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terça-feira, 27 de maio de 2014

Visitando o Seminário XI: O amor, a pulsão e o desejo (II)

Quanto ao que tantas vezes se fala: "liquidar a transferência", será que aponta para liquidar o sujeito suposto saber?
Este sujeito suposto saber alguma coisa de você, mas que na verdade não sabe nada, pode ser considerado liquidado no momento quando, ao final de uma análise ele começa, exatamente sobre você pelo menos, saber um pouco. “É pois no momento onde ele toma mais consistência, que o sujeito suposto saber deverá ser suposto vaporizar. ... se o termo liquidação tem um sentido, a liquidação permanente do que se trata é deste engano por onde a transferência tende a se exercer no sentido do fechamento do inconsciente.” Este mecanismo se refere à relação narcísica, por onde o sujeito se faz amável. “De sua referência àquele que deve lhe amar, ele tenta induzir o Outro numa relação de miragem onde ele o convence de ser amável.”
A identificação especular, imediata é apenas a sustentação da identificação que está em jogo aqui. Ela sustenta a perspectiva do sujeito no campo do Outro, de onde a identificação especular pode ser vista sob um aspecto satisfatório. “O ponto do Ideal do eu de onde o sujeito se verá, como se diz, visto pelo outro - isso que lhe permitirá se suportar numa situação dual, para ele satisfatória, do ponto de vista do amor. Enquanto miragem especular, o amor tem a essência do engano.” É aqui que se instala o único significante necessário a introduzir uma perspectiva centrada sobre o ponto do Ideal: 'I'. Este ponto, para que possa se tornar o ponto de visada tem necessariamente de se referir ao objeto ‘a’, desta forma teremos neste ponto onde se instala o sujeito suposto saber, um 'I(a)'.
É nesta convergência que a análise, chamada pela sua face de engano na transferência, denota que algo de paradoxal acontece: a descoberta do analista. Isto só é compreensível se o situarmos na ordem da relação de alienação. No entanto a visada do analisando é algo para além disto que se apresenta como traço de onde ele poderá ser visto como amável. Portanto, é como se o analisando dissesse a seu parceiro, ao analista: Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente eu amo em ti qualquer coisa mais do que tu - o objeto ‘a’, eu te mutilo.” Podemos continuar com esta suposta fala do paciente que, apesar do acento oral, nada tem a ver com a amamentação, mas sim com a mutilação: "Eu me dou a ti, mas este dom de minha pessoa - mistério! se transforma inexplicavelmente em um presente de merda."
Quando esta virada é obtida, ao termo da elucidação interpretativa, compreende-se a vertigem da pagina branca, desta barragem sintomática de todo acesso ao Outro.
Podemos instalar aqui o primeiro andar do Grafo:
 
​s(A). ---------> A
 
O que se passa quando um sujeito começa a falar ao analista: na verdade é a ele que é oferecida qualquer coisa que vai, de início, necessariamente, se transformar em demanda. Mas o que o sujeito demanda, já que ele sabe que, qualquer que seja seu apetite, quaisquer que sejam suas necessidades, ninguém encontrará aí satisfação, senão a de aí organizar seu menu.
A fábula que Lacan conta do sujeito que para diante de um menu em chinês e demanda que lhe traduzam. Depois, mesmo tendo em mãos a tradução, ele, não conhecendo o que lhe é oferecido, demanda finalmente: “aconselhe-me". Isto quer dizer - o que eu desejo aí dentro, é você quem sabe.
Se está fábula quer dizer alguma coisa, é porque o desejo alimentar tem um outro sentido que a alimentação. Ele é aqui o suporte e o símbolo da dimensão do sexual, único a estar rejeitado do psiquismo. A pulsão em sua relação ao objeto parcial está aí, subjacente.
Ao analista, não é suficiente que ele suporte a função de Tirésias, é preciso ainda, como o diz Apollinario, que ele tenha mamas. “Eu quero dizer que a operação e a manobra da transferência são reguladas de maneira a manter a distância entre o ponto de onde o sujeito se vê amável, - e este outro ponto onde o sujeito se vê causado como falta pelo ‘a’, e onde ‘a’ vem tamponar a brecha que constitui a divisão inaugural do sujeito."
O pequeno ‘a’ não ultrapassa jamais esta brecha. Reportem-se ao termo mais característico a apreender a função própria do objeto ‘a’: ao olhar. Este ‘a’ se apresenta justamente, no campo da miragem da função narcísica do desejo, como o objeto ideal, se podemos dizer, que permanece atravessado na garganta do significante. É neste ponto de falta que o sujeito tende a se reconhecer.
Se tomamos o oito interior como a figura topológica que melhor diz desta situação que acabamos de descrever, verificaremos que uma linha atravessa a curva por um ponto a ser determinado. Esta linha transversa é, para nós, o que pode simbolizar a função da identificação.
Todo trabalho que conduz o sujeito, que se diz em análise, a orientar seu propósito no sentido da resistência da transferência, do engano do amor, bem como o da agressão - produz algo do fechamento, demonstrado pela própria curva que se gira em espiral em direção ao centro. E assim que podemos entender a identificação como conceito de fim de análise, como foi e ainda é muito cultivada em algumas teorias da clínica, muito diferente do que propõe a clinica lacaniana.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Sobre a impropriedade de chamar de "angústia" a experiência do psicótico. Conversando com Musso Greco.

