"Falar de amor, com efeito, não se faz outra coisa no discurso analítico” (S.XX, pag. 112)
O Seminário XX de Lacan, intitulado Mais, ainda, pronunciado entre 12 de dezembro de 1972 e 26 de junho de 1975 ocupa um lugar importante tanto no que diz respeito à virada política na França - aconteceu depois dos eventos de maio de 68 (1), acontecimentos que ecoaram pelo mundo - e, principalmente no ensino de Lacan, pois ele é uma virada que vai abrir o caminho para elaborações a partir de uma nova topologia sustentada no nó Borromeo. Assim começa o que Jacques-Alain Miller chamou de “Ultissimo ensino”.
Como sempre lembro a vocês, é fundamental localizarmos os textos e seminários de Lacan no contexto em que foram produzidos. Há sempre um diálogo presente com a subjetividade de sua época. Assim sendo, vamos trazer um pouco da história que precede e justifica esse seminário.
Os acontecimentos de maio de 68 levaram Lacan a produzir o Seminário XVII - O Avesso da Psicanálise -, por isto a capa deste seminário traz uma cena do movimento, com um dos representantes do movimento Daniel Cohn-Benedit diante de um policial.
O Avesso a que se refere e explicita Lacan neste seminário se refere à tomada, "ao avesso” do projeto freudiano, assim como àquele que Balzac inventa em seu “O Avesso da História contemporânea” que abriu um outro espaço no coração da cidade. O avesso da psicanálise se refere ao que a psicanálise vai dispensar, fazer uma volta para melhor tratar o que lhe concerne, como por exemplo, quando se trata do Discurso do Mestre. É Quando Lacan vai colocar em evidência sua teoria dos quatro discursos, que podem ser definidos como quatro formas de diferentes agenciamentos entre o sujeito e o Outro, mais especificamente entre o sujeito, os significantes e o saber que o comanda, e, claro, o resto que surge deste mesmo movimento. Este resto Lacan nomeou como mais-de-gozo em referência à mais-valia que segundo Marx é o bonus do processo capitalista. Talvez por isto mesmo podemos verificar neste movimento a inserção de uma dimensão política da psicanálise, o que autoriza, de alguma forma à frase um tanto audaciosa: “O insconsciente, é a política”. Esta frase se refere, principalmente ao laço social que começa a dois e se faz entre as instâncias referidas, por Lacan, como “discursos".
Vamos agora ao nosso objetivo principal: o Seminário Mais Ainda. Comecemos pela capa escolhida para apresentar esse seminário: trata-se de uma escultura, de Bernin, representando Santa Tereza em êxtase. Esta obra se encontra em Santa Maria da Vitoria, em Roma. Esta imagem aponta para o cerne do que será tratado neste seminário. Apesar de continuar a insistir na questão dos discursos, Lacan vai descortinar a dimensão que comandará seu ensino desde o Seminário XVI - De um outro ao Outro - até o seu final. Temos aqui, neste Seminário XX, o momento em que a categoria de gozo vai adquirir um estatuto dominante. É verdade que esse processo, como disse acima, já se faz presente desde o seminário XVI. Nesta perspectiva já encontramos o Capítulo XIII, deste Seminário, nomeado por Miller como: “Do Gozo postulado como um absoluto”.
Temos, portanto, um primeiro ponto para nos ajudar neste trajeto pelo Seminário XX: o gozo foi introduzido, desde o início, em oposição ao útil: “O gozo, é o que não serve para nada”. Não podemos nos esquecer a origem jurídica deste termo que nos remete a fruto e usufruto.
Um passo a mais: Sabemos que o Supereu, esse conceito freudiano da segunda tópica freudiana, foi instituído sob a égide de um sentido repressivo, vertente da Lei moral segundo Kant, e não foi julgado por Lacan menos feroz. Na verdade ele foi redirecionado a uma outra obscenidade, mudança de orientação que leva a uma palavra de ordem “Goze!”. Pode-se dizer que o sujeito assim se coloca: Sim, eu escuto bem sua lei, eu ouço (j’ouis) sua voz, e ela se torna meu desejo.
Tomando estas referências ao gozo e ao campo da sexualidade, que já começamos a escutar na primeira lição do Seminário XX, Lacan pode produzir as seguintes fórmulas:
- “O gozo do Outro, do corpo do Outro que o simboliza, não é signo de amor.”
- “É, em suma, o corpo do um que goza de uma parte do corpo do Outro”.
- E, para concluir, “em suma, é o Outro que goza” (S.XX Pags. 35-36)
O Outro, não nos esqueçamos, deve ser tomado como um buraco. (S.XX Pag. 155) “O Outro não existe”, vai dizer Lacan mais uma vez.
