A escritura do nome próprio:
Um ponto de báscula
(Relato de uma experiência do Passe)
Celso Rennó Lima
A busca de uma análise, se num primeiro momento utilizou-se de artifícios sociais - inibições, dificuldades nos relacionamentos, angústia e, até mesmo o desejo de ser analista - deixou formular uma demanda imiscuída entre as muitas queixas formuladas: “queria aprender a escrever!”. Demanda esta que se apresentou, sempre, como sem importância.
No entanto, esta demanda “inocente” foi determinante na escolha dos analistas: todos eles sabiam escrever! Uma suposição de saber, um Sq, que marcava o início de um trajeto e que só pode ser esclarecido no momento em que não foi mais preciso sustentá-lo.
Assim tiveram início três percursos com finais bem distintos. Se no primeiro, os resultados terapêuticos não se sustentaram por muito tempo, no segundo eles foram mais duradouros em função de mudanças subjetivas que aconteceram, sem contudo, chegar a um ponto de conclusão. Por isso, mais uma análise!
Cumpre ressaltar que, nas duas primeiras, o “final de análise” foi atestado pelos analistas.
Da entrada em análise
Tendo, deste muito cedo, escolhido o trabalho como uma forma de “dar conta” da impossibilidade da relação ao Outro, empregou uma boa parte da vida no cumprimento deste imperativo, o que acabou intervindo até mesmo no lazer. Havia sempre um “peso a mais”, uma certa cobrança, em tudo o que fazia. Por causa disto, os prazeres das conquistas eram imediatamente substituídos por “mais trabalho”. Este movimento, que podemos situá-lo no andar inferior do Grafo do Desejo, girava sob a determinação de “resgatar o nome do pai”. Esta bandeira, escolhida muito precocemente, se sustentava nas falas onde o pai era apresentado ora a partir de suas qualidades intelectuais e títulos universitários - Doutorado “com louvor”, p. ex. - ora como o responsável por “bancarrotas” causadas por insucessos profissionais e constantes envolvimentos com mulheres e outros “prazeres” da vida.
Outros elementos são necessários para explicitar o circuito neste andar do Grafo. Muito precocemente surgiram indicações vindas da mãe, que apontavam um irmão do pai como ideal: médico, psicanalista e além disto, ou principalmente, muito trabalhador e honesto. Uma “sumidade”!, enquanto o pai era reduzido à condição de “paciente” em virtude de constantes depressões. Este ideal, no entanto, só pode ser eleito como base de uma identificação por existirem traços da imagem paterna a sustentá-los, deixando ao significante “trabalho” a função de representar o que faltou e, por isso mesmo, o que trouxe consistência ao sintoma. A instalação de um “psicanalista” no lugar de i(a), serviu para estabelecer um certo padrão de comportamento em m - “trabalhador, honesto, estudioso” - que, por sua vez, alimentava o sintoma [s(A)]: “mais trabalho”! Em (A), instalou-se uma frase dita por sua mãe, num momento em que a irritação, por não conseguir fazer o filho escrever como ela queria, concluiu-se com um acesso de raiva e uma exclamação: “Não aguento mais, agora é por sua conta!” Frase que foi imediatamente interpretada como a “senha” da liberdade. Doce equívoco do desejo que aprisionou o sujeito em um circuito onde as balizas - indicações de identificações - não deixavam muitas opções.
Durante um bom tempo, frequentou as sessões de análise, alimentando os sintomas de sentido a partir mesmo do seu saber e perspicácia. Todo o movimento neste circuito vinha sendo acompanhado pela sensação de “dever cumprido”, até que uma intervenção do analista, recusando o lugar que lhe era oferecido na transferência, não aceitando uma “negociação”, produziu um primeiro ponto de virada na história desta análise.
J. A. Miller, em seu curso “Silet”, nos lembra que uma intervenção preciosa do analista é seu eventual ‘sem acordo’ (pas d’accord), pois no inconsciente não há a menor possibilidade de uma harmonia, muito menos de uma “negociação”, pois falta o significante que poderia estabelecer a proporção sexual.
