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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura (O Homem dos Ratos)

Passemos aos comentários em torno do caso do Homem dos Ratos. A este respeito Lacan começa chamando nossa atenção para o quão audaciosa era a interpretação de Freud e o quanto a sua vulgarização acaba por desconhecer o alcance de sua adivinhação. E esta audácia se estrutura em torno de um fato simples: é a denuncia que faz sua interpretação de uma tendência que é diferente do instinto: Trieb, a pulsão. “O frescor desta descoberta, nos diz Lacan, nos mascara o que o Trieb implica em si de um advento do significante.”
Esta descoberta, que a figura de Tirésias vem esclarecer ao ser interrogado diante da ambigüidade em que opera seu veredicto – referência às linhas de destino de um sujeito -, vai nos dizer do pouco que concernem ao Eu do sujeito ou a qualquer relação dual feita presente no hic e nunc. Este movimento se esclarece quando verificamos como Freud foi capaz de escutar, “na hora certa (...) o pacto que regeu o casamento dos pais do Homem dos Ratos, portanto, muito antes do nascimento deste.” O mais incrível, continua Lacan, é que “o acesso a este material só tenha sido aberto  por uma interpretação em que Freud presumiu uma interdição que o pai do Homem dos Ratos teria imposto com relação à legitimação do amor sublime a que se devotou, para explicar a marca de impossível de que, sob todas as suas modalidade, esse laço lhe parece ter o cunho.” Ora, continua Lacan, do que se trata é de uma interpretação inexata mas que acaba por ser, mesmo assim, verdadeira, pois ela antecipa o que foi introduzido como função do Outro na neurose obsessiva, ou seja, que esta função esta sustentada por um morto, que foi reconhecido por Freud como sendo o Pai absoluto.
Se no caso Dora o que esteve no centro de nossos comentários foi a função do pai, seguindo o que nos diz Lacan vamos perceber que o central no caso do Homem dos Ratos é a questão da verdade.
Num primeiro momento vamos acompanhar Lacan trabalhando este caso como uma forma de reestruturar a conformação triangular do Édipo fazendo uma construção quaternária.  Lacan faz este trabalho no texto “O mito individual do neurótico” (1953). Para alcançar seu objetivo, Lacan vai destacar a célula elementar da organização familiar que espera o sujeito no seu nascimento e dizer que esta célula sofre transformações sucessivas com o objetivo de poder retificar as faltas do Outro.  Estas faltas Lacan as define nesta época como sendo as faltas do pai.
No caso do Homem dos Ratos a impossibilidade de reunir os dois planos, aquele do amor (a escolha entre a moça rica e a moça pobre) e do dinheiro (a dívida paterna com o amigo militar) faz eclodir o drama do Homem dos Ratos: sua obsessão.
No que diz respeito à transferência, Freud vai ser colocado, diferentemente de Dora, como um amigo, como figura especular. Isto é o que justifica a presença da filha de Freud como um desdobramento de sua bem-amada. Isto também explica porque muitas das questões do Homem dos Ratos acabam por encontrar soluções pelo viés da identificação. Esta transferência estabelecida no eixo imaginário acaba por fazer surgir fantasias agressivas. Mesmo a agressividade descrita por Freud na sessão do dia 08 de outubro de 1907 não está dirigida a Freud na posição de pai, como ele mesmo insiste em interpretar, mas sim no lugar da moça rica, representada, como nos diz Lacan, pela presença da filha de Freud.
Lacan, ao sublinhar a insistência de Freud em colocar-se no lugar do pai, na transferência, deixa claro que ele se enganou na sua interpretação, pois toda agressão masculina não é, necessariamente, dirigida ao pai por razões edipianas que a situam no eixo simbólico, mas que existe toda uma dimensão de confrontação agressiva localizada no eixo a-a’, eixo imaginário ou narcísico.
Lacan nos traz tudo isso para concluir que o elemento que transforma o esquema triangular freudiano em esquema quaternário é a morte: “é, com efeito, da morte imaginada, imaginária, do que se trata na relação narcísica (...) É igualmente a morte imaginada, imaginária, que se introduz na dialética do drama edípico.”
No texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan trata de reencontrar o efeito da palavra de Freud buscando “os princípios que a governam”.
Primeiramente ele trabalha a questão da análise das resistências para dizer dos desvios que esta propicia. Em seguida Lacan demonstra como Freud, ao responder à demanda de explicação, consegue entrar no jogo de sedução imaginária do Homem dos Ratos. O que se trata neste momento não podemos chamar de doutrinamento, mas sim de um dom da palavra que permite, segundo nos diz Lacan, a equivalência simbólica posterior do significante rato e o dinheiro pago ao analista. Isto porque Freud faz dom da palavra ao fazer equivaler o gozo sintomático que lhe será dado por meios dos florins, iguais ao significante rato, através de uma equivalência simbólica. Lacan nos diz que Freud não desconhecia a resistência, mas faz uso dela para lançar o movimento da palavra implicando o sujeito em sua mensagem. No texto “L’Etourdi” (1974), ao falar do “doutrinamento” de Freud, apresenta esse mesmo doutrinamento como exemplo de interpretação e diz: Freud faz os “sujeitos repassarem sua lição” em sua gramática. O que está assim descrito é que para que possa se produzir a implicação do sujeito em sua própria mensagem é fundamental jogar com a ressonância da palavra para que esta reenvie ao sujeito sua própria mensagem invertida.