Neste momento, segundo a topologia que Lacan expõe neste seminário, vamos encontrar uma articulação entre gozo e sexualidade, que não poderá ser reduzida ao orgasmo, seja masculino ou feminino. Uma articulação que encontra obstáculos postos em evidência pela psicanálise que afirma que “não há relação sexual”. Impasses que vão se resolver pelo recurso ao amor que vem ao lugar desta ausência. “O que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor”. (S.XX, pag. 62)
O que se encontra, então, neste Seminário é uma teoria do gozo em sua relação com o amor, sem se esquecer a evidência ao destaque que Freud deu ao narcisismo. Além disto, a oposição entre o desejo e a demanda de amor, que até aqui dominou a teoria Lacaniana dita “clássica" vai se deslocar para uma articulação mais essencial: a oposição entre o gozo fálico e o que vai se denominar Outro Gozo, “suplementar”(S.XX, pag. 99). Esse deslocamento vai ficando mais presente na medida que se aprofunda seu estudo a partir da clínica.
Importante ressaltar neste momento que precisamos tomar cuidado para não produzir divisões rígidas entre os diversos momentos do ensino de Lacan.
Como consequência deste movimento Lacan vai poder, no capítulo em que trata de “Deus e o Gozo dA/ Mulher, trabalhar a mística do ponto de vista do encontro com o real. Os delírios ditos místicos passam a ter um valor a ser levado em conta, e não mais, como tentaram fazer no fim do século XIX, principalmente no círculo de Charcot, de “carregar a mística para questões de ‘foda' (S.XX, pag. 103).
Vamos em Frente! Sempre se lançou mão do gozo fálico para tomar em seu conjunto e suas consequências mais constantes o que a psicanálise conhecia como prazer do órgão, princípio do prazer, satisfação sexual, fetichismo, perversão, etc., a ponto de simplificar os princípios em jogo aqui. No entanto, a partir deste seminário verifica-se uma contrapartida que se rivaliza, se assim podemos afirmar, com esta outra dimensão, sempre enigmática, um outro gozo, denominado de Outro gozo,
O que temos a partir daí é uma psicanálise embaraçada com este Outro gozo que pode muito bem assim ser formulado para destacar o problema: “O gozo - se é que existe um outro diferente do gozo fálico - seria certamente aquele.” Um paradoxo se instala neste ponto: na realidade, não existe outro gozo que o fálico (como se verifica, no fundo o órgão, a detumecência, o primado do falo, etc.) exceto “aquele do qual a mulher nada diz”. O que a psicanálise supõe é que a mulher seja capaz de um gozo outro, não verificável, de alguma forma reconhecido no rosto de Santa Tereza de Bernin.
Coube a Lacan utilizar aqui uma lógica que não fosse a da asserção, mas sim estoica, segundo à qual o verdadeiro se deduz do falso: “Suponha que exista uma outra (verdade!) - mas justamente ela não existe (falso)”. A dúvida permanece e levanta todo o valor da questão que intriga o homem e abre a ideia de que a mulher jamais é toda, ou mais,ainda, que A mulher toda não existe. “Existe um gozo dela (A mulher), dela que não existe e não significa nada” (S.XX, pag. 100). Daí a idéia de que ele seja “da ordem do infinito” (S.XX, pag.140) e que se faça mesmo suporte eventual de Deus! (S.XX, pag. 103)
Convém lembrar algo muito importante que este seminário deixa bem claro: o significante permanece firme no seu lugar de importância na teoria Lacaniana, pois a tese de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (S. XX, pag. 190), portanto articulado segundo as cadeias de significações, continua fundamental. Em 1967, na conferência pronunciada por Lacan, em Lyon, e publicada no livro “Meu Ensino”, ele é bastante claro ao falar do inconsciente e linguagem: “A verdade só começa a se instalar a partir do momento em que há linguagem. Se o Inconsciente não fosse linguagem, não haveria espécie alguma de privilégio, de interesse no que se pode designar, no sentido freudiano, como inconsciente” (Meu Ensino, pag. 38) É verdade que ele recebe desenvolvimentos suplementares, por exemplo, o fato de ele se relacionar ao gozo: “o significante se situa no nível da substância gozante”, “é a causa (material) do gozo (S.XX, pag. 36). Ou mais, ainda: não existe nenhum outro meio de abordar o gozo sem o significante. Não é pela fisiologia nem pela biologia. E, sem o gozo não existe nenhum outro meio de abordar a realidade. “A realidade é abordada com os aparelhos de gozo. (…) aparelho não há outro senão a linguagem. É assim que, no ser falante, o gozo é aparelhado”(S.XX, pag. 75).
