"Na sua obra o artista usa a ”inspiração”; seu inconsciente produz pensamentos que ele permite que atinjam a consciência, contanto que se apresentem sob um disfarce estético." (Ernest Kris)
Continuemos nosso trabalho, tratando da passagem no texto “A Direção do Tratamento...” que é conhecida como “O homem dos miolos frescos”. Este caso apresentado por Ernest Kris é utilizado por Lacan em sua crítica à metodologia que os pós-freudianos, principalmente aqueles que construíram a chamada Psicologia do Ego, lançavam mão para dirigir o tratamento. Sua perspectiva crítica incide sempre sobre as questões de estrutura, onde existe um rebaixamento do uso da palavra que leva, em conseqüência, à busca de garantias no “standard” e na ilusão da universalização promovida pelo recurso à realidade como parâmetro. Neste contexto o “eu” (moi), como representante do sistema percepção-consciência, vai tornar-se o correlato da realidade e o analista, como um interlocutor privilegiado, vai abrir-se às vias da identificação que recobrem o intervalo significante e fazem emergir o termo de “atividade” (agieren) sob as mais diversas formas. Esta “atividade” que reúne analista e analisante é uma tentativa de suplantar uma dificuldade de estrutura que Lacan denuncia como sendo a inércia do gozo. Uma das conseqüências de se ignorar este fato de estrutura é que, se não construímos a fantasia fundamental no tratamento, ela vai se congelar. Em outras palavras, o analista que abandona os efeitos do significante para operar sobre o real é aquele que está mais preocupado em oferecer alguma coisa ao paciente. Por isso Lacan vai nos dizer, em uma passagem que encontramos mais à frente no texto “A direção do tratamento...”: que “O mistério da redenção do analisado está nessa efusão imaginária, da qual o analista é a oferenda.” Esta citação que se encontra no final do texto nos diz porque Lacan vai opor à noção do analista como objeto de identificação da fantasia, a noção da terceira identificação – que Freud apresenta no texto “Psicologia das massas e Análise do eu”, cap. VII – determinada por sua função de sustentação do desejo e especificada pela indiferença de seu objeto. Esta perspectiva nos diz do retorno a Freud de Lacan que abre um espaço: “A que silêncio deve agora se obrigar o analista para evidenciar (...) o dedo erguido de São João de Leonardo, para que a interpretação reencontre o horizonte desabitado do ser em que deve se desdobrar sua virtude alusiva.”
J-A. Miller comenta em seu Seminário Silet (1994-1995) que Lacan negligenciou o conceito de pulsão durante um longo período de seu ensinamento. Ele vai retomar este conceito apenas 1963, quando são publicadas as conferências do congresso de Bonneval e após Leclaire lhe fazer esta crítica. O seu Seminário XI é uma resposta a esta crítica. Na verdade, quando Lacan constrói o conceito de objeto “a”, nesta mesma época, esta sua negligência, se posso dizer assim, vai ser denunciada em conseqüência da própria evolução de seu ensino.
J.A. Miller, no seminário mencionado, trabalha longamente esta passagem, e nos diz que para Lacan, o conceito de pulsão está transcrito como um conceito fronteiriço entre o simbólico e o imaginário, ou seja: “como cadeia, a pulsão lhe aparece articulada no simbólico, enquanto que sua satisfação é da ordem imaginária”, isto para dizer que Lacan vai designar a tomada pelo simbólico do instinto natural como sendo o “mais íntimo do organismo do ser humano que sofrem as incidências do simbólico...”. Ora, este lugar que Lacan vai designar como sendo o da pulsão não é outro que o lugar do FALO, este que vem como ordenador da seqüência de substituições (Ersatz) que vão se constituir no que podemos chamar de objetos pulsionais: voz, olhar, seio e fezes. São estes objetos que aparecem como substitutos à falta do dom simbólico. O objeto real aqui, conforme nos diz J. A. Miller, não tem o seu valor apenas como algo dado, ele tem seu valor como substituto, sendo que é preso, tomado numa cadeia metafórica e metonímica. Em outras palavras podemos dizer que o objeto pulsional vai aparecer sempre como o que responde a uma falta simbólica, sendo desde sempre uma substituição do desejo. Ele é, portanto, um objeto real enquanto substituto.
