A Pulsão, assim como o conceito de Desejo do Analista, cunhado por Lacan , é um conceito limítrofe. Ele se apresenta no ponto de junção e disjunção, de união e de fronteira. A pulsão, entre o somático e o psíquico. O desejo do analista, entre o desejo e a demanda.
A pulsão é um conceito inventado por Freud para dar conta de sua clínica e fazer frente às suas próprias demandas de prover sua teoria de um lastro científico. Por isso é que na primeira página do seu trabalho sobre “A pulsão e suas vicissitudes” ele discute, longamente sobre o cientificismo deste conceito, para concluir que a pulsão é um conceito básico, apesar de ainda obscuro.
A noção de pulsão em Freud é absolutamente nova e a maneira como ele a constrói, a partir da experiência do inconsciente, impede que o pensamento psicológico venha lançar mão ao recurso do instinto, disto que podemos chamar de uma moral da natureza, como forma de não pensar as consequências da brecha aonde o inconsciente se constitui. Esta é a forma encontrada para quebrar com o que poderia haver de resquícios de um uso, deste vocábulo, anterior à psicanálise como aconteceu e acontece com o conceito de inconsciente.
Vamos dizer que a pulsão não é a pressão, nem mesmo podemos dizer que é natural esta sequência que se apresenta pelos termos: fonte (Quelle), objeto (Objekt) e alvo (Ziel). Ao contrário, produto da incidência da linguagem, a pulsão ex-siste, só se apresentando enquanto um circuito, um circuito que não é outro senão a via que a demanda traça no campo do Outro. Circuito este que deixa como questão saber como o sujeito encontrará aí seu lugar, pois assim como o próprio conceito abriu sua via no real e se estabeleceu como um “Grundbegriff”, demarcando este real, a cada volta a pulsão produz como consequência um novo sujeito, que como tal permanece como um sujeito a vir, já que vai desaparecer sob o significante que o representa para outro significante.
Vamos acompanhar, com Lacan cada um dos termos que constituem esta ficção que é a pulsão.
Comecemos pela pressão, que pode ser identificada, desde o princípio a uma pura e simples tendência à descarga, como produto de um estímulo, de um suplemento de energia: Qn, nos diz Freud no Projeto. No entanto, é preciso diferenciá-la quanto a sua origem, de onde ela vem. Esta excitação, “Reiz”, para empregar um termo de Freud, é interna. Nisto ela se diferencia fundamentalmente de todo estímulo externo. Podemos exemplificar com as chamadas necessidades, o “Not”, muito bem demonstrado pela fome ou sede. No entanto, é fundamental distinguí-la do que poderia ser uma manifestação a nível do organismo como um todo. Esta excitação é uma manifestação do campo freudiano como tal, campo este que está descrito como “Real-Ich” no texto do Projeto, nos lembra Lacan, “Real-Ich” que é concebido como suportado, não pelo organismo inteiro, mas pelo sistema nervoso. Existe, nesta concepção do “Real-Ich”, uma característica de sujeito planificado, objetivado. Esta energia, esta “Triebreiz” é o que vai investir certos elementos do campo em questão, investi-los pulsionalmente. Este investimento, ao contrário do que ocorre com as funções biológicas, que sempre tem um ritmo e se sustentam em uma força momentânea (“Momentane Stoss-kraft”) possui como característica ser uma força constante (“Konstante Kraft”)
Para tratarmos do outro termo, alvo, vamos lembrar, com Lacan que a satisfação (Befriedigung) da pulsão consiste em atingi-lo. No entanto, convêm dizer que o próprio Freud vai nos afirmar que uma das quatro vicissitudes da pulsão é a sublimação, que esta, exatamente, é inibida quanto a seu alvo. Nem por isso ela deixa de nos dizer da satisfação da pulsão. (O exemplo do beijo e da fala é dado por Lacan.) Esta afirmação nos leva ao fato de que “o uso da função da pulsão não tem, para nós, outro alcance que não o de colocar em questão isso que é da satisfação”.