Ainda dentro desta perspectiva, o que este movimento, no ensino de Lacan, produz é uma revisão da relação entre o significante e o significado: “Se há alguma coisa que possa nos introduzir à dimensão da escrita como tal, é nos apercebermos de que significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante. O significado não é o que se ouve, o que se ouve, é o significante. O significado é efeito do significante.” (S.XX, pag. 47) Daí se pode afirmar que a letra é efeito de discurso, ou seja, ela só funciona segundo agenciamentos precedentes definidos.
Com tudo isto vemos o escrito se distinguir ainda mais do significante, levando em conta o que foi dito à época do texto “A instância da letra no inconsciente…"
Esta revisão do conceito de letra nos ajuda a entender o uso que Lacan faz das letras para designar, por exemplo, um termo enigmático como objeto a, ou um lugar como sendo o Grande Outro (A) ou o falo (phi) distinguindo-o do órgão na medida que sua função é de ser o “significante do gozo”. Assim a letra se define por ser a estrutura localizada do significante: o significante entanto escrito ocupa um lugar que Lacan insiste em ser o lugar do Outro (S.XX, pag. 40). O conjunto: significante, letra, escrito, foi ficando devidamente complexo para dar conta dos imprevistos do gozo. Interessante lembrar-lhes como eram feitos os caracteres da impressão no seu início. Eram letras concretas que eram encaixadas uma ao lado da outra formando as palavras que seriam impressa no papel.
O que se segue, neste Seminário XX, é um diálogo erístico(2) com a lógica de Aristoteles, a partir do ponto de vista das proposições universais ou particulares, que vão definir os “papeis" do homem e da mulher. O que faz exceção e cria obstáculos tanto ao universal como ao particular são trabalhados levando-se em conta a forma como o que é particular pode satisfazer os casos particulares das proposições universais.
Ainda aqui encontramos um diálogo com lógica modal, aquela que trata do necessário e do possível, onde Lacan introduziu a função do escrito e a temporalidade (cessar de se escrever, não cessar de se escrever, etc.). Isto reorganizou as funções do necessário, do contigente, do impossível e do possível, de tal sorte que o real, definido desde sempre como o impossível (por exemplo: o real da clínica definido como "o impossível a suportar”) faz as vezes de obstáculo ao necessário ao invés de o suportar. Na verdade, é o impossível da relação sexual que vai reger a lógica modal em questão (S.XX , pag. 198-199).
Isto que acabamos de mencionar marca a presença da Lógica neste seminário. No que diz respeito à Ética, vamos encontrar importante sustentação, entre outros, na Ética a Nicomaco, de Aristoteles (que visa o bem, e se encontra substituído pela beatitude cristã). Esta posição mostra como, em vários pontos, Lacan dialoga, implícita e explicitamente, com a Ética do Bem para substituir sua Ética do Bem-dizer que ele trabalha em Televisão (Televisão, pag. 72)
A partir do que trouxemos até aqui a título de introdução, pode-se perceber claramente que esse Seminário é um dos mais ricos e mais denso de todos eles. Por isto mesmo ele nos demanda um trabalho a mais: solicita um trabalho nos detalhes, sem nos esquecermos do seu desenvolvimento.
Esta questão não será resolvida por uma redução escolástica a proposições unívocas, nem a algo que uma axiomática dedutiva pudesse expor. Convém verificar o que o capítulo intitulado “Do Baroco” tem a nos oferecer como possibilidade e seguir os diversos temas entrelaçados tais como: gozo, amor, relação sexual - gozo fálico, Outro gozo - fórmulas da sexuação (homem, mulher) - dialogo constante e formidável com Aristoteles, sua lógica e sua ética - nova relação com a mística e os místicos fora da nosologia clínica - enfim, rolos, torções e nós.
Deve-se, portanto, ler o Mais, Ainda sem esperar que o caminho seja linear, nem mesmo progressivo, pois é preciso ter claro que teremos muitos fios e muitas teses que não serão, necessariamente, nem sucessivas, nem mesmo unívocas. O importante é poder perceber à cada momento o nó que pode ser construído para dar conta deste ensino. Não será um trabalho fácil, pelo contrário, mas Lacan mesmo nos disse com todas as letras no escrito “A Instância da Letra…”: “O escrito distingue-se, com efeito, por uma prevalência do texto, no sentido que veremos ser assumido aqui por esse fator do discurso - o que permite a concisão que, a meu ver, não deve deixar ao leitor outra saída senão a entrada nele, que prefiro difícil.” (Escritos, pag. 496)
Vamos nesta jornada, escolhendo um tema dentro de cada capítulo tendo claro a noção que se trata de um trabalho em andamento (work in progress)!
