Nosso tema agora será “A psicanálise ao avesso” e o texto que nos servirá de base é o Seminário XVII de Jacques Lacan – “O avesso da psicanálise”.
Vamos trabalhar por um tempo, este seminário seguindo os temas de suas lições, mas sem nos apegarmos a uma leitura minuciosa, como fizemos com o texto da “Direção do Tratamento”. Nosso objetivo será apreender a estrutura do discurso naquilo que ela ”ultrapassa em muito a da palavra” que é mais ou menos ocasional. Lacan fala de “um discurso sem palavras”. Seguiremos Lacan na sua dissertação sobre as relações fundamentais que os discursos estabelecem, sem deixar de marcar que eles não se sustentam fora da linguagem, pois é através desta que é possível estabelecer um “certo número de relações estáveis, no interior das quais pode se inscrever algo que é maior e vai mais longe do que as enunciações efetivas.”
Estas relações acontecem a partir da própria definição do significante como o que representa um sujeito para um outro significante.
Mas, estaríamos hoje em condições de sustentar estas relações a partir destas definições que até então sustentaram nossa prática? Estaríamos nós, psicanalistas, em condições de enfrentar os desafios deste novo século com as mesmas armas que até então sustentaram a nossa clínica, já que a cada dia novos sintomas se apresentam com velocidade própria do desenvolvimento que a ciência proporciona? Estariam as estruturas dos discursos vigentes em condições de nos dizer do “savoir faire” analítico ou será necessário retomar o caminho de Freud no que ele mesmo propõe de reinventar sempre como forma de fazer sobreviver a sua criação?
Enfim, estas e muitas outras perguntas estarão na nossa mesa de discussões. Vamos repassar as estruturas discursivas e coloca-las em questão a partir do que vivemos em nossa clínica, na expectativa de que assim fazendo poderemos relançar o vetor da psicanálise em direção ao futuro.
Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, em Comantaduba BA, Jacques-Alain Miller nos apresentou questões que vão na direção do que agora vamos tratar.
Para poder tornar isto mais claro vamos fazer um parêntese para tratar do que é a estrutura do discurso e quais os elementos que o vivificam.
Lacan denomina “quadripode” a topologia que sustenta a estrutura discursiva, no sentido que ela é matematizável, pois está sustentada em quatro pontos que se articulam entre si de forma estável e calculável. Esta estrutura se completa com a presença de alguns vetores que dizem de um sentido a ser respeitado, na medida em que os quatro lugares, as quatro pontas do tetraedro abrigam elementos que podem sofrer deslocamentos, ou giros.
Os lugares são: Semblante (o agente), Gozo (o Outro), mais de gozar (a produção) e a verdade.
O que vai dizer de cada discurso será o elemento que se coloca no lugar do agente, deixando claro que a sequência dos elementos também deve ser respeitada, a partir dos vetores que acabam por transformar este tetraedro em dois triângulos isósceles. Assim se constituem os quatro discursos:
Esta formalização só foi possível a partir da emergência do discurso analítico, com Freud. Lacan o coloca em último lugar como uma forma de dizer que é este que dá significado aos anteriores, pelo movimento de “nachtraglichkeit”. A sequência deles não deve ser tomada como uma cronologia, mas é importante salientar que a cada giro do discurso, a cada passagem de um discurso a outro, há a emergência do discurso analítico e que o amor é o signo de mudança de discurso. O que não é signo do amor é o gozo do Outro, aquele do Outro sexo e do corpo que o simboliza.
Vamos a Miller: O homem moderno, este que veio da agricultura onde os parâmetros da terra e da família eram um suporte e um limite, encontra-se hoje sem direção. A era industrial seria um ponto de virada, pois favorecida pelo desenvolvido da ciência pode colocar um novo ritmo na vida do sujeito que ultrapassava, em muito, o ritmo das estações do ano e do giro dos astros. Podemos dizer que “um novo astro foi instalado no céu da civilização”. Nestes tempos do “Outro que não existe”, assistimos, muitas vezes impotentes, ao progresso de um discurso hiper-moderno cuja estrutura é a mesma do discurso do analista: “A razão da desorientação dos psicanalistas de hoje deve-se à convergência entre a civilização hiper-moderna e o discurso analítico. A única diferença, continua Miller, é que na civilização atual os elementos do discurso da psicanálise estão dispersos.” Esta dispersão se deve a uma mudança no uso, podemos dizer assim, dos elementos que articulam este discurso.
O discurso do analista com seus elementos re-conceituandos a partir da hiper-modernidade fica assim estruturado:
“a” – objeto da ciência,
$ - o sujeito sustenta, ou melhor, tenta sustentar sua posição no campo do Outro, enquanto dividido.
S1 – resultado das avaliações que tentam higienizar a civilização, produzindo padrões de normalidade.
S2 – Filosofias que ensaiam uma leitura do homem hiper-moderno e que podem ser definidas por linhas tais como: cepticismo, niilismo e a linha perspectivista.
Quando Lacan escreveu o Seminário XVII, este que será nosso eixo, ele pensava que o discurso do analista era aquele que interpretava o discurso do Mestre, o discurso da civilização de seu tempo. Lembremos que este seminário foi escrito já sob os efeitos do movimento de maio de 1968, quando estudantes foram às ruas contestar o saber que lhes era imposto. No entanto, o que estamos vendo, de acordo com a leitura de JAMiller, é que o discurso da civilização não é mais o avesso mas sim o sucesso da psicanálise e, por incrível que pareça, sua maior ameaça. Sim, pois estamos assistindo a uma banalização tal que “a lâmina cortante da verdade freudiana” está sendo aplainada pelos efeitos da ciência. Podemos então alertar-nos enfaticamente dizendo que este “sucesso” é o fim da psicanálise. A relação da civilização com a psicanálise é da ordem da convergência. Eu diria: A peste foi tratada!
Examinando um pouco mais de perto esta convergência vamos verificar que, se a estrutura do discurso converge, há uma diferença fundamental entre os dois discursos: No discurso hiper-moderno, o que vemos é uma disjunção entre os elementos. Falta uma orientação que possa fazer dele “um discurso” que, sabemos, tem como função sustentar um laço social. Este laço só é possível quando primeiro se destaca a exterioridade do significante S1 em relação ao conjunto que se denomina Grande Outro (A). Este Grande Outro é onde vamos encontrar a bateria de significantes S2. A presença do S1, então, é concebida como uma intervenção “sobre uma bateria significante que não temos nunca o direito de toma-la como dispersa”, pois ali se supõe um campo já estruturado de um saber, ou seja, ali existe um sujeito que sabe se distinguir de um traço que o identifica como único.
A ausência deste traço tem produzido efeitos na psicanálise e explica a nostalgia que alguns psicanalistas apresentam em relação ao Nome-do-Pai levando-os a uma prática racional onde buscam fornecer significantes mestres a seus analisantes, na esperança de poderem reconstituir o inconsciente do “papai e mamãe” (S1 – S2). A estes podemos chamar de fundamentalistas psi. Outros, por sua vez, vão buscar na eternidade do inconsciente uma solução, já que aqui nada tem lugar. Assim vemos proliferar uma prática que enlaça religião e psicanálise com a promessa imaginária de uma paz que, sabemos, não advém jamais. Por fim, encontramos aqueles que buscam colocar a psicanálise no passo do progresso, tentando estabelecer uma aliança com o real da ciência. Estes se justificam pelos trabalhos de Freud com a metapsicologia e o dizer de Lacan sobre o real. No entanto, a estes interessa apenas que ao S1 advenha um S2, ou seja, que “isso caminhe!” (Ça Marche!). Estas três posições dizem respeito à sugestão, pois estão na trilha do S1, da reconstituição de uma identidade que não se sabe distinguir de um traço que identificaria como único.
Mas existe uma quarta posição, para mantermos nossa idéia do “quatro”, como única possibilidade de desenhar um espaço eqüidistante em nosso mundo. Esta possibilidade é a prática lacaniana que se sustenta no “último” Lacan. Aquele que coloca bem claro que na psicanálise há algo que fracassa. Este princípio é oposto a todos os outros, pois se sustenta no fato de que o “real é sem lei”, confirmando assim o axioma de Lacan da “não relação sexual”. O sucesso da psicanálise é contingente! Com esta perspectiva podemos sustentar que o matema (a $) diz de um mais de gozo, estado do corpo próprio assexuado que agencia um “isso fracassa” da relação sexual. Enquanto no discurso do analista há uma tentativa de enlaçar sentido e real, na sociedade hiper-moderna assistimos a uma cisão entre o sentido e o real, produzindo uma pulverização do sintoma que se reduz ao “toma” – desordem – e se espalha pelas páginas do DSM. A consequência disto é uma perda da verdade mentirosa do sintoma, a partir mesmo da desvalorização dos semblantes da própria psicanálise: (Complexo de Édipo e Castração).
O sintoma fica, então, dividido em suas duas vertentes. Por um lado temos o “toma”, o distúrbio que fica a cargo da biologia, da ciência; e por outro lado permanece um “sin”, um sentido que fica como resto que deve ser acompanhado através de um semblante de escuta ou controlado pela química. Estas atividades ficam a cargo do que se pode chamar uma autoridade protocolar. Em contra partida, sabemos que para a psicanálise o sintoma representa uma verdade para um sujeito. É algo que verifica o Real, por isso Lacan renova o sentido do sintoma ao trata-lo sob a égide de uma nova grafia: sinthoma. (Em francês fica: sinthome que é homófono a sentido do homem ou, como diz Lacan em “Televisão”: saint homme: santo homem.)
Frente a tudo isso o que a psicanálise lacaniana tem a propor pode ser resumido no seguinte: uma nova aliança entre a ciência e a psicanálise baseada na não-relação sexual.
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