A clínica nos coloca frente a frente com essas situações todos os dias. Cito Lacan: “os pacientes não se satisfazem, como se diz, disso que eles são. E, portanto, nós sabemos que tudo isso que eles são, tudo isso que eles vivem, seus sintomas mesmo, provêem da satisfação. Eles satisfazem qualquer coisa que vai, sem dúvidas, ao encontro disso que poderia lhes satisfazer ou, talvez melhor, eles satisfazem a qualquer coisa”. Em outras palavras, podemos dizer que eles se dividem entre estar satisfeitos por algo e satisfazer a algo. Toda a nossa questão é procurarmos saber o que é que é isso que é aí satisfeito.
Vamos tentar esclarecer esta questão do prazer/desprazer e satisfação. O primeiro ponto sera a distinção entre o prazer e a satisfação: a clínica se explica pela diferença entre o que dá prazer e o que satisfaz.
É fundamental não confundir o que satisfaz a alguém, com o que lhe dá prazer. Na neurose, o que parece estranho, fora do sentido, para o sujeito é que seu sintoma produz desprazer, mas eles têm a idéia de que há uma razão para isso: “Deus escreve certo por linhas tortas”, p. ex..
No entanto, quando o sujeito extrai um pouco de prazer com o que está mais além do prazer, isto é, consegue um pouco de prazer com o gozo, trata-se aí de sua fantasia. Mas, quando o sujeito vai satisfazer a algo que o confronta com o mais além do princípio do prazer, dizemos que é um assunto que se passa entre a satisfação e o gozo, e que o que está em questão é a pulsão. Em outras palavras, se colocamos o sujeito do lado da fantasia, ele será satisfeito por algo, se o colocamos do lado da pulsão, teremos um sujeito que satisfaz a algo. Isto é para dizer que, de modo algum o sintoma será o mesmo se o abordamos pela dimensão do prazer e do gozo, ou do gozo e da satisfação.
Podemos abordar o sintoma de duas maneiras, conforme nos aproximamos dele pela via da fantasia ou da pulsão.
Pela via da fantasia, aqui localizado entre os pontos de gozo e prazer, vemos que o sintoma vai se instalar neste ponto para fazer valer uma certa proteção, ignorar, aquilo que é a causa do desejo. No entanto, estando assim colocado, ele também é capaz de tirar proveito da operação da fantasia que consiste em transformar gozo em prazer, de forma tal que os benefícios secundários vêem para propiciar prazer no desprazer. É o que escapa, apesar do recalque, que retorna como mais-de-gozar, e não como causa.
Por outro lado, se examinamos o sintoma pelo viés da pulsão, o que vamos constatar é que o sintoma satisfaz a um gozo, exatamente pela interpretação que o neurótico faz da demanda do Outro, como sendo equivalente ao seu desejo. No entanto, colocadas as coisas deste lado, do lado do tesouro de significantes, a possibilidade de transformarmos a queixa em bem-dizer vai se apresentar de uma forma que pode ser descrita desta forma: Até onde se satisfazia gozar, deverá agora tentar examinar a que gozo satisfaz esta divisão sobre a qual você tem o dever de bem-dizer. Ali onde você tinha benefícios secundários, terá agora um gozo permitido. Em outras palavras, o benefício secundário - que é da categoria do gozo clandestino - se transforma num bem dizer - gozo permitido.
Retomemos o nosso percurso: estando satisfeitos o que levaria sujeitos neuróticos a procurar uma análise? Podemos dizer que é na tentativa de se satisfazerem que o desprazer advém e que por isso, eles se dão muito mal. “Até um certo ponto, é esse muito mal a única justificativa de nossa intervenção”, como analistas.
Quanto ao alvo, alcançar a satisfação, não podemos dizer que ele não seja alcançado, mesmo produzindo um desprazer. “O que temos diante nós em análise, é um sistema onde tudo se arranja, e que atinge seu próprio tipo de satisfação.” E, exatamente por sabermos que é possível utilizar-se de outras vias, é que nos autorizamos a ofertar nosso trabalho. E estas outras vias só são possíveis, no que se refere ao nível da pulsão, quando o estado de satisfação pode, aí, ser retificado.