Oi, Celso, 

Estava procurando um texto seu que distingue a angústia (própria da neurose) da experiência psicótica de gozo. Lembro-me que já conversamos sobre a impropriedade de chamar de "angústia" a experiência real de fragmentação e horror que experimenta o psicótico.


Olá! Musso,

Realmente sempre disse e eu continuo a dizer isto: a experiência do psicótico que ainda insistem em chamar de angústia não pode ser assim nomeada. Eu prefiro chamá-la perplexidade, horror ou até mesmo pânico, mas não podemos denomina-la como angústia. Tenho isto escrito em alguns textos de forma pontual. Caso encontre algum lhe comunico,  mas certamente os fundamentos de minha justificativa se encontram no texto conhecido como "Caso José" - "Do delírio ao ato" - e que se encontra em meu livro "Psicanálise Caso aCaso".
No entanto, posso lhe resumir aqui meus argumentos:
Em primeiro lugar, e penso que isto já define por si só, temos que levar em conta o conceito de angústia como sendo o que acontece quando "a falta falta" o que traz a presença de um objeto que não deveria estar ali trazendo, como nos esclarece Freud, um sinal de perigo. Ora, na psicose sabemos que o objeto não se perdeu, pois a entrada na linguagem não propiciou o estabelecimento de um discurso. O significante não se presta a uma interpretação como acontece na neurose, a partir de uma fantasia que se estutura como fundamental e que se construiu na constituição do sujeito. O significante chega como presença real, sempre! Ao psicótico só resta tratar isto produzindo um delírio no lugar onde a fantasia deveria sustentar a relação do sujeito ao Real. Dai decorre também a falta de uma estabilidade própria da psicose (mesmo que tenhamos delírios bem estruturados, o psicótico tem que interpretar e inventar a cada vez - por isto se pode dizer que o psicótico é o mestre do significante). Em outras palavras não existe a estabilidade de um binário S1-S2 que propicia a ex-sistência de um sujeito em posição de desejar um objeto ($<>a). Temos, portanto, um delírio que vai se moldando às presenças, sempre renovadas, de significantes na sua face Real.
Outra consequência disto e que nos ajuda a entender o que digo sobre não podermos falar de angústia é o fato de que na psicose não existe a pulsão. Podemos até constatar a presença dos elementos pulsionais, mas a pulsão permanece fragmentada, pois se objeto não foi extraído do campo do Outro, o circuito da pulsão não pode acontecer. A libido não pode investir um objeto pois ele está presente, enquanto Real. Então, diante desta impossibilidade a curva se volta a sua origem e o resultado é perplexidade!
Bem, podemos continuar a conversar

terça-feira, 13 de maio de 2014

Visitando o Seminário XI: O amor, a pulsão e o desejo (I)