Por outro lado, se levarmos em conta a demanda, ou seja, a cadeia simbólica, saberemos que a satisfação que está em jogo na pulsão é uma resposta à demanda de amor, é um signo de amor que é pedido neste trajeto da pulsão, o que define esta resposta como simbólica, ao nível do reconhecimento do desejo.
Se, continuando nosso caminho, dizemos que o que está em jogo é a satisfação do desejo, aí sim, vamos ver que ela concerne o falo, mesmo que seja uma má satisfação do desejo, ou seja, uma identificação. “A identificação fálica é a satisfação do desejo, entanto não é a boa, quer dizer, enquanto: é melhor aí renunciar.” (Aí está o que era para Lacan, nesta época, o fim de análise: a renúncia a esta má satisfação do desejo que é a identificação fálica)
No texto da “Direção do Tratamento ...”, vamos ver Lacan preocupado em preservar o lugar do desejo, para que ele não se confunda com a pulsão, pois cada vez que nos permitimos a isto, cada vez que incluímos numa colusão íntima “o gozo e o desejo”, teremos como resultado o que Lacan chamou de “desejo morto”: É a pulsão que, incluída na metonímia do desejo coloca em evidência o valor substitutivo e os deslocamentos se tornam possíveis, daí a metonímia. Em outras palavras, esta metonímia que inclui desejo e pulsão, inclui também o gozo. Lacan diz que "é um desejo inscrito no significante, é o equivalente de uma memória no sentido automático, portanto é um desejo morto”.
É exatamente em função deste cuidado, que Lacan vai retomar no texto da “Direção do Tratamento...” o caso de E. Kris: Não se regular sobre o que pode fazer aparecer o objeto oral, objeto da pulsão, onde deve ser demonstrado o vazio do objeto de desejo, p. Ex.
Esta descrição de Lacan coloca em evidência o debate entre pulsão e desejo no que diz respeito à direção do tratamento. Ali, onde E. Kris vai concluir seu famoso artigo dizendo que o fato de seu paciente ter indo procurar miolos frescos, quer dizer, aí aonde a aparição da pulsão oral sob a forma do objeto, vem confirmar que sua interpretação é justa, Lacan vai dizer que o que vemos surgir é uma forma de um sintoma transitório onde deveria surgir o lugar do desejo, já que ele foi apagado pela interpretação de Kris.
Do que se trata, na verdade, é de marcar que, quando falamos de desejo há um objeto que é nada e que é nesta direção que a interpretação deve apontar. “Saber, no tratamento, indicar o nada, é restituir o lugar do desejo e aí , no fundo, a única aparição da pulsão na “Direção do Tratamento...”, é uma aparição correlativa a uma desorientação simbólica do analista. (...) há um objeto que é nada, (quanto se trata do desejo), enquanto que na pulsão há um objeto que é qualquer coisa, que são esses - mesmo que imaginários - miolos frescos”.
De um lado temos o desejo que tem o nada como objeto, e é isso que o distingue da pulsão, que está sempre correlacionada a um objeto que é alguma coisa, mesmo que seja qualquer uma, e que, ao mesmo tempo, é preciso dizer que o desejo tem um objeto que é o falo, Este talvez seja o grande paradoxo e que se presta a tantas confusões: “Que de um lado o desejo não tem significante, é um significado que desliza entre os significantes e que, no entanto, o desejo tem um significante e é o falo.”