O que acompanhamos na obra de Lacan é um trabalho onde ele aplica a mesma técnica na leitura da obra de Freud, ou seja, “à poética da obra freudiana”, “para compreender a repercussão dialética” que noções como a da pulsão de morte podem facilitar o trabalho de deciframento e encontrar os efeitos da palavra de Freud. Do que se trata ao final das contas é buscar o pacto que Freud estabeleceu com a palavra na releitura que Lacan propõe para o caso do Homem dos Ratos.  
Este texto de Lacan, “Função e Campo...” é conhecido por propor os conceitos de Palavra Plena (palavra verdadeira) e Palavra Vazia (palavra falsa) como conceitos importantes para trabalhar a Interpretação: “a análise só pode ter como objetivo o acontecimento de uma palavra verdadeira.”
É nesta vertente que Lacan pode mostrar que a interpretação de Freud pode ser inexata, mas verdadeira. Isso com respeito à articulação que ele faz entre o papel que desempenhou a proposta de casamento que lhe apresentou sua mãe como sendo um efeito “de uma interdição trazida por seu pai defunto contra sua ligação com moça de seus pensamentos”. Lacan nos diz que isso não é apenas materialmente inexato, mas também psicologicamente.... O que vai operar, diz Lacan, é menos a afirmação da “ação castradora do pai” do que seu reconhecimento da “subjetivação forçada da dívida obsessiva”, que acaba por jogar um papel de primeiro plano e leva o sujeito a reencontrar em sua história a brecha impossível a tamponar da dívida simbólica da qual sua neurose é o protesto.
Lacan mostra, também, que a transferência guarda aqui a posição da morte, fundamental para o obsessivo. E isso aparece no eixo imaginário na medida que busca uma negociação: dá a Freud uma filha imaginária em troca de um consentimento á aliança conjugal. Mas o sonho que ele traz acaba por revelar o verdadeiro rosto da transferência: “Aquele da morte que o olha com seus olhos de betume.”
Ainda no texto “Função e Campo...”, Lacan realça a necessidade de levar em conta o não dito que habita os intervalos do discurso. É nestes intervalos que está a realidade do sujeito que, por sua vez, acredita que sua verdade está na análise (sujeito suposto saber), o que vai permitir as intervenções do analista, pois o sujeito mesmo se constitui na busca de sua verdade. A interpretação deverá ser, diz Lacan, uma resposta particular à questão do analisante. As questões do sujeito, quando tomam a forma de uma palavra verdadeira, são escandidas pela interpretação que acabam por afirmar que uma palavra verdadeira já contém em si sua resposta, ou seja, que a interpretação já foi feita pelo inconsciente mesmo. A interpretação será, então, apenas a pontuação dialética sobre a palavra do sujeito.  
Esta interpretação leva, ao menos, a duas conseqüência: A primeira recai sobre o sujeito, sobre a produção de efeito de sujeito, sempre pontual em conseqüência do corte que aí se instala. A segunda recai sobre o sentido: a pontuação fixa um sentido de um texto. A pontuação como fixação do sentido é inseparável da noção de inconsciente como escritura, como traço, como  corte, e da função do analista como “escriba”.
Em “Variantes do tratamento padrão”, Lacan vai retomar novamente a interpretação de Freud ao Homem dos Ratos para falar de uma interpretação autêntica.: ao dizer: “seu pai está morto”, Freud apresentou uma intuição de uma verdade profunda: a falta do pai à verdade da palavra. Ora, esta intuição, “o acesso de Freud ao ponto crucial do sentido onde o sujeito pode decifrar (à la lettre) ao pé da letra seu destino”, lhe está aberto pela sua própria analise onde ele reconheceu “o fato de ter sido, ele mesmo, objeto de uma sugestão parecida da prudência familiar (...) e talvez e que, provavelmente, ele não respondeu a isso na ocasião por não ter, ele mesmo (Freud), reconhecido isso.”  Daí a importância que dá Freud a que o analista possa, através de sua própria análise, criar condições de aceder à palavra verdadeira, promovendo o que poderia ser chamado como “o fim de seu ego”.
Para concluir, uma palavra sobre a presença de Tirésias neste texto. No texto “A Direção do Tratamento...” Lacan distingue uma vertente da interpretação que concerne ao objeto da pulsão e uma vertente que recai sobre a dimensão significante do sujeito.
A interpretação freudiana inexata, mas verdadeira sobre a interdição que o pai fez, na medida que se apresenta como um veredicto, visa a função do Outro simbólico na neurose obsessiva e demonstra que ela se acomoda por demonstrar o pai morto. Esta é uma interpretação que produziu efeitos de verdade no sujeito. Ela está fundada sobre o saber e conduz o sujeito a se engajar nas linhas do destino de sua determinação significante, interpretação oracular tal como a de Tirésias, o mestre da verdade da antiguidade. Ela se produz em nome de se atribuir uma significação entanto sentido imaginário. Ela se faz em nome do pai. Freud opera sobre o gozo com um significante para desalojar o desejo inconsciente, e esta interpretação freudiana se apóia sobre o Sujeito Suposto Saber, ou seja, sobre a vertente da transferência em interseção entre o imaginário e o simbólico.
Mas o desejo ou seu horizonte é incompatível com a palavra. Nesta vertente a interpretação do analista não tem o mesmo caráter que a anterior, ou seja o analista aí não é Tirésias, mestre da verdade, mas sim ele deve estar no lugar das mamas de Tirésias, como está escrito no Seminário XI. Esta é a vertente da interpretação que articula a transferência à pulsão em uma ultrapassagem entre o simbólico e o real. O analista aqui interpreta em nome do objeto ao qual ele será reduzido ao final de uma análise. Objeto sem-sentido, resto. Esclareço este objeto destacando sua função de semblante do real.

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