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quarta-feira, 22 de junho de 2016

Mais Além do Édipo


A última postagem destacou a importância do conceito de Falo e sua função na partição sexual e chamou a atenção para a questão da feminilidade e as consequências das elaborações lacanianas em torno deste tema, para fazer avançar a teoria psicanalítica. Agora abre-se um novo capítulo: o "mais-além do Édipo. Este "mais-além", Miller o destaca como sendo o Passe de Lacan, pois aqui se define uma passagem que vai mais além de Freud. Uma passagem que se aproveita, exatamente, da brecha que permaneceu aberta na teorização freudiana com respeito a este resto que insiste, que não é absorvido pelo Édipo e que a feminilidade aponta. Este resto que instaura um campo mais além daquele que se estrutura como uma linguagem, "este outro campo energético, que necessitará de outras estruturas diferentes daquelas da física e que é o campo do gozo".
 Para levar esta tarefa adiante será importante uma chave de leitura que, aparentemente, é muito simples: o mais-além do Édipo explicita-se pela passagem do Discurso do Mestre ao Discurso do Analista. Nesta passagem ficam claros pelos menos dois pontos: a função paterna e a função do falo. 
Para melhor fazer este trajeto vou convidar, primeiramente, Eric Laurent a me auxiliar. Retomo um texto seu que tem como título: "O neurótico pode dispensar o pai?". Laurent nos lembra que um para-além do Édipo se apresenta no ensino de Lacan nos momentos em que ele elabora a "doutrina clássica da relação do sujeito ao falo". A data que ele propõe para o início desta elaboração coincide, a meu ver, com a constatação de Lacan de que a sua proposta de um retorno a Freud a partir da função da fala e do campo da linguagem - trabalhando o inconsciente como uma verdade a ser decifrada a partir do enigma do sintoma - deixava lacunas visíveis na prática analítica. Esta lacuna explicita-se no fato de que o significado não recobre todo o espaço aberto pelo significante. Esta data é 1958, data de sua elaboração sobre a doutrina do falo. É desta época textos tais como "A direção do tratamento", "o Seminário V - As formações do inconsciente" - e o texto sobre a "Significação do falo".  A elaboração da doutrina do falo é marcada pela re-elaboração da metáfora paterna tal como foi desenvolvida no texto "De uma questão preliminar...". 
A metáfora paterna foi construída para dar conta da resolução freudiana do Édipo, ou seja, o Édipo teria sua resolução no Complexo de castração, com a produção do significante Falo que sustentaria o conjunto de todos os significantes possibilitando a criação de um sentido. Este sentido estaria definido como uma possível saída da análise. Pelo menos foi assim que, ao final do texto "A direção do tratamento...", Lacan nos diz: "Homem de desejo, de um desejo que ele acompanhou a contragosto pelos caminhos onde ele se mira no sentir, no dominar e no saber, mas do qual soube desvendar, somente ele, qual um iniciado nos antigos mistérios, o significante ímpar: esse falo o qual recebê-lo e dá-lo são igualmente impossíveis para o neurótico, quer ele saiba que o Outro não o tem ou que o tem, pois, em ambos os casos, seu desejo está alhures - em sê-lo -, e porque é preciso que o homem, macho ou fêmea, aceite tê-lo e não tê-lo, a partir da descoberta que não o é".
No entanto, nos lembra Laurent, o Seminário "As formações do inconsciente" procura dar conta das dificuldades encontradas por Freud no que concerne esta passagem fundamental para a mulher, da mãe como objeto primordial ao pai como objeto de amor. É isso que marca, na metáfora paterna, a elisão do desejo da mãe para dirigir-se ao pai. Este foi um tema que muito ocupou Lacan e, como se disse acima, acaba por abrir-lhe as portas ao mais-além do Édipo. 
