ao sujeito, o Outro, o objeto e o gozo, fica claro que a linguagem não nos garante um acesso direto ao objeto, mas ao contrário, nos afasta dele, pois sabemos que um significante sempre nos remete a outro significante. O objeto permanece fora da cadeia significante e o gozo fálico será sempre um gozo do significante, e nunca do objeto.
Para concluir o que chamei aqui a primeira dicotomia presente neste Seminário: gozo e amor, vimos que Lacan define o gozo do corpo, gozo do Outro, como um anseio do ser sexuado - anseio fracassado, pois o gozo fálico não vai permitir gozar da totalidade do corpo do parceiro. Mas, no mesmo movimento já encontramos Lacan abrindo um espaço para definir, mais adiante no Seminário, esta espécie de gozo que se contrapõe ao gozo fálico: "Mas o que chamo propriamente o gozo do Outro, no que ele aqui é só simbolizado, é ainda coisa inteiramente outra, a saber, o não-todo que terei que articular” (S.XX, pag. 30).
Neste ponto Lacan introduz uma segunda dicotomia, talvez até primeira em importância para clínica, pois vai definir a sua teoria dos gozos. Refiro-me aqui à dicotomia entre o gozo fálico e o gozo do Outro: “Há um gozo, já que nos atemos ao gozo, gozo do corpo, que é, se posso me exprimir assim [...] para além do Falo” (S.XX, pag. 80).
É assim que Lacan vai fazer avançar seu ensino, abrindo novos caminhos para a escuta clínica. Ele define o gozo fálico como causado pelo significante e inscrito na linguagem, portanto passível de ser dito. Esse é o gozo mais comum: gozo do sexo, do trabalho, do sintoma, enfim, aquele que o sujeito sempre encontra. Mas aqui vemos ser postulada a existência de um outro gozo, o gozo do Outro, que muito difere do que acabamos de explicitar como gozo fálico, pois ele não sofre as limitações que o significante impõe e tem como característica sua infinitude. Pode-se mesmo dizer que sua principal característica é não ter bordas, um conjunto que não é construído sobre um limite.
Sua principal contribuição, presente neste Seminário é a proposta de uma repartição dos sexos a partir dos gozos e não em relação à anatomia. Claro que, mesmo que a anatomia não seja o destino, ela não deixa de ter sua importância. Isto porque o significante está ligado à anatomia e é um órgão do corpo que empresta sua representação ao significante falo. A consequência mais imediata disto é que um individuo é menino ou menina antes de qualquer posição do sujeito. Em outras palavras, a esse dado anatômico primeiro segue-se a inscrição no simbólico que poderá corresponder ou não às escolhas do sujeito. Em outras palavras, os seres que escolherem colocar-se do lado masculino serão regidos exclusivamente pela função fálica, esta que organiza a relação ao gozo fálico. Já aqueles que escolherem o lado feminino vão experimentar uma relação não-toda com a função fálica. Mas isso não significa que as mulheres participem menos do gozo fálico que os homens. Muito antes pelo contrário, ao se inscreverem enquanto não-todas na função fálica, eles tem acesso ao gozo fálico, mas não somente, pois elas terão acesso a esse gozo do Outro, dito suplementar. Melhor dizendo, as mulheres estão à toda no gozo fálico, mas existe algo a mais (S.XX, pag. 80): "[…] por ser não-toda ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar”(S.XX, pag. 79). Em resumo podemos dizer que não existe outro gozo senão o fálico, salvo aquele sobre o qual a mulher não nos diz uma palavra, talvez mesmo porque não a conheça, aquele que Lacan define como o que a faz não-toda (S.XX, pag 66).
Uma possível causa do por que a mulher nada pode falar deste Outro gozo é que um dizer se sustenta de uma ex-sistência ao que pode ser dito. Em outras palavras se sustenta de uma posição de enunciação a se diferenciar do enunciado e no Outro nada existe que venha sustentar uma ex-sistência.
Ainda na tentativa de tornar mais claro o conceito de gozo do Outro, Lacan vai utilizar o termo parasexuado para designá-lo. Ele o faz em um texto muito importante, “A terceira”, pronunciado alguns meses após o Seminário XX. Sabemos que o prefixo “para” nos remeter à idéia de “ao lado de “, “da parte de”. Com isto, parece que ele quer nos dizer que o gozo do Outro, apesar de não ser sexual, tem alguma relação com ele.
Não há duvidas que esse gozo do Outro interfere no gozo fálico, no registro do gozo sexual. Verifica-se isso na experiência do orgasmo feminino, onde acontece um desvanecimento do sujeito. A consequência disto é que entre o gozo orgástico e o sujeito existe uma exclusão, com a presença de um produzindo a ausência do outro. A consequência clínica é que para a mulher, mesmo com a experiência orgástica afirmada, até mesmo satisfatória, ele nunca deixa de desestabilizar o sujeito. Assim se dá a devastação: é o gozo Outro que desgasta o sujeito, no sentido de aniquilá-lo pelo espaço de um instante. Seria uma aproximação à experiência do gozo místico como forma de abandonar-se no Outro, abandonar todo e qualquer projeto de ser.
Uma outra possibilidade de sabermos um pouco mais desde gozo do Outro é tomá-lo no sentido subjetivo disso que chamamos de “gozo Outro”. Observa-se aí uma outra vertente da impossibilidade da relação entre o significante e o Real que a vertente fálica representa muito bem. Se há um fracasso aí, na vertente do gozo do Outro a impossibilidade é vivida como um para além.
Para concluir esse nosso percurso que teve questões concernentes ao conceito de gozo no Seminário XX, vamos destacar que a distinção que estabelece o genitivo objetivo - gozar do Outro, do corpo que simboliza o Outro - e o genitivo subjetivo - experimentar ser gozado pelo Outro - nos faz pensar que, clinicamente o primeiro está do lado do fracasso do gozo fálico em ter acesso ao corpo na sua totalidade e o segundo aponta para o gozo místico e o gozo feminino. Essas são soluções que Lacan nos propõe para dar conta deste gozo do Outro que não existe.
Bibliografia
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