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terça-feira, 3 de maio de 2016

“Verdade, irmã do gozo”

Em seu Seminário XVII "A Psicanálise ao Avesso", Jacques Lacan nos apresenta uma lição que foi nomeada por Jacques Alain-Miller com uma afirmação intrigante: “Verdade, irmã do gozo”. A partir de alguns fragmentos desta lição e do que Miller nos apresenta em seu Seminário “A natureza do semblante” - mais especificamente na lição XV quando ele fala do “objeto a, entre a verdade e o gozo” - pôde-se acompanhar o que Lacan disse deste “parentesco”. 
No Seminário XVII existe uma afirmação que é familiar até mesmo aos que não trabalham com a psicanálise: “a verdade não é, mesmo no nosso contexto, de acesso fácil”. Estando muitas vezes à flor da pele, ela se apresenta como esquecida no que se diz e, portanto, se sustenta no significante, na medida em que “ele não concerne ao objeto”. O significante, nos diz Lacan, “não diz respeito ao objeto, mas ao sentido”. Neste aspecto, o sujeito da frase nada mais tem a sustenta-lo que o sentido que desliza sob esta frase, e que está encarregado de traduzir a insustentável leveza do ser que ali se apresenta enquanto falta. O peso do ser  encontra-se no não sentido, no que falha das formações do inconsciente, do sintoma, do sonho quando este se interrompe no momento mesmo onde uma verdade poderia surgir, para que o sujeito continue dormindo e sonhando. Ali, talvez, possa ser localizada a verdade enquanto habitando o espaço do inter-dito das frases, dos sonhos, no ato falho, etc. 
Uma relação importante se estabelece neste ponto: a verdade ameaça surgir onde a angústia, este afeto que não mente, se manifesta dizendo da presença do objeto. A angústia, lembro-lhes, não é sem objeto.
Lacan, mais adiante neste seminário, vai afirmar que “a nossa verdade parece bem nos ser estrangeira. Ela está conosco, sem dúvida, mas sem nos concernir de tal forma que se quer bem dize-la”. 
O percurso feito em torno da contribuição de Wittgenstein merece destaque neste capítulo. Apesar disto vamos resumi-lo dizendo apenas que uma verdade depende da implicação de uma asserção que se anuncia como verdadeira, deixando claro que não existe uma metalinguagem que poderia justifica-la. Este espaço de não existência de uma metalinguagem, ou seja, não existe um Outro do Outro, é aquele que, eventualmente, pode ser ocupado pelo canalha: “toda canalhice repousa em querer ser o Outro de alguém, ali mesmo onde se desenham as figuras onde seu desejo será captado”.
Verdade e desejo se articulam, portanto, na medida em que “não há sentido senão o do desejo”, aquele que corre sob a barra do significante e que esconde a verdade da falta e propícia um gozo do sentido (jouis-sens). Por isso, pelos efeitos mesmo do significante, é que se pode dizer que a verdade enquanto tal, só se articula em saber. O discurso do Mestre nos ajuda nesta articulação ao apresentar uma estrutura aonde um significante representa um sujeito para um outro significante que, enquanto saber, se sustenta da falta a ser que o habita. Em outras palavras, o “não saber” é o quadro onde o saber se estrutura. 
A verdade, portanto, “é inseparável dos efeitos da linguagem”. Ela está presa nas suas malhas e ali se faz presente e “só se encontra fora de toda proposição”, no entre, “na implicação entre proposições”. “Dizer que a verdade é inseparável dos efeitos de linguagem tomados como tal, é incluir aí o inconsciente”. 
Freud, num toque de genialidade, estabeleceu o lugar da verdade exatamente onde a “coisa estranha” (unglauben) se apresenta e, para melhor apreender o que este “estranho” esconde é preciso confiar no que diz o paciente. Baseando-se nisto, Lacan procurou estruturar uma teoria que, no princípio, se sustentou no que de verdade pode estar sendo dito pelas formações do inconsciente: “Moi, la verité, je parle!” No Seminário XVII, Lacan esclarece a natureza deste “je”: um “je” inominável que não precisa de nenhuma continuidade para se multiplicar em atos.
Mas, para Lacan, a verdade se esgota em querer dizer-se pela palavra, já que existe uma incompatibilidade estrutural neste ponto. Dize-la toda é impossível e, na sua relação com o desejo, pode-se perceber que, mesmo articulada na linguagem, ela não pode articular-se na palavra. Permanece esquecida por detrás do dito. 
A fórmula utilizada por Freud para dar conta desta articulação da verdade é encontrada na elaboração da fantasia fundamental em uma análise. O exemplo paradigmático: “bate-se numa criança”, demonstra que a reconstituição do estádio intermediário é o que vai colocar a céu aberto a relação do sujeito com a sua verdade. A figura que aparece sem figuração “assegura a função, dá lugar, ao gozo” que sustenta a fantasia na cena que estrutura em imagens os significantes primordiais do sujeito.
Este espaço entre duas assertivas: Uma criança está sendo espancada e Alguém (O grande Outro) bate em uma criança, nos abre a possibilidade de verificarmos a relação entre a verdade e o gozo. Colocados entre dois significantes (S1 – S2), o sujeito e o objeto dizem de um sentido e de um resto que permanece fora do significante impossibilitando a articulação total, tanto da verdade quanto do gozo, na palavra. Afinal, se é possível dizer, com Lacan que “nascemos do mais de gozar, resultado do emprego da linguagem”, podemos dizer que “A linguagem nos impregna e é por aí que 'isso' goza”. 