Com esta intervenção um vazio se apresentou no lugar em que era esperada a perpetuação de uma sequência plena de sentido e trouxe o “novo despertar de um desprazer” (der Erweckung neuerlich Unlust) que estava velado pelo “Automaton” dos significantes regido pela crença em ser “tão trabalhador e honesto” promovendo uma retificação da satisfação, exatamente, onde ela deve ser feita: ao nível da pulsão. Em outras palavras, pode-se dizer que, a partir da separação promovida pela interpretação, pode ser evidenciado o vazio em torno do qual circula a pulsão e onde, durante toda a sua vida, insistiu em colocar uma mulher, mais exatamente, o olhar de uma mulher. Não um olhar qualquer, mas um olhar que portava uma marca. A marca de uma falta que se prestou a ser interpretada como a presença da “bancarrota”. Este vazio que poderemos chamar de lugar da verdade delimita, no discurso do analista, um espaço onde um saber pode ser reinventado: “por mais que trabalhe, não é possível dar à mãe o pedaço que faltou ao pai”. A construção deste saber, neste momento, abriu um caminho e uma possibilidade de fazer entrar um pai que havia sido afastado em função de “negociações” com a mãe.
Do ponto de vista topológico esta intervenção, ao lançar o vetor para o outro patamar do Grafo do Desejo, promoveu a transformação de uma banda circular - circuito do andar inferior - em uma banda de Moebius - circuito do andar superior, devolvendo, ao sujeito, sua própria mensagem invertida e evitando, assim, que as intervenções do analista fossem tomadas na vertente da “negociação”, ou seja, como nutrientes ao sentido do sintoma.
Esta “subversão topológica” é que nos diz que ocorreu uma passagem de um saber sobre o inconsciente para um consentimento com a experiência do inconsciente
Do desejo do Passe
Á medida que um caminho ia sendo construído, várias posições ancoradas em identificações perdiam seu valor, deixando o grande Outro reduzido à sua condição de ser apenas um lugar onde o conjunto dos significantes deixa claro o buraco do real. Ao mesmo tempo, o espaço do prazer ia sendo conquistado à medida que “um certo peso” não se fazia mais presente. Diante destes resultados retornou, mais decididamente, um desejo que há muito já se fizera presente: candidatar-se à experiência do Passe. No entanto, todas as questões dirigidas ao analista, na espera de uma “autorização”, encontravam sempre a mesma resposta: silêncio! Não conseguia retirar dele um “atestado” com o qual se garantir. Somente a decisão do sujeito, já às vésperas do encontro onde iria ser formulada a demanda à Escola, foi capaz de produzir uma intervenção: “Sim. Claro!”
Do final: A reversão da interpretação do Inconsciente
Na sessão que antecedeu à demanda do passe, três cenas retornaram com uma certa intensidade. São cenas que sempre estiveram presentes, coloridas por um tom de brincadeira e que podem ser resumidas em três frases: a primeira, já mencionada acima, “Agora é por sua conta!”. A segunda se refere a um momento que se repetia em restaurantes quando, diante de um prato de comida, escutava do pai: “Coma tudo! Já está pago. Não deixe resto!” A terceira cena dizia de um momento em que, vendo passar algumas mulheres, o pai exclamou: “É mulher demais para um homem só!”
Sem saber porque estas três frases retornavam naquele momento, e nem porque elas se apresentavam sempre juntas, deu ênfase à primeira (Agora é por sua conta!), repetindo sua interpretação de “senha” da liberdade ao relacioná-la com a decisão do passe.
Desta vez, no entanto, o analista disse que era preciso retificá-la. A resposta foi automática: “claro, agora eu tenho que desejar”. “Mas, disse o analista, desejar não é o bastante”, instalando uma interrogação onde, até então, era só certeza.
