Começo por “este aparelho de quatro patas, com posições que servem para definir os quatro discursos radicais”, criados por Lacan, a partir da incidência do Discurso analítico.
Já comentei sobre a importância da exterioridade do S1 em relação ao campo do grande Outro, onde se encontra o conjunto de todos os outros significantes que ali se colocam de forma a constituírem uma bateria significante que não temos nenhum direito de concebe-la como dispersa, pois formam um campo que se apresenta estruturado como um saber. A este campo pode-se supor um saber que é o sujeito, pois, estando representado por um significante para outro significante, ele representa este traço específico que o distingue como indivíduo vivo. Este traço, que ele toma como Um e que vai repetir-se a cada vez que um discurso se articula determina o ponto onde o gozo do Outro deixa a sua marca. Por isso Lacan chama “saber” ao gozo do Outro. Há um saber em jogo aí e do qual nos resta um ponto específico que se escreve na álgebra lacaniana como objeto pequeno “a”.
Desta forma podemos articular nos quatro pontos da estrutura os quatro elementos que já defini anteriormente e que aqui repito:
S1 – este traço distintivo que é também o que inaugura a experiência do sujeito marcando uma separação e, ao mesmo tempo, se colocando em posição de poder intervir no Outro enquanto campo do saber. Por isso pôde-se dizer que é nesta função de significante que se apóia a essência do Mestre.
S2 – O saber que se estrutura a partir de uma bateria de significantes que se organiza ao redor de um furo e que se apresenta pela extração do gozo a partir da intervenção do S1. Aqui se organiza um saber próprio do escravo, nos diz Lacan, o escravo da antiguidade quando este participava da família e se caracterizava pelo saber-fazer. O S2, portanto, enquanto encarna este saber que não se sabe, mas que se presta à subtração pela operação do Mestre. Este lugar do “saber que não se sabe” foi Freud quem revelou ao dizer que, mesmo subtraído à consciência, ele permanece estruturado (como uma linguagem, diz Lacan) e, por isso mesmo, articulável como um ponto de falta deixando entrever seus efeitos. O inconsciente, a partir disto que acabo de assinalar, pode ser definido como “um termo metafórico para designar o saber que só se sustenta ao se apresentar como impossível, para que, a partir disso, confirme-se ser Real (entenda-se, discurso real).” Um exemplo disso é quando se espera uma sequência e, em seu lugar, vê-se surgir uma outra dizendo de um “ato falho”. Esta seria a face articulada do saber. A outra que Lacan aponta em seu seminário diz respeito à possibilidade que tem este saber de ser transmitido “do bolso do escravo para o bolso do mestre”. Trata-se aí da “epistéme”, ou seja, de um saber que pode tornar-se saber de mestre. Lacan exemplifica isso dizendo que a filosofia faz assim: subtrai ao escravo seu saber por uma operação de mestria. O texto de Platão – Menon – é fornecido como paradigma disto.
"a" – Este elemento denota o que do campo do Outro permanece como impossível a saber. Trata-se de um resto da operação significante que visa eliminar o gozo do campo do Outro nesta operação de transmissão do saber do escravo ao mestre. Isto nos coloca a questão de “como é que se articula o escravo em relação ao gozo”. Lacan desenvolve isso ao longo de seu seminário e o seguiremos neste caminho. Uma das questões que já se coloca, em função mesmo da estrutura do discurso é a relação entre o saber, a verdade e o Real. Pôde-se adiantar aqui que a passagem que se apresenta barrada entre o lugar da produção e o da verdade nos diz que “o efeito de verdade decorre do que cai do saber, isto é, do que se produz dele, apesar de impotente para alimentar o dito efeito”.
$ – O sujeito, dividido entre os dois significantes que só fazem representá-lo ali onde espera ser, vê-se na condição de ex-sistir apenas na cena da fantasia que constrói a partir de uma interpretação que faz do encontro com a falta no Outro. Esta condição que se apresenta como uma promessa de saber é o que surge como “desejo de saber”. Enquanto submetido ao significante mestre o sujeito só faz seguir seu comando para que “isso caminhe”. Sua chance de abrir uma possibilidade de acesso ao saber acontece apenas quando, a partir mesmo do furo que o ponto de gozo apresenta no campo do Outro, um giro de quarto de volta lhe coloca em condição de questionar, pelo Discurso da Histérica (onde encontramos o inconsciente em exercício), o significante mestre ao qual está subjugado. É assim que podemos dizer:
Jogo e julgo sob o jugo
Jogado, julgado, subjugado.
Sob a solta liberdade
Que salta soldada
Na meia-verdade
Da meia-palavra
Que sempre se diz
Nas ocasiões propícias
Às humanas sevícias.
Sob o jogo, julgo o jugo,
Subjugado sob a lei onde
É julgada a meia liberdade
Solta na meia-palavra.*
*Rennó Lima, C. "Como quem duvida". Ophicina de Arte e Prosa, Belo Horizonte, MG. 2004