Apontar ao objeto e não ao vazio, mostra que, quando o analista opta por um forçamento, uma espécie de interpretação que visa o sentido do sentido na esperança de se alcançar a “comunicar o conjunto mais completo de significações ao paciente”, o analista se oferece como referência na transferência e acaba por desencadear um “acting-out”. Lacan explicita isto dizendo que E. Kris, ao interpretar a defesa antes da pulsão acabou por empurrar seu paciente ao “acting-out” na tentativa de preservar seu desejo. Lacan nos diz que a “anorexia mental” do paciente de Kris é uma doença do desejo, pois se trata de um sujeito que recusa o fato de que seu desejo esteja submetido à cadeia significante, que é um sujeito que queria desejar sem ter a menor idéia de que desejava e que, por isso, ataca a cadeia significante.
Esse ponto está descrito por Lacan em seu texto “Posição do Inconsciente”: “para proteger-se do significante sob o qual sucumbe, o sujeito ataca a cadeia, que reduzimos ao mais preciso binarismo, em seu ponto de intervalo. O intervalo que se repete, a mais radical estrutura da cadeia significante, é o lugar freqüentado pela metonímia, (...) do desejo”
Em outras palavras podemos dizer que temos um sujeito que está a um passo de ser representado por um significante para outro significante, mas que permanece petrificado diante um certo significante e necessitará um outro diante do qual ser representado. O ataque à cadeia está descrito no caso do paciente de Kris, ataque a este nada que está entre os dois significantes: ele está doente porque o desejo está enganchado em uma cadeia significante e, portanto, ele se defende dela através de um ataque que coloca sempre, em primeiro plano, o nada. Assim ele mantém a metonímia essencial da cadeia, qual seja, de um desejo que seria possível para ele.
Por isso devemos deixar claro que a interpretação não visa o sentido do sentido. Durante os anos 50 Lacan definiu os conceitos de palavra constituída e palavra constituinte para dizer da interpretação. Talvez esta sua abordagem, que deu ao significante um lugar especial, estabelecendo que a localização dos meandros do significante é obtida a partir do Outro do significante, tenha se prestado a confusões, por isso ele, nos anos 60 tratou de estabelecer os limites que apresentam a experiência analítica com um sintagma: “Não existe metalinguagem”, ou “Não existe Outro do Outro”. A interpretação de Kris se sustentava, lembro-lhes, na possibilidade de estabelecer o sentido do sentido, ou na possibilidade de uma comunicação, ao paciente, do conjunto mais completo de significações. Esta nova perspectiva lacaniana dos anos 60 se sustentou na falha do Outro, onde o analista deverá encontrar seu lugar: “Partamos da concepção do Outro como lugar do significante. Todo enunciado de autoridade só tem como garantia sua própria enunciação, pois é vão que ele a busque em um outro significante, o qual, de alguma forma não fará aparecer fora deste lugar. Isso é o que formulamos ao dizer que não existe metalinguagem que possa ser falada, mais aforisticamente: que não existe Outro do Outro.”
Mas a evolução do ensino de Lacan acaba por leva-lo a formular que “o sentido do sentido em minha prática se capta (Begriff) por escapar: a ser entendido como de um tonel – referência ao Tonel das Danaides – e não por uma debandada.” Lacan continua mais abaixo neste mesmo texto dizendo que isso implica que uma mensagem, mesmo completamente decifrada, pode continuar a permanecer como um enigma, e conclui: é o caso da interpretação.
Vamos concluir este trabalho sobre a interpretação de E. Kris dizendo que, não importa qual o ideal de metalinguagem que está em jogo. Ele sempre é solidário ao poder do Outro em detrimento do poder da palavra, exacerbando a vertente sugestiva. Nesta vertente a palavra não consegue se livrar de seu poder de sugestão. No entanto, quando a interpretação está orientada pela lógica do significante e do objeto “a”, o poder atribuído ao Outro fica reduzido ao poder mesmo da palavra, diferenciando o desenvolvimento da transferência de sua sugestão interpretativa.