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segunda-feira, 30 de maio de 2016

O “Campo Lacaniano”

Na lição 2 do Seminário XI: “O inconsciente freudiano e o nosso”, Lacan faz uma distinção, a partir mesmo do conceito de repetição, entre o inconsciente tal como Freud o desenvolveu a partir da escuta de seus pacientes, sustentado na palavra e nas formações do inconsciente, e o que foi desenvolvido a partir dos conceitos de sujeito e Real. Mantendo a função da falta como fundamental na estruturação do inconsciente, Lacan vai acrescentar, a partir de sua teorização em torno da lógica do significante, que o inconsciente está estruturado como uma linguagem o que “se relaciona a um campo que nos é muito mais acessível hoje que no tempo de Freud” . Este campo é constituído pelo “Unbegriff, que não é o “não conceito”, mas conceito da falta”, a partir do “Um da fenda, do traço, da ruptura”. Ele é o que vai abrir um caminho, junto com o desenvolvimento do conceito de objeto “a”, para constituir o que foi denominado como Campo Lacaniano: este campo que, sem dispensar a entropia necessária ao funcionamento do inconsciente freudiano, “instaura um outro campo energético, que necessitará de outras estruturas que aquelas da física, e que é o campo do gozo”. Campo este que, estruturado no para-além do princípio do prazer, sustenta-se também na repetição, mas enquanto “denotação precisa de um traço que foi retirado do texto de Freud, como idêntico ao traço unário, a um pequeno elemento da escritura, a um traço na medida em que ele comemora uma irrupção de gozo” . 
 No Seminário XVII Lacan vai desenvolver esses conceitos ao longo do capítulo V. Em primeiro lugar ele deixa claro, mais uma vez que, se por um lado a referência ao discurso implica uma vontade de mestria, de dominação, quem se autoriza analista deve enfrentar as tendências a escorregar por aí, se pretende sustentar o discurso do analista, pois “ele deve se encontrar em oposição, pelo menos confessada, a toda vontade de dominação”. É exatamente isso que faz com que o mais subversivo do discurso lacaniano seja sua não pretensão em produzir soluções: aliás, ele destaca desde sempre, e isso também está muito bem desenvolvido no Seminário XI, que “só existe causa no que falta”. Sustentado nisto, Miller nos lembra, em seu Seminário de Comandatuba, que “a prática lacaniana opera na dimensão da falha”, ou seja, no discurso analítico, “o mais de gozar (aqui colocado como causa) comanda um “isso fracassa”, e, precisamente, “isso fracassa” na ordem sexual.”    
Tudo isso nos faz recordar que, a estrutura aponta para o que, no discurso inaugural, aqui desenhado como Discurso do Mestre, o lugar da produção está habitado por este resto, isso que denota a falta por onde o sentido foge, escapa, como no Barril das Danaïdes (“O gozo é o barril das Danaïdes, e uma vez que aí se entra, não se sabe até onde isso vai. Começa com uma cosquinha e termina por inflamar a essência”.) Ponto que faz referência ao gozo, ponto que se abre para este Campo que necessita, como já se disse mais acima, uma outra referência que não as que se está  acostumado a lidar, já que aí se contesta todo movimento de apaziguamento. Importante lembrar que o significante, enquanto tal, mostra-se incapaz de submeter o gozo, limitando-se a enlaça-lo em sua rede. Este ponto de fuga do sentido abre espaço para que se possa continuar questionando, com Freud, o que ele tão bem explicita quando diz que o sujeito não sabe o que diz, como também “ele não sabe quem o diz” .
Freud insistiu em dizer que o discurso emerge nesse ponto onde algo se repete, retorna, insiste e escapa. No entanto, quando ele teve que se defrontar, na clínica, com a sexualidade feminina, ele abandonou a insistência na redução econômica do gozo, mascarando-o e deixando em aberto a questão: “o que quer uma mulher”. Uma mulher quer gozar, é a resposta que Lacan construiu, diferenciando-a da histérica.
Mas, se por um lado Freud mascarou o gozo, nem por isso ele fez algo que eliminasse o “fio cortante” de sua verdade. Os que a ele se seguiram, no entanto, tentaram fazê-lo e, como vacina à peste, inventaram um “Ego autônomo” que poderia traduzir-se em uma área livre de conflitos e assim, promover um retorno ao discurso do Mestre, onde o que só interessa é que “isso caminhe”. A felicidade tornou-se o objetivo e tanto mais quanto se está inserido em uma cultura onde o pragmatismo era e ainda é a única possibilidade diante do não saber inscrito no Real. A consequência deste “way of life” está escrita na forma como a política do “ser como todo mundo” ditava as “normas”. Reinado do Falo como o que poderia aproximar-nos da forma mais perfeita do gozo: o orgasmo masculino. Lacan, no entanto, de uma forma irônica nos diz que se o falo é feliz, não podemos dizer a mesma coisa daquele que o possui. 
Neste ponto surge a expectativa de poder esclarecer a função do falo nesta passagem que é o eixo deste capítulo V: “...o que nos interessa na investigação analítica, é saber como, em suplência à interdição do gozo fálico, aporta-se algo do qual definimos sua origem como sendo de outra natureza que a do gozo fálico, aquela que está situada, e se pode dizer, enquadrada, na função do mais de gozar” . Mais à frente Lacan vai insistir nesta mesma direção ao nos dizer que “é em torno do falo que todo o jogo gira”, pois, “só existe o falo nas relações sexuais. O que existe de privilegiado, concernente à este órgão, é que de "qualquer modo, pode-se muito bem isolar seu gozo”, o gozo que o parasita.
(Continua)

terça-feira, 3 de maio de 2016

“Verdade, irmã do gozo”

Em seu Seminário XVII "A Psicanálise ao Avesso", Jacques Lacan nos apresenta uma lição que foi nomeada por Jacques Alain-Miller com uma afirmação intrigante: “Verdade, irmã do gozo”. A partir de alguns fragmentos desta lição e do que Miller nos apresenta em seu Seminário “A natureza do semblante” - mais especificamente na lição XV quando ele fala do “objeto a, entre a verdade e o gozo” - pôde-se acompanhar o que Lacan disse deste “parentesco”. 
No Seminário XVII existe uma afirmação que é familiar até mesmo aos que não trabalham com a psicanálise: “a verdade não é, mesmo no nosso contexto, de acesso fácil”. Estando muitas vezes à flor da pele, ela se apresenta como esquecida no que se diz e, portanto, se sustenta no significante, na medida em que “ele não concerne ao objeto”. O significante, nos diz Lacan, “não diz respeito ao objeto, mas ao sentido”. Neste aspecto, o sujeito da frase nada mais tem a sustenta-lo que o sentido que desliza sob esta frase, e que está encarregado de traduzir a insustentável leveza do ser que ali se apresenta enquanto falta. O peso do ser  encontra-se no não sentido, no que falha das formações do inconsciente, do sintoma, do sonho quando este se interrompe no momento mesmo onde uma verdade poderia surgir, para que o sujeito continue dormindo e sonhando. Ali, talvez, possa ser localizada a verdade enquanto habitando o espaço do inter-dito das frases, dos sonhos, no ato falho, etc. 
Uma relação importante se estabelece neste ponto: a verdade ameaça surgir onde a angústia, este afeto que não mente, se manifesta dizendo da presença do objeto. A angústia, lembro-lhes, não é sem objeto.
Lacan, mais adiante neste seminário, vai afirmar que “a nossa verdade parece bem nos ser estrangeira. Ela está conosco, sem dúvida, mas sem nos concernir de tal forma que se quer bem dize-la”. 
O percurso feito em torno da contribuição de Wittgenstein merece destaque neste capítulo. Apesar disto vamos resumi-lo dizendo apenas que uma verdade depende da implicação de uma asserção que se anuncia como verdadeira, deixando claro que não existe uma metalinguagem que poderia justifica-la. Este espaço de não existência de uma metalinguagem, ou seja, não existe um Outro do Outro, é aquele que, eventualmente, pode ser ocupado pelo canalha: “toda canalhice repousa em querer ser o Outro de alguém, ali mesmo onde se desenham as figuras onde seu desejo será captado”.