Quanto ao objeto, para podermos tratar dele será necessário lembrar aqui a categoria do impossível. Este impossível é o real, que aparece em Freud como o “obstáculo ao princípio de prazer. O real é o choque, é o fato de que isso não se arranja logo, como quer a mão que se estende em direção aos objetos exteriores. O real, continua Lacan , se distingue pela sua separação do campo do princípio do prazer, por sua desexualiazação, pelo fato de que sua economia admite qualquer coisa de novo, que é justamente o impossível.” Ora, o princípio do prazer pode ser caracterizado exatamente pelo fato de que o impossível, aí estando presente, não é jamais reconhecido como tal. A satisfação pela via da alucinação é uma ilustração de como o princípio do prazer não reconhece o impossível. Esta possibilidade de tratar o impossível é que nos leva a concluir que não é pela apreensão do seu objeto que a pulsão se satisfaz. A distinção entre “Not” e “Bedürfnis”, ou seja, entre necessidade e exigência pulsional aponta para o fato de que nenhum objeto da necessidade pode satisfazer a pulsão. A pulsão se satisfaz de seu percurso, de tal maneira que, no que diz respeito à pulsão oral, não é bem da nutrição que ela vai se satisfazer, mas sim ao “escolher o cardápio”. É como ela recorta o campo do Outro e traz de volta significantes: “isso que vai à boca retorna à boca”. “É isso que nos diz Freud, nos lembra Lacan: O objeto na pulsão, sabemos que não tem, falando propriamente, nenhuma importância. Ele é totalmente indiferente”.
O objeto da pulsão oral, por exemplo, nunca é lembrado como sendo o alimento, mas sim o seio. Seio este que, no que diz respeito à sua função na satisfação da pulsão seria formulada desta forma: ele aí se coloca para que “a pulsão aí faça a volta” (Lacan nos chama a atenção para a ambigüidade que tem este “faire le tour” na língua francesa: dar a volta ou escamotear).
Uma palavra mais sobre o objeto da pulsão: é dito que eles são objetos parciais, mas não porque “eles sejam parte de um objeto total que será o corpo, mas, sim, em função de que eles só representam parcialmente a função que os produz”.
Vejamos agora o que podemos dizer sobre a fonte. A delimitação mesma da “zona erógena”, que a pulsão isola do metabolismo da função, ou seja a diferencia do estômago, esôfago, etc, é feita de um corte que a entrada do significante promove no corpo e vai encontrar subsídio na sua própria estrutura anatômica de ser uma margem ou uma borda. É a brecha do inconsciente que se apresenta no corpo, para dar-lhe testemunho e manter o nível mínimo de tensão, manter uma força constante (Konstante Kraft).
Para concluir vamos dizer que a partir do que vimos com este desmonte é que a pulsão só se sustenta enquanto uma montagem, uma montagem que se apresenta como não tendo nem pé nem cabeça, bem ao estilo surrealista, nos lembra Lacan. Mas, na verdade esta montagem - longe de ser uma montagem imaginária como podem sugerir as imagens do circuito pulsional que Lacan utiliza - é uma montagem gramatical, onde as inversões tais como exibicionismo - voyeurismo, ou masoquismo - sadismo, são inversões gramaticais, “inversões do sujeito e do objeto, como se o objeto e o sujeito gramaticais fossem funções reais”.
A ética da Psicanálise, portanto, se refere a uma identificação, no cerne da relação ética ao desejo com o limite mesmo que a verdade impõe à toda tentativa de se totalizar o campo de determinação da estrutura. A conexão ética do bem dizer ao que não pode ser totalmente dito, passa portanto, necessariamente, pelo trabalho da pulsão que, sendo parcial sustenta o saber inconsciente através da articulação dos significantes em uma gramática capaz de nos dizer do lugar do sujeito diante do Outro, na medida mesmo em que este lugar está, fundamentalmente, determinado pela relação que este sujeito estabelece com o objeto ao qual se liga, na tentativa de não desaparecer nos intervalos da cadeia significante. É por isso que podemos dizer que a ética que nos concerne pode ser localizada nesta brecha, matemizada como S(A/), onde a falta de garantias se abre à dimensão da responsabilidade. “Não há clínica sem ética”, nos diz JAMiller. Não há clínica Psicanalítica se não levarmos em conta que o desejo que move a ética da psicanálise é co-extensivo dessa falha que define o inconsciente como falta-a-ser. É nesse topos que vamos ver operar o desejo inédito que surge no momento em que um analisante se torna analista.
Assim como “A Mulher”, o analista que advém desta operação vai ocupar um lugar onde a estrutura não dá conta de conter: a extimidade do objeto “a” que vai, ali, apresentar-se, na medida que o analista se coloca numa posição tal que possa fazer reinar este objeto como causa de desejo.