Foi em meio aos efeitos deste enigma sobre o desejo que presenciou, no dia que antecedeu o pedido ao Secretariado do Passe, uma discussão entre duas pessoas que ocupavam lugares muito idealizados. O tema desta discussão, para sua surpresa, era absolutamente irrelevante e sem o menor propósito!
Naquela noite um sonho foi produzido: “Estava no clube, levando alguma coisa, uma limonada, uma batida de limão, para sua mulher quando surgiu um menino que, com muita raiva, grita para um jovem senhor que chegava: IDIOTA!. A surpresa é tão grande que faz cair o que estava na sua mão.”
Ao acordar comenta o sonho buscando uma saída na associação limão-alemão, dizendo da admiração da avó materna por tudo que concerne ao povo germânico. No entanto, é lembrado que limão poderia ser um Lima grande. Lima, o nome de família do pai, estava mais uma vez sendo excluído! (Não havia mais possibilidade de continuar fazendo “limonada”, não podia mais dissimular, em meio a uma solução de compromisso, a marca que permanece como a presença mesmo da diferença.)
Após este episódio, e a entrada no procedimento do passe, aconteceram três sessões. Na primeira, quando relatou o sonho do LIMÃO e a elaboração em torno do Lima, escutou a seguinte intervenção do analista: “Quer dizer que Lima é o Nome-do-Pai e ‘agora é por sua conta!’ o desejo da mãe”?
Foi o bastante! Produziu-se o que pode ser descrito utilizando-se as palavras de Jorge Luis Borges quando diz do encontro com o Aleph: “Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph que minha tímida memória mal e mal abraça? (...) Neste instante gigantesco, vi milhões de atos agradáveis e atrozes; nenhum me assombrou mais que o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é.”[1]
Após uma fração de segundo, que pareceu uma eternidade, pode ser dito: “quer dizer que é isso!” Quer dizer que durante todo este tempo a interpretação que apontava esta frase como a “senha” da liberdade era um equívoco!? Quer dizer que, ao mesmo tempo que excluía o pai da cena, colocava o sujeito submetido a um desejo que se apresentava como um vácuo pronto a levar-lhe seu bem mais precioso!? Esclareceu-se, então, porque o sujeito havia escolhido, como estratégia principal no seu relacionamento ao Outro, transformar toda e qualquer manifestação do desejo do Outro em demanda, através da simples operação de “merdificar das Ding”. Em outras palavras, ali onde surgia um objeto a, marcado pelo -phida castração, a ameaça da “bancarrota” levava o sujeito a oferecer um objeto qualquer para que fosse estabelecida uma série infinita, sem ponto de conclusão.
O saber que, então, pode ser construído permitiu uma retificação, concluindo a frase e desfazendo a interpretação do inconsciente que dizia do desejo que aprisionou o sujeito: “Agora, meu desejo, é por sua conta, já que seu pai não foi capaz!”
Esta retificação estabeleceu um novo sentido, explicitando que as frases: “Não deixe resto!” e “É mulher demais para um homem só!”, sempre estiveram juntas porque alimentavam o sentido da frase “Agora é por sua conta!” ao reforçarem a ideia da impotência de um pai cuja imagem oscilava entre o idealizado e o impotente e que, fundamentalmente, “não dava conta” do desejo de uma mulher. Assim se constituiu o enlaçamento do desejo e da realidade em torno de uma assertiva que se precipitou na conjunção dos significantes que construíram esta cena, determinando os rumos de uma vida: “Deixa comigo!”
Este foi o momento do passe.