Mais, Ainda pode também ser visto pelo viés da chamada: leitor, mais um esforço se quereis ser lacaniano(3).
Bilbiografia
Lacan J. O Seminário, Livro XX, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985
Lacan J., "A instância da letra no inconsciente”, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
Lacan J., Televisão, Jorge Zahar Editor, Rio de janeiro, 1993.
Lacan J., Meu ensino, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor 2006.
NOTAS:
1 - O movimento de maio de 1968, na França, tornou-se ícone de uma época onde a renovação dos valores veio acompanhada pela proeminente força de uma cultura jovem. A liberação sexual, a Guerra no Vietnã, os movimentos pela ampliação dos direitos civis compunham toda a pólvora de um barril construído pela fala dos jovens estudantes da época. Mais do que iniciar algum tipo de tendência, o Maio de 68 pode ser visto como desdobramento de toda uma série de questões já propostas pela revisão dos costumes feita por lutas políticas, obras filosóficas e a euforia juvenil.
No dia 2 de maio de 1968, estudantes franceses da Universidade de Nanterre fizeram um protesto contra a divisão dos dormitórios entre homens e mulheres. Na verdade, esse simples motivo vinha arraigado de uma nova geração que reivindicava o fim de posturas conservadoras. Aproveitando do incidente, outros universitários franceses e grupos político partidários resolveram engrossar fileiras dos protestos contra os problemas vividos na França. Com a cobertura televisiva, o episódio francês ficava conhecido pelo mundo.
Em pouco tempo, o contorno das questões que motivavam o protesto ganhavam contornos mais amplos e delicados. Os estudantes passaram a exigir a renúncia do presidente Charles de Gaulle, considerado um conservador, e a convocação de eleições gerais eram as novas propostas dos manifestantes. A partir daí a cidade de Paris transformou-se em palco de confrontos entre policiais armados e manifestantes protegidos em barricadas. Desprovidos de igual força bélica, os revoltosos atiravam pedras e coquetéis molotov contra os policiais.
No dia 18, os trabalhadores protagonizaram uma greve geral de proporções alarmantes. Mais de 10 milhões de trabalhadores cruzaram os braços exigindo melhores condições de trabalho. Acuado pela proporção dos episódios, o presidente Charles de Gaulle se refugiou em uma base militar alemã, concedeu um abono de 35% ao salário mínimo e convocou novas eleições legislativas. Dessa forma, os trabalhadores esvaziaram os espaços de manifestação e voltaram a ocupar seus postos de trabalho.
Nas eleições convocadas pelo governo francês, os políticos vinculados à figura de Gaulle conseguiram expressiva vitória. O presidente saiu do episódio como uma figura capaz de contornar os problemas enfrentados pela sociedade da época. Em pouco tempo os protestos estudantis se esgotaram e
sobraram somente os slogans que pregavam "Sejam realistas, exijam o impossível.", "Parem o mundo, eu quero descer." e "É proibido proibir.".
Mesmo sem alcançar algum tipo de conquista objetiva, o movimento de Maio de 68 indicou uma mudança de comportamentos. As artes, a filosofia e as relações afetivas seriam o espaço de ação de um mundo marcado por mudanças. Não podemos bem ao certo julgar esse episódio como imaturo ou precipitado. Muito menos sabemos limitar precisamente o quanto o mundo modificou a partir de então. No entanto, podemos refletir qual o lugar que a rebeldia e vigor das idéias ocupam em uma sociedade sistematicamente taxada de consumista e individualista.
2 - Erística (Origem Deusa da discórdia Grega Eris) é a arte ou técnica da disputa argumentativa no debate filosófico enpregada com o objetivo de vencer uma discussão e não necessariamente de descobrir a verdade de uma questão. Esta técnica foi desenvolvida principalmente pelos sofistas. Como dizia Arthur Shopenhauer na introdução de “dialética erísitica”: Dialética erística é a arte de discutir, mais precisamente, a arte de discutir de modo a vencer, e isto per fas et per nefas. De fato, é possível ter razão objetivamente no que diz respeito à coisa mesma, e não tê-la aos olhos dos presentes ou inclusive aos próprios olhos." A erística é um tipo de raciocínio que admite saltos lógicos falsos, de maneira que é uma argumentação ilusória. É uma manipulação do discurso, que chega a transgredir as regras da lógica. Entende-se que a erística opõe-se à dialética.
(3) Referências à Marques de Sade em seu livro: Filosofia na Alcova. Título que ele dá a um manifesto que está em seu livro: “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos.”
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