Discutindo as aporias que a castração na mulher apresenta, Lacan destaca um dado suplementar ao complexo de castração freudiano. Trata-se do conceito de privação, ou seja, o que passou despercebido pelos comentadores de Freud foi que na passagem, na substituição da mãe ao pai, o desejo da criança, de início dirigido à mãe, não é mais o mesmo quando se dirige ao pai. Algo fica esquecido na passagem de um ao outro, ou seja, esquece-se que, ao dirigir-se ao pai demanda-se um objeto que não tem outra existência senão a de poder ser demandado. Em outras palavras, trata-se de um objeto que está inteira e estritamente contido na demanda e definido como um objeto impossível: "desejo elevado á potência da demanda e inteiramente reduzido a ela".  É verdade que Lacan, aqui, está sustentado no binário que comandou o seu ensino naqueles anos: demanda e desejo, mas nem por isto não deixa de ser importante retoma-lo deste ponto para esclarecer que tudo não se resume apenas a papai e mamãe. A privação - privação do desejo - nos diz Lacan, aponta para o fato de que o importante não é que seja algo de real, mas que o sujeito visa alguma coisa que só pode ser demandada. Laurent assim explicita esta passagem: "de um lado, a mãe como objeto primordial a quem vão ser dirigidas as demandas e de onde surge um desejo, de outro lado o pai e a demanda da criança na medida em que ela só pode ser recusada. (...) O resultado desta operação, desta recusa, é que há a produção de um pai idealizado de um lado e a castração de outro". 
Este vai ser o eixo da retomada por Lacan do caso Dora, no Seminário XVII. O fato de Freud não ter conseguido fornecer à teoria da feminilidade nada mais do que o "Penisneid" o impediu de p. ex., levar o caso Dora adiante, pois ele não trabalhou com o que resta da operação edípica e que não se resolve pela saída fálica. Esta solução diz da permanência do discurso do mestre que, como bem lembra Lacan pode ser aproximado ao capitalista no que diz respeito ao processo de acumulação: "a presença mesma do mais de gozar à exclusão do gozar simples, o gozar que se realiza na copulação simples e pura". 
Insistir no "Penisneid" é permanecer na "censura que a filha faz à mãe por não tê-la criado menino, quer dizer, reportando à mãe, na forma de frustração, aquilo que, em sua essência significativa - e tal que esta dá seu lugar e sua função viva ao Discurso da histérica em relação ao Discurso do mestre -, se desdobra em castração do pai idealizado, que entrega o segredo do mestre por um lado e, pelo outro, privação, assunção pelo sujeito, feminino ou não, do gozo de ser privado". 
Lacan vai retomar neste Seminário XVII esta questão do complexo de castração na menina e generalizá-lo para poder reconsiderar o estatuto do sujeito e do pai. Desta forma será possível ler a posição feminina de Dora como aquela que quer fazer valer o que causa seu desejo, ali, onde está o pai. 
Re-examinando o segundo sonho de Dora, Lacan esclarece que, ao invés de render-se no túmulo do pai morto, Dora vai folhear o dicionário que traz o saber como meio de gozo. Laurent no diz que este foi o ponto onde Dora quis chegar, pois indo ver Freud o que ela obteve foi a satisfação de fazer valer sua verdade, ou seja fez com que sua verdade chegasse aos outros. O "dicionário" traduz a transformação da verdade em saber transmissível. Em outras palavras: este saber visa o lugar do pai, não como morto, não como idealizado, mas enquanto apreendido por sua causa sexual.