Lacan trabalha na quarta parte desta lição a relação entre o gozo e verdade utilizando-se do Sade teórico. Ele parte do princípio que Sade ama a verdade. Ele não quer salvá-la, ele apenas a ama e por isso a recusa e, neste movimento mesmo de recusa-la ele consegue, por pequenos meios, alcançar o gozo. Através destes pequenos meios ele vai alcançar o que podemos denominar “resíduos dos efeitos de linguagem” a partir “da entropia do mais de gozar”(...). É nestes “pequenos meios” que encontramos a presença de uma verdade fora do discurso que se define como sendo “a irmã do gozo interdito.” 
Esta solução é assim matemizada por Miller no texto a que me referi no início: gozo/verdade: o gozo no lugar da verdade. Em Radiofonia, Lacan explicita esta passagem ao propor uma nova chave para compreender a nova forma de trabalhar a metonímia do desejo: ali onde se esperava a verdade, encontramos o gozo. Isto modifica o que até então estava sendo proposto: uma definição da metonímia a partir do gozo (jouis-sens) e não de um sentido prévio ou de uma verdade implantada no inconsciente. 
Uma nova leitura da compulsão à repetição é o que acontece nesta passagem da ênfase na verdade para a ênfase no gozo: num primeiro momento a verdade era a razão da repetição, repetição do sintoma que se apresentava como uma verdade escondida esperando ser decifrada, uma verdade que “clama no deserto da ignorância”, uma verdade que quer dizer algo e que se estrutura na demanda. 
Mas, já desde o princípio, Lacan recusava a definição da verdade como a adequação entre a representação e a coisa. Ele sempre a definiu, ao contrário, por “sua inadequação a tudo o que seria da ordem das coisas”; como estando entre linhas, ali onde a significação não dá conta de dizer tudo sobre o que acontece quando um significante rasga o Real inscrevendo seu traço. A teorização sobre o objeto, primeiro enquanto metonímico, depois enquanto mais de gozar é que vai leva-lo a revisar sua teoria e colocar o gozo no lugar da verdade. Ambos, verdade e gozo não se articulam na palavra. Se em um momento foi possível ensaiar um final de análise a partir da verdade que deve ser construída, e a questão do ser e do ter marcaria uma reconciliação com o falo (ter ou não ter em lugar de sê-lo, como está proposta ao final do texto “A direção do tratamento...”), foi preciso criar uma nova possibilidade de saber do objeto que permanece fora do sentido. Foi então que buscou uma possibilidade a partir de passar para além da fantasia fundamental na esperança de liberar a metonímia do desejo para além dos limites do círculo fechado da fantasia, desta interpretação primeira do desejo do Outro. Mas, seja lá como for, a impossibilidade de dizer, em palavras, a verdade do desejo e do gozo, continuou trazendo questões. Partindo desta impossibilidade, nos diz Miller, Lacan inventou o passe, que “se situa exatamente nesta separação entre o inarticulado e o articulado”. Uma forma de poder detectar, na transmissão indireta (passadores) o desejo que permanece articulado na linguagem, ou seja, “verifica-lo a partir da estrutura da linguagem e não do ato da fala”. O passe coloca entre parênteses o ato da fala, o convencimento, que somente tem valor no presente, pois “borra este ato para destacar a estrutura da linguagem, onde pode ser que o desejo – do analista no caso do passe – se encontre articulado.”
Importante, portanto, destacar que o objeto “a”, inventado por Lacan, está situado exatamente nesta conjunção entre o inarticulado da palavra e o articulado da linguagem. 
As estruturas dos discursos, nesta linha de pensamento, são as formas como se pode demonstrar a articulação do objeto “a” em uma estrutura de linguagem. O Discurso da Histérica é que melhor vai nos dizer deste “parentesco” entre Verdade e Gozo. Ali se verifica que há muito tempo Lacan trabalhava com esta hipótese: verdade, irmã do gozo. Neste discurso encontramos “a verdade como rechaço do saber, retorno do saber, ou retorno rechaçado do saber que aparece em posição homóloga a um gozo que somente se inscreve como resto”. Aqui se pode, então, concluir o que estamos buscando articular: O parentesco entre a verdade e gozo é o objeto “a” que permite esclarecer: é ele que nomeia o gozo em posição de rechaçado, de não absorvido, escrevendo-se como resto irredutível com respeito ao saber, com respeito ao significante e sua articulação. O discurso histérico é mais privilegiado que o discurso analítico para nos dizer desta articulação, já que ali se constata que o mais de gozar inscreve-se no lugar da verdade.
Miller nos esclarece que: “se a verdade fica do lado do semblante e o gozo do lado do real, o objeto ‘a’ é o que une – e especialmente no discurso que Lacan chama da histérica, onde a verdade é o gozo”.

Para concluir vamos dizer com Miller, que “o discurso analítico é onde o “a” se declara semblante e, por isso se descobre que, como tal, está em condições de satisfazer a verdade. Contrariamente ao que Lacan formulou antes do Avesso da Psicanálise, o “a” como semblante está em seu lugar quando é semblante. Neste sentido, é exatamente um semblante de Real, um Real com estrutura de ficção, até o ponto em que Lacan pode definir o sintoma mesmo como um modo de gozar da verdade.”

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