Verdade e desejo se articulam, portanto, na medida em que “não há sentido senão o do desejo”, aquele que corre sob a barra do significante e que esconde a verdade da falta e propícia um gozo do sentido (jouis-sens). Por isso, pelos efeitos mesmo do significante, é que se pode dizer que a verdade enquanto tal, só se articula em saber. O discurso do Mestre nos ajuda nesta articulação ao apresentar uma estrutura aonde um significante representa um sujeito para um outro significante que, enquanto saber, se sustenta da falta a ser que o habita. Em outras palavras, o “não saber” é o quadro onde o saber se estrutura. 
A verdade, portanto, “é inseparável dos efeitos da linguagem”. Ela está presa nas suas malhas e ali se faz presente e “só se encontra fora de toda proposição”, no entre, “na implicação entre proposições”. “Dizer que a verdade é inseparável dos efeitos de linguagem tomados como tal, é incluir aí o inconsciente”. 
Freud, num toque de genialidade, estabeleceu o lugar da verdade exatamente onde a “coisa estranha” (unglauben) se apresenta e, para melhor apreender o que este “estranho” esconde é preciso confiar no que diz o paciente. Baseando-se nisto, Lacan procurou estruturar uma teoria que, no princípio, se sustentou no que de verdade pode estar sendo dito pelas formações do inconsciente: “Moi, la verité, je parle!” No Seminário XVII, Lacan esclarece a natureza deste “je”: um “je” inominável que não precisa de nenhuma continuidade para se multiplicar em atos.
Mas, para Lacan, a verdade se esgota em querer dizer-se pela palavra, já que existe uma incompatibilidade estrutural neste ponto. Dize-la toda é impossível e, na sua relação com o desejo, pode-se perceber que, mesmo articulada na linguagem, ela não pode articular-se na palavra. Permanece esquecida por detrás do dito. 
A fórmula utilizada por Freud para dar conta desta articulação da verdade é encontrada na elaboração da fantasia fundamental em uma análise. O exemplo paradigmático: “bate-se numa criança”, demonstra que a reconstituição do estádio intermediário é o que vai colocar a céu aberto a relação do sujeito com a sua verdade. A figura que aparece sem figuração “assegura a função, dá lugar, ao gozo” que sustenta a fantasia na cena que estrutura em imagens os significantes primordiais do sujeito.
Este espaço entre duas assertivas: Uma criança está sendo espancada e Alguém (O grande Outro) bate em uma criança, nos abre a possibilidade de verificarmos a relação entre a verdade e o gozo. Colocados entre dois significantes (S1 – S2), o sujeito e o objeto dizem de um sentido e de um resto que permanece fora do significante impossibilitando a articulação total, tanto da verdade quanto do gozo, na palavra. Afinal, se é possível dizer, com Lacan que “nascemos do mais de gozar, resultado do emprego da linguagem”, podemos dizer que “A linguagem nos impregna e é por aí que 'isso' goza”. 
Lacan trabalha na quarta parte desta lição a relação entre o gozo e verdade utilizando-se do Sade teórico. Ele parte do princípio que Sade ama a verdade. Ele não quer salvá-la, ele apenas a ama e por isso a recusa e, neste movimento mesmo de recusa-la ele consegue, por pequenos meios, alcançar o gozo. Através destes pequenos meios ele vai alcançar o que podemos denominar “resíduos dos efeitos de linguagem” a partir “da entropia do mais de gozar”(...). É nestes “pequenos meios” que encontramos a presença de uma verdade fora do discurso que se define como sendo “a irmã do gozo interdito.” 
Esta solução é assim matemizada por Miller no texto a que me referi no início: gozo/verdade: o gozo no lugar da verdade. Em Radiofonia, Lacan explicita esta passagem ao propor uma nova chave para compreender a nova forma de trabalhar a metonímia do desejo: ali onde se esperava a verdade, encontramos o gozo. Isto modifica o que até então estava sendo proposto: uma definição da metonímia a partir do gozo (jouis-sens) e não de um sentido prévio ou de uma verdade implantada no inconsciente. 