À pergunta que lhe fez M. Safouan sobre a diferença entre o objeto na pulsão e no desejo, Lacan responde que, na verdade  trata-se apenas de uma questão de terminologia. “Os objetos que estão no campo do Lust tem uma relação tão fundamentalmente narcísica com o sujeito, que ... o mistério da pretensa regressão do amor, na identificação, tem sua razão na simetria desses dois campos: Lust e Lust-Ich. O que não se pode guardar fora, tem-se sempre a imagem, dentro: a identificação ao objeto de amor.” Assim Lacan define, em poucas palavras o “objeto de amor”.
No entanto, há uma diferença fundamental entre você dizer “eu amo um guisado de carneiro” e “eu amo fulana de tal”. Esta diferença não está, nem na forma, nem no fato de você dizer, mas sim no fato de você poder dizer isto à fulana de tal.
A bela açougueira ama o caviar, mas ela não o quer. É por isso que ela o deseja. “Compreender que o objeto do desejo, é a causa do desejo, e esse objeto causa do desejo, é o objeto da pulsão - quer dizer o objeto em torno do qual gira a pulsão. Não quer dizer que o desejo se enganche ao objeto da pulsão - o desejo aí faz volta, na medida em que ele está agindo na pulsão. Mas nem todos os desejos, forçosamente agem na pulsão. Há também os desejo vazios, os desejos tolos, que partem justamente disso - trata-se do desejo disso que, p. ex. você está se defendendo. ... o que não deixa você fazer outra coisa senão aí pensar."
 
 
Lacan vai trabalhar o que ele considera o eixo, uma das noções  fundamentais do Seminário XI: a dustuchia, o mal-encontro. E ele o faz começando por interrogar “qual é ordem de verdade que nossa práxis engendra?”
Para tentar responder esta pergunta, Lacan percorreu os quatro conceitos de base: o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão. Mas é na exploração do conceito de transferência, que encerra este seminário, que podemos colocar, com Lacan, a questão que vai nortear o último capítulo: “como nos assegurar que não estamos na impostura?”
Todo o caminho feito para diferenciar o objeto de amor, do objeto na pulsão e no desejo visa exatamente fazer avançar o que há de verdade na práxis psicanalítica.
Colocar em questão a análise faz sentido se levarmos avante o que está em suspenso não só na opinião, mas na vida íntima de cada psicanalista, a impostura plena, contra a qual o psicanalista se arma de um certo número de cerimonias, de ritos.
Este questionamento repete o que os homens das luzes, que também foram os homens do prazer, fizeram quando questionaram a religião como uma impostura. Isto no século XVI, o que não impediu que a religião goze ainda de um respeito universal.
O que se destaca neste ponto é a crença, que impõe uma alienação fundamental. “É só no momento onde a significação da crença parece, o mais profundamente, se esvanecer, que o ser do sujeito vem à luz a partir do que era, falando propriamente, a realidade desta crença”.
O final da Idade Média foi marcado por uma separação entre a ciência e a religião, tirando aquela dos grilhões da fé.  Foi São Tomás de Aquino quem abriu as portas para que pudéssemos sair da Igreja, da prática de alienação fundamental na qual de sustenta toda crença, ao retomar Aristóteles na tentativa de cristianizá-lo ao buscar a grande síntese da fé e do conhecimento. O que propiciou esta associação foi exatamente o fato de Aristóteles acreditar na causalidade. Assim, tanto para São Tomás, quanto para Aristóteles, podemos dizer que há uma causa primordial que coloca em marcha todos os processos da natureza.
É porque a ciência se situa neste ponto preciso da separação é que ela pôde sustentar o modo de existência do sábio, do homem da ciência. Ameaçado, então, pela religião, o cientista teve que se manter ao abrigo de questões que a própria ciência lhe colocava. Isto do ponto de vista social, já que quanto ao estatuto a dar ao corpo da aquisição cientifica, era uma tarefa mais simples.
“Este corpo da ciência, só podemos conceber o alcance ao reconhecer que ele é, na relação subjetiva, o equivalente a isso que chamei aqui o objeto pequeno ‘a’.”
Por isso é que à questão do que é, na psicanálise, redutível ou não à ciência se explica, em efeito, num para-além da ciência - tomamos 'A ciência' aqui no sentido moderno, a partir de Descartes. Este para-além é o que pode levar a psicanálise a ser classificada no grau da Igreja, portanto, como uma religião.
A única maneira de abordar este problema é partir disso que a religião, entre os modos do homem se colocar a questão da sua existência no mundo, e mais além, a religião como modo de subsistência do sujeito que se interroga, distinguido por uma dimensão que lhe é própria, e que é marcada por um esquecimento. Neste ponto podemos introduzir o sacramento, como algo operatório.  “Não podemos evocar esta dimensão operatória sem perceber que no interior da religião, e por razões perfeitamente definidas - separação, impotência, de nossa razão, de nossa finitude - é isso que é marcado no esquecimento”.
Esquecimento este que também marca a análise que encontra, na cerimônia, no ritual, isso que podemos chamar de 'mesma face vazia'.
“Mas a psicanálise não é uma religião. Ela procede do mesmo estatuto que 'A ciência'. Ela se engaja na falta central onde o sujeito se experimenta como desejo. Ela tem o mesmo estatuto mediador, de aventura, na brecha aberta no centro da dialética do sujeito e do Outro. Ela não tem nada a esquecer, pois ela não implica nenhum reconhecimento de alguma substância sobre a qual ela pretende operar, nem mesmo sobre a sexualidade.”
Aliás, sobre a sexualidade ela opera quase nada, ainda não se inventou nada de novo à operação sexual. “A psicanálise só toca a sexualidade na medida em que, sob a forma da pulsão, ela se manifesta nos desfiladeiros do significante, onde se constitui a dialética do sujeito no duplo tempo da alienação e da separação. ... a psicanálise não tem, sobre o campo da sexualidade ... promessas, ela não tem porque não é seu terreno.”
 