Pode-se, portanto, examinar o Édipo a partir da privação, ou seja, apreender o pai a partir da causa e não como mestre, pois o mestre é por estrutura castrado.

terça-feira, 7 de junho de 2016

O "Campo Lacaniano" (II)

Para levar adiante nossa elaboração e assim definir o Campo Lacaniano, retomo aqui a revisão que Lacan faz de sua teoria do falo e do objeto quando trabalha os conceitos fundamentais freudianos. Ele vai "se referir diretamente à experiência de gozo como sendo o verdadeiro enigma. No momento em que o sentido se ausenta do mundo, o sujeito é deixado vazio de significação, invadido por esta presença que é a experiência de gozo. Enigma fundamental  para o ser falante, ele nada tem a ver com a liberação das alegrias do sexo". Este deslocamento do sentido e sua fuga para a experiência do gozo, só foi possível à medida que Lacan foi, passo a passo, deixando de lado a formalização onde o Simbólico se apresenta recobrindo todo o Imaginário, a partir mesmo da barra do algoritmo S/s, para estabelecer que na relação do Simbólico com o Real o que está em jogo é um corte que deixa um resto.
Ora, esta solução encontrada por Lacan e que estrutura, basicamente, a relação do sujeito e do objeto vai nos dizer que o que existe fundamentalmente é uma falta, "que é efeito do significante e que à falta devido ao efeito mortificante do significante responde este elemento de vida, este elemento de gozo vivo que é o objeto pequeno a (...) que tem a necessidade, em Freud, do conceito de pulsão".
Esta articulação entre objeto 'a' e pulsão é fundamental para darmos mais um passo que vai desembocar no conceito de falo, uma vez que é exatamente do lado deste conceito que está o complemento de vida a que faz alusão J-A. Miller na citação acima. Conceito que, desde a antiguidade, até nossos dias, se apresenta como a grande imagem do fluxo vital. "Por isso Lacan pode dizer aqui, nos lembra Miller, que o vivo do ser do sujeito encontra seu significante no falo". O paradoxo do falo se constitui exatamente no fato de ele ser, por um lado o que está pressuposto significar a vida, mas, sendo um significante, haver nele algo da morte.
O falo é o significante que marca a conjunção do logos e do desejo, da morte e da vida,da refenda do sujeito a partir da diferença que resulta da subtração do "incondicionado da demanda" à "condição absoluta do desejo”. Este fato vai estabelecer um "campo feito para que aí se produza o enigma que a relação provoca no sujeito ao lhe “significar" de maneira dupla: retorno da demanda que ele suscita, em demanda sobre o sujeito do desejo....". 
No seminário "As Formações do Inconsciente" no capítulo intitulado “O desejo e o gozo”, nos deparamos com o que podemos chamar de vestimentas fálicas, as roupagens com que se apresentam os sujeitos diante do real do sexo. Sabemos que o que vai caracterizar a posição perversa como recusa da mediação simbólica, ou até mesmo diante da falha no simbólico [S(A/)], é uma extrema valorização da imagem: "trata-se de uma projeção disso que não se cumpriu na ordem simbólica, sobre o eixo imaginário". 
A questão do falo sempre foi, pôde-se dizer, enigmática. Lacan, em seu Seminário VI, p. ex. atribuía a função de enigma "ao desejo como um x que desliza metonimicamente", enquanto o falo, sendo o significante do desejo, é o que não pode ser atingido, porque "o falo ... é uma sombra (...) escorregando sempre entre os dedos".
Já no Seminário RSI Lacan retoma esta temática do falo para nos dizer, mais uma vez, do seu caráter essencialmente cômico. Após dizer que no horizonte de um menos e de um mais é onde se insere o gozo, ele assinala neste ponto ideal, que é o falo, a essência do cômico no ser falante: "desde que se fale algo que tenha uma relação ao falo, é o cômico - que nada tem a ver com o chiste. O falo é cômico como todos os cômicos - triste".  Esta citação de Lacan se articula, a meu ver, com o que ele mesmo disse 20 anos antes: "A comédia, podemos dize-la como sendo a representação do fim da refeição comunitária a partir da qual a tragédia mesma foi evocada".
O enigma não faz referência à condição do falo enquanto um significante puro e simples, mas sim à letra, suporte material do significante, suporte, portanto, da interpretação e do que mantém a borda do buraco do Simbólico. É este buraco que vai produzir a fuga do sentido ao furar o texto. Este furo, este buraco do Simbólico que Lacan adjetiva de inviolável  tem, entre suas várias virtudes, a de fazer enigma mantendo o interesse pela escritura e conferindo um poder à quem sabe decifra-lo.