A operação da interpretação, separando S1 do S2, ou seja, estabelecendo o avesso da proposta do inconsciente, criou um intervalo onde reinava a opacidade própria do gozo do sintoma: “bancarrota”, significante do gozo, significante que indexa a falta. “Gozo opaco por excluir o sentido.”[2] Uma passagem pôde, então, acontecer a partir da incidência da interpretação que, à maneira de um estilo que sulca a tábua de cera re-inscreveu o Nome-do-Pai revitalizando as funções do traço unário, matriz simbólica, matéria-prima do nome-próprio. Ora, é o nome-próprio que faz nó enquanto quantificador lógico, “como origem riscada, cancelada da fala no lugar onde está como repetição do Nome-do-Pai e como ato de nascimento”[3] do sujeito. Este é o efeito de um dizer verdadeiro que deixa como rastro uma ranhura por onde se explicita que é impossível escrever a relação sexual[4]. Por mais que se tentasse, não era possível escrevê-la e a letra ruim, que se traduzia por impotência em atender à demanda materna, nada mais era do que um véu que deixava um certo saber na obscuridade.
A revitalização do nome-próprio[5] promoveu sua instalação como um ponto de báscula no quadro de uma cena construída ao longo de um árduo trabalho, reabrindo os caminhos ao fazer surgir um desejo inédito.
“O Nome do Pai, pode-se muito bem dispensá-lo, desde que dele se sirva”[6], nos afirma Lacan. No entanto, esclarecemos, com J. A. Miller que dispensamos o Pai enquanto real, “à condição dele se servir como semblante” pois é “a título ou em lugar de semblante que o psicanalista entra na operação que se cumpre sob sua direção, desde que ele se ofereça como a causa do desejo do analisante para lhe permitir produzir os significantes que presidiram suas identificações”[7]
Assim, a “função da pressa” fez precipitar o sujeito pelo umbral que ele mesmo construiu.
A sessão que se seguiu girou em torno das elaborações que o momento do passe promoveu para, na terceira, ficar claro que o endereçamento, a partir de então, já não era mais feito àquele que se assentava na poltrona, mas à Escola. O trabalho, ali, estava concluído.
Para melhor transmitir o que lhes digo, retomo o Grafo do Desejo para escrever em ($<>D) “Agora é por sua conta!”, em [$(A/)] “Bancarrota”[8] e em ($<>a), “deixa comigo!” resposta sempre presente em um sujeito que só interessava nada saber do desejo. Finalmente, pode-se escrever “psicanálise” em (d), pois se conquistou o que foi herdado.
[1] Borges, J.L., “O Aleph”, Ed. Globo, Rio de Janeiro, Brasil, 1986, pag. 132.
[2] Lacan, J., “Joyce, Le sinthome”, Simpósio de 3/6/75.
[3] “Pour une logique du fantasme”, in Silicet, nº 2/3, pag. 225. (À continuação temos: “ Et c’est bien parce qu’il s’agit d’instituer un discours sur le fantasme que structure le discours de l’inconscient, et parce que le nom propre est le noeud du fantasme, qu’il importe de faire porter sur lui la negation. L’écrit n’a pas de père.
[4] Lacan, J., “Seminário XXI - Les non dupes errent”, lição do dia 12/02/74, inédito.
[5] “Nome próprio: segundo tipo de identificação regressiva ao traço unário do Outro” Lacan, J., “Seminário IX - A identificação” Curso de 10/01/62, inédito.
[6] Lacan, J., “Séminaire XXIII - Le sinthome”, sessão do dia 13/04/76, inédito. (“Le nom-du-Père, on peut aussi bien s’en passer, à condition de s’en servir”) A tradução utilizada foi sugerida por Sérgio Laia, a partir do verbete “passer”, item IV do Le Petit Robert.
[7] Miller, J. A., “L’Autre qui n’existe pas et ses comités d’éthique”, 20/11/96, inédito.
[8] “Eso se articula también con la diferencia que Lacan establece entre el complejo de Edipo y el complejo de castración. Freud mismo dice que la fuente de todo esto es lo pulsional. Eso justifica vincular la castración y lo pulsional. Es lo que Lacan escribe en la línea superior del grafo del deseo, la vinculación goce-castración. Hace retornar la castración, el -ϕ, sobre el goce mismo.” Miller, J. A., Conferencia de Barcelona, op, cit., pag. 51.