terça-feira, 6 de maio de 2014

“O inconsciente é a política”

Quando Lacan, em seu seminário sobre a “Lógica da fantasia” nos diz não afirmar que “a política é o inconsciente”, mas sim que “o inconsciente é a política” ele abre um novo espaço levando em consideração os efeitos que se faziam incidir, sobre sua época, do declínio da função paterna e das consequências do “discurso do capitalismo” que fazem chegar o objeto ao zênite de nossa cultura.
A inexistência do Outro, como muito bem podemos trabalhar junto com Miller e Laurent no Seminário que ditaram em 1996/97, acaba por se materializar na constituição de outro Outro, estabelecendo parâmetros para a subjetividade contemporânea.
Este aforismo, “o inconsciente é a política”, na verdade constitui um desdobramento da afirmação inicial de Lacan: “O inconsciente é o discurso do Outro”. Esse “Outro tem muitas dimensões: social, como no exemplo do chiste; lógica, quando é a verdade que ele valida; e também política, quando se reduz sua função à do significante-mestre que captura o sujeito e o atrela a um trabalho cujo gozo é roubado."1
Acompanhando Lacan em “o inconsciente é a política”, levamos em consideração o que Freud constrói em sua análise do chiste, ou seja, que a formação do inconsciente é um processo social.
Hoje, temos uma estrutura social diferente da que fazia parte da vida de Freud: a globalização. O próprio nascimento da psicanálise, como um efeito social do final do século XIX, fez transmudar a sociedade disciplinar, cheia de imperativos e interdições que marcaram, essencialmente, a sexualidade. Era uma sociedade organizada a partir de uma hierarquia e presença da função paterna.
Talvez possamos estabelecer outro ponto importante na construção da nossa cultura neste início de século com o que se resume pelos acontecimentos de maio de 1968.
Este momento é conhecido como a manifestação de uma sociedade que recusava tudo o que caracterizava as instituições, os lugares pré-determinados, enfim uma sociedade disciplinar: “E proibido proibir!” cantavam os poetas.
Com esse movimento aconteceu um deslocamento da política para o plano da vida cotidiana fazendo confundir o público com o privado. A liberação do sujeito e a libertação das massas estavam colocadas em um mesmo lugar.
A participação da psicanálise se percebe quando as neuroses e o mal-estar na cultura foram demonstrados como consequência da repressão sexual e dos valores morais que sustentavam a cultura através de suas instituições. A psicanálise mudou o mundo, nos diz Miller em “Lacan e a Política”, pela via da transformação dos costumes e dos valores morais. Ao levantar o véu do recalque estabeleceu o “reconhecimento e aceitação da carne”, ou seja, a necessidade de satisfação das pulsões. Se isto falta, o que vai surgir é o mal-estar, a neurose, os sintomas.
É neste ponto que o capitalismo se aproveitou para oferecer uma satisfação na figura de substitutos comercializáveis do objeto a, do prazer imediato, dos corpos esvaziados que se prestam a uma troca na crença de fazerem existir a relação sexual.
Em um determinado momento, temos uma cultura que se estruturou em torno de um Outro social construído a partir da exceção fundadora do pai morto, um Outro que fazia um todo limitado, regido pela lei do incesto – onde a função do pai fazia limite, organizava e sustentava. 
Como a globalização colocou em questão as hierarquias e a tradição em nome do sempre novo, a psicanálise, com Lacan, pode restabelecer uma nova lógica, a partir mesmo da questão do feminino e inverteu o clássico: “não havendo exceção não há todo”, para estabelecer que “não havendo exceção há o nãotodo”. Este é o Outro que se