Total de visualizações de página

terça-feira, 6 de agosto de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura VIII

Quando Lacan toma a seu cargo a tarefa de um retorno ao sentido de Freud, ele esta se propondo um trabalho que transcendia a simples revisão de conceitos e articulações teóricas. Seu objetivo tinha, em seu bojo, conseqüências sobre a práxis analítica. Práxis como a que se refere ao ato que possibilita colocar o sujeito em condições de tratar o real pelo simbólico.
Tendo isso como alvo, Lacan vai propor uma direção do tratamento sustentada em três pontos, como já pudemos  trabalhar aqui: “Tática, Estrategia e Política”.
Minha intenção é tomar como causa deste texto o que poderia ser uma interpretação analítica bem sucedida, ou seja, aquela que promove um corte pela incidência da letra – do significante destituído de sua relação à significação – para promover uma mudança subjetiva, ao mesmo tempo em que permanece como uma interpretação memorável.  
A expressão “interpretação memorável”, criada por Jacques-Alain Miller para a Seção Clínica, chamou minha atenção quando se observa as poucas ilustrações concretas de interpretações que poderíamos chamar de memoráveis nos relatos de análises ao cartel do passe, acrescentando que talvez exista “uma dificuldade estrutural para elucidar essa passagem para o sujeito (...) pois o momento dessa mutação é difícil de apreender...”
É a partir deste ponto que me ponho a trabalho para  desenvolver uma hipótese dizendo que esta dificuldade se deve ao fato de que uma interpretação só se torna passível de ser memorável se ela for capaz de promover uma transmutação de registro, ou seja, traduzir “Traços de percepção (Wahrnemungszeichen)” em “Traços duradouros (Dauerspuren)” ou “Traços de memórias (Erinnerungspuren)”. Estando fazendo referência ao esquema do aparelho psíquico proposto por Freud na Carta 52 de sua correspondência a Fliess permito-me introduzir, a partir do desenvolvimento de Lacan, a incidência do traço unário (Einziger Zug) entre as camadas dos “Traços de percepção”, (Wahrnemungszeichen) e o “Inconsciente” (Unbewusst), na medida em que é a presença deste traço (Zug), após o assentimento primordial (Bejahung), o que vai possibilitar a estruturação do inconsciente (Unbewusst) com o seu limite: o “Unbegriff” - conceito criado por Lacan para nos dizer do UM do inconsciente.  
Como já convocamos a “Carta 52”, continuaremos com sua referência para dizer que a interpretação vai se mostrar eficaz e permanecer como memorável quando ela for capaz de promover o “despertar de um novo desprazer”(der Erweckung neuerlich Unlust) ali onde “uma memória se comporta como um evento corriqueiro” (Die Erinnerung benimmt sich dann wie etwas Aktuelles) com a intenção de promover uma inibição à liberação de desprazer (Unlust).
Minha proposta se sustenta em uma pesquisa no texto freudiano, onde pude constatar que, ao contrário do que observamos nas traduções (português, inglês, espanhol ou francês) são utilizadas três palavras distintas para a palavra traço que, longe de ser apenas uma questão de retórica, vão nos apontar recortes conceituais diferentes, propiciando uma formalização do que penso ser uma “interpretação memorável”
Zeichen - Freud utiliza este significante na Carta 52 quando nos diz: “o essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços (Zeichen = indícios, insígnias).”
Ele aí está nos apresentando “Traços de percepção” (Wahrnemungszeichen), o primeiro registro (Niederschrift) “absolutamente incapaz de se tornar consciente, e organizado de acordo com associações por simultaneidade (Gleichzeitigkeitsassoziation)”. Estes traços “nós podemos, nos diz Lacan, dar-lhes imediatamente seu nome verdadeiro de significantes.”
Zug - Este significante é utilizado por Freud em poucas ocasiões: “Uma criança é batida” e “Psicologia das massas - parte VII”, onde Lacan vai buscar o conceito de traço unário (Einziger Zug). Trata-se, de um traço, de um puxão, de uma espécie de sulco inaugural que tem como consequência lógica a Bejahung primordial.
Spur - Esta é a palavra alemã para traço que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Na Carta 52 vamos vê-lo utilizar Spur quando diz que se na camada denominada “Percepção” (Wahrnemung) nenhum traço (kein Spur) do que acontece permanece, isto só será possível quando do segundo registro (Niederschrift): “Inconsciente” (Unbewusst), onde “traços do inconsciente (Unbewusstspuren) são algo equivalentes a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen), também inacessíveis à consciência”.  
Acrescento que é a incidência do traço unário (Einzeger Zug) o que promove a reorganização das “associações por simultaneidade” em lembranças conceituais, a partir mesmo da instalação do “UM”, da hiância, como causa.
Freud é bastante claro, portanto, em dizer que é somente quando o traço (Spur), está registrado, é que vai ser possível o próximo passo: “a transcrição (Umschrift), ligada à representação de palavra”.
Ora, uma intervenção que se sustentar no deslizamento do sentido permanecerá apenas como traços de percepção (Wahrnemungszeichen) pois, sendo apenas uma indicação, insígnia de um Outro que se apresenta como ideal [I(a)], vai impedir a que uma marca (Zug) possa produzir o  “despertar um desprazer particular liberando um novo desprazer que, então, não pode mais ser inibido”. Este “despertar” só será possível pela ação de um corte, uma separação que, apontando para a brecha que o traço (Zug) deixou ao ser assimilado, vai abrir o caminho (bahnung) para que um traço de memória (Erinnerungsspur) possa se apresentar à transcrição (Umschrift) ligado-se á representação de palavra (Wortsvorstellung). Assim será possível à interpretação produzir ondas.
Em outras palavras, podemos dizer que é a partir deste deste sulco (Zug) produzido pelo corte que o esvaziamento do sentido vai ocorrer, apontando a “separação entre S1 e S2 que se inscreve sobre a linha inferior do ‘discurso analítico",  como nos esclarece J. A. Miller,  possibilitando uma retificação no trajeto da satisfação pulsional, ao desviar o vetor do sentido, para a causa de desejo.
Esta é a intervenção de um analista que pode propiciar a um sujeito dar um passo a mais e confirmar a sua decisão pela análise.
A confirmação desta decisão, acredito, não se faz pela via do saber, mas sim por um consentimento com a experiência do inconsciente que este corte instala. Quando me refiro a consentimento, tenho em mente o que Lacan nos diz em seu Seminário VII - A Ética da Psicanálise: quando, uma vez cumprido o ato do assassinato do pai da horda primitiva, “se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição da lei. Quanto à esta lei, a arte de Freud será vinculá-la ao assassinato do pai, de identificá-la à ambivalência que então funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno do amor após efetuado o ato.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário