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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

“O lugar do desejo na direção do tratamento”

Hoje chegamos ao final de um longo percurso no qual foi possível trabalhar, passo a passo, o texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” de Jacques Lacan. Neste percurso procuramos traçar os caminhos que levaram Lacan a abandonar algumas posições, assim como a criar novas possibilidades no que concerne à direção do tratamento analítico. Buscamos tratar os conceitos que aqui surgiram em sua origem, nos textos de Freud e leva-los até o ponto em que Lacan os deixou no final de seu ensino, sem nos esquecermos do trabalho que vem sendo feito por JAMiller, Éric Laurent e outros colegas.
A conclusão deste nosso percurso se sustenta no trajeto do Grafo do Desejo, tal como Lacan o desenvolveu no Seminário VI e no texto “A subversão do sujeito...” Ali vamos poder concluir sobre o lugar do desejo e seu destino no final de uma análise.
Lacan nos chama a atenção para “a importância de preservar o lugar do desejo na direção do tratamento” e de sua orientação em relação aos efeitos da demanda. No Grafo, verificamos onde se localiza a articulação do sujeito à demanda em seqüência ao pequeno “d”. Este pequeno “d” diz, em primeiro lugar, do desamparo ao qual o sujeito se vê submetido pela sua própria condição de nascer na mais absoluta dependência ao Outro. É desta posição, também, que decorre a articulação da demanda à necessidade.
O desejo, portanto, vai “transparecer na demanda”, mas seu lugar é mais além, assinalando que nada adianta sua satisfação para se ter acesso à mensagem endereçada pelo sujeito. A mensagem nasce no lugar do Outro e cabe apenas ao sujeito saber “a marca que recebe de seu dito”, sendo que é a partir desta marca que pode ser reaberto o caminho ao seu desejo. Esta marca nós a conhecemos como traço unário, aquele que se constitui no centro mesmo da constituição do sujeito e, por isso mesmo, na formação do sintoma e da demanda. 
Lacan nos chama a atenção para o fato de que o desejo, no final das contas, “nada é senão a impossibilidade da fala”,  da mensagem, sendo que ela apenas reduplica no campo do Outro a marca primeira que diz que este sujeito é apenas um sujeito. O discurso do mestre nos diz disto ao explicitar que o sujeito é apenas representado por um significante para outro significante.
Por isso torna-se infrutífera toda tentativa de “reduzir a demanda a seu lugar”, mesmo que isso, aparentemente, reduza o desejo “através da atenuação da necessidade.”
Lacan, em seguida, retoma a questão da transferência e, mais uma vez, nos lembra que a identificação com o significante onipotente da demanda acaba por ser um empecilho ao tratamento, pois reduz a transferência à sugestão. No entanto, esta é diferente da identificação ao objeto da demanda de amor: “A identificação com o objeto como regressão, por partir da demanda de amor, abre a sequência da transferência, ou seja, a via em que poderão ser denunciadas as identificações que, detendo a regressão, a escandem”. Entendo o objeto da demanda de amor como sendo o nada, o semblante que porta em seu seio o Agalma.
Os conceitos de transferência e sugestão são, então, retomadas para levar-nos ao “desejo”: “A resistência do sujeito, quando se opõe à sugestão, é apenas desejo de manter seu desejo. Como tal conviria incluí-la na categoria de transferência positiva, já que é o desejo que mantém a direção da análise, fora dos efeitos da demanda”. Esta afirmação é muito importante, pois dá o tom da diferença entre a clinica lacaniana e as que lhe precederam, abrindo o campo para tratar a formação dos sintomas.
Lacan retoma o conceito de sobreterminação dos sintomas para tratar da questão da fantasia fundamental,  definido esta como uma “imagem utilizada na estrutura significante”: “digamos que a fantasia, em seu uso fundamental, é aquilo mediante o qual o sujeito se sustenta no nível de seu desejo evanescente, evanescente na medida que a própria satisfação da demanda lhe subtrai seu objeto”.
É a fantasia, portanto, que determina a reposta do sujeito à demanda, ou seja à significação de sua necessidade. Voltemos ao andar inferior do Grafo, depois que apontamos o lugar do desejo. Fica mais claro, agora, que este circuito mais amplo traz à significação do Outro um outro estatuto, pois coloca em cena, além da demanda, os limites do ser, “fazendo com que o sujeito se interrogue sobre sua falta, na medida em que ele aparece a si mesmo como desejo.”
Esta articulação teórica permite a Lacan revisar os conceitos de passagem ao ato e acting out, que foram utilizados das mais diversas maneiras pelos analistas em uma certa época: “recaída do sujeito” ou “falha do terapeuta.”
Para não cair no engodo de uma interpretação falaciosa da realidade, é preciso que o analista capte a transferência na distância que se define entre a fantasia e a chamada resposta adaptada. Daí uma lembrança à feiticeira Circe da Odisséia de Ulisses. Ainda nesta linha ele faz uma alusão aos Estábulos de Augias , se perguntando quem é que vai limpar a grande sujeira que se fez com toda essa parafernália imaginária.
Um pequeno resumo, fornecido pelo próprio Lacan no início da parte 18 merece ser trabalhado. Ele nos adverte sobre um poder infinito: o poder de fazer o bem e o diferencia do que se trata em uma análise: “da verdade, ou seja, da única, da verdade sobre os efeitos da verdade”. Édipo renuncia ao poder no momento em que envereda pelos caminhos da verdade.