Uma nova leitura da compulsão à repetição é o que acontece nesta passagem da ênfase na verdade para a ênfase no gozo: num primeiro momento a verdade era a razão da repetição, repetição do sintoma que se apresentava como uma verdade escondida esperando ser decifrada, uma verdade que “clama no deserto da ignorância”, uma verdade que quer dizer algo e que se estrutura na demanda. 
Mas, já desde o princípio, Lacan recusava a definição da verdade como a adequação entre a representação e a coisa. Ele sempre a definiu, ao contrário, por “sua inadequação a tudo o que seria da ordem das coisas”; como estando entre linhas, ali onde a significação não dá conta de dizer tudo sobre o que acontece quando um significante rasga o Real inscrevendo seu traço. A teorização sobre o objeto, primeiro enquanto metonímico, depois enquanto mais de gozar é que vai leva-lo a revisar sua teoria e colocar o gozo no lugar da verdade. Ambos, verdade e gozo não se articulam na palavra. Se em um momento foi possível ensaiar um final de análise a partir da verdade que deve ser construída, e a questão do ser e do ter marcaria uma reconciliação com o falo (ter ou não ter em lugar de sê-lo, como está proposta ao final do texto “A direção do tratamento...”), foi preciso criar uma nova possibilidade de saber do objeto que permanece fora do sentido. Foi então que buscou uma possibilidade a partir de passar para além da fantasia fundamental na esperança de liberar a metonímia do desejo para além dos limites do círculo fechado da fantasia, desta interpretação primeira do desejo do Outro. Mas, seja lá como for, a impossibilidade de dizer, em palavras, a verdade do desejo e do gozo, continuou trazendo questões. Partindo desta impossibilidade, nos diz Miller, Lacan inventou o passe, que “se situa exatamente nesta separação entre o inarticulado e o articulado”. Uma forma de poder detectar, na transmissão indireta (passadores) o desejo que permanece articulado na linguagem, ou seja, “verifica-lo a partir da estrutura da linguagem e não do ato da fala”. O passe coloca entre parênteses o ato da fala, o convencimento, que somente tem valor no presente, pois “borra este ato para destacar a estrutura da linguagem, onde pode ser que o desejo – do analista no caso do passe – se encontre articulado.”
Importante, portanto, destacar que o objeto “a”, inventado por Lacan, está situado exatamente nesta conjunção entre o inarticulado da palavra e o articulado da linguagem. 
As estruturas dos discursos, nesta linha de pensamento, são as formas como se pode demonstrar a articulação do objeto “a” em uma estrutura de linguagem. O Discurso da Histérica é que melhor vai nos dizer deste “parentesco” entre Verdade e Gozo. Ali se verifica que há muito tempo Lacan trabalhava com esta hipótese: verdade, irmã do gozo. Neste discurso encontramos “a verdade como rechaço do saber, retorno do saber, ou retorno rechaçado do saber que aparece em posição homóloga a um gozo que somente se inscreve como resto”. Aqui se pode, então, concluir o que estamos buscando articular: O parentesco entre a verdade e gozo é o objeto “a” que permite esclarecer: é ele que nomeia o gozo em posição de rechaçado, de não absorvido, escrevendo-se como resto irredutível com respeito ao saber, com respeito ao significante e sua articulação. O discurso histérico é mais privilegiado que o discurso analítico para nos dizer desta articulação, já que ali se constata que o mais de gozar inscreve-se no lugar da verdade.
Miller nos esclarece que: “se a verdade fica do lado do semblante e o gozo do lado do real, o objeto ‘a’ é o que une – e especialmente no discurso que Lacan chama da histérica, onde a verdade é o gozo”.

Para concluir vamos dizer com Miller, que “o discurso analítico é onde o “a” se declara semblante e, por isso se descobre que, como tal, está em condições de satisfazer a verdade. Contrariamente ao que Lacan formulou antes do Avesso da Psicanálise, o “a” como semblante está em seu lugar quando é semblante. Neste sentido, é exatamente um semblante de Real, um Real com estrutura de ficção, até o ponto em que Lacan pode definir o sintoma mesmo como um modo de gozar da verdade.”