1 – “Que a fala tem aqui todos os poderes, os poderes especiais do tratamento;”
Podemos retomar a importância do significante e da forma como Lacan o subverteu a partir de Saussure para saber como ele desenvolveu o que costumamos chamar de andar inferior do Grafo, aonde código e mensagem vão se enlaçar determinando uma significação onde o sujeito acaba por ficar preso.

2 – “Que estamos muito longe, pela regra, de dirigir o sujeito para a fala plena ou para o discurso coerente, mas que o deixamos livre para se experimentar nisso;”
Os conceitos de fala vazia e fala plena foram mencionados em nosso percurso, logo nas primeiras postagens, para dizer deste cruzamento do eixo do imaginário sobre o simbólico que encontramos no Esquema L. Foi também explicitado que Lacan abandona esta idéia de fala plena tão logo percebe que o estruturalismo deixa questões no que diz respeito ao Simbólico ser capaz de dar conta do Real, uma vez que sua operação deixa sempre um resto. Disto é testemunho este item dois, onde ao sujeito é dada a “liberdade” de experimentar ou não o que a análise lhe oferece.

3 – “Que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar;”
Este item toca na questão da falta a ser e o que está grafado como S(A/). Ali onde a liberdade vai trazer como consequência apenas a garantia de que cada um deve se responsabilizar por seus atos e decisões.

4 – “Que a demanda é propriamente aquilo que se coloca entre parênteses na análise, estando excluída a hipótese de que o analista satisfaça a qualquer uma;”
Este item toca o que estivemos comentando recentemente quando trabalhamos a questão da demanda em sua articulação com a necessidade e o desejo. Não colocar a demanda entre parênteses é colocar em risco a análise, uma vez que se pode, com isto, confundir o desejo com a necessidade, ao mesmo tempo que, como vimos hoje,  se pode rebaixar a transferência à sugestão.

5 – “Que, não sendo colocado nenhum obstáculo à declaração do desejo, é para lá que o sujeito é dirigido e até canalizado:”
Retoma-se aqui a questão da falta-a-ser, como causa que vai transparecer na medida em que o desejo, sendo um desejo que se sustenta em um vazio, não se confunde com a demanda. Aqui temos um resumo a política da Direção do Tratamento: ela visa a falta-a-ser.

6 – “Que a resistência a essa declaração, em última instância, não pode ater-se aqui a nada além da incompatibilidade do desejo com a fala.”
Por fim, uma conclusão sobre a questão do sujeito em sua relação com o objeto e a impossibilidade que se impõe a partir mesmo do Real que habita o ser-falante. Há uma incompatibilidade entre o Simbólico e o Real que o amalgama imaginário não consegue tamponar, por se tratar da falta de palavras que dê conta do desejo. Costumo dizer, buscando em Lacan uma referência de seu texto “De nossos antecedentes”, que o sujeito em análise deve ser levado, a partir de seu sintoma, a um ponto de impossibilidade tal que sua única saída é fazer esse sintoma retornar em efeitos de criação. Assim é a palavra que, levada ao seu extremo pode, eventualmente, retornar em efeitos de poesia. O matema S(A/) é, mais uma vez, convocado para nos esclarecer este ponto. Ponto este que deve ser apontado a cada interpretação pelo silêncio que se faz, enaltecendo o dizer por detrás do dito, assim como o dedo erguido de São João de Leonardo, “para que a interpretação reencontre o horizonte desabitado do ser em que deve se desdobrar sua virtude alusiva”.

Para concluir, Lacan nos lembra que se trata de tomar o desejo ao pé da letra, pois só assim vamos poder capturar o desejo em suas entranhas. Este é o “Esforço de Poesia”. É fundamental, portanto, que o analista seja um letrado. Freud o foi e isso está escrito em seus trabalhos em torno de seus próprios sonhos.
E Lacan dá sua fórmula de um final de análise fazendo, mais uma vez, menção a Freud:
“Homem de desejo, de um desejo que ele acompanhou a contragosto pelos caminhos onde ele se mira no sentir, no dominar e no saber, mas do qual soube desvendar, somente ele, qual um iniciado os antigos mistérios, o significante impar: esse falo o qual recebe-lo e dá-lo são igualmente impossíveis para o neurótico, que ele saiba que o Outro não o tem ou que o tem, pois, em ambos os casos, seu desejo está alhures – em sê-lo -, e porque é preciso que o homem, macho ou fêmea, aceite tê-lo ou não tê-lo, a partir da descoberta de que não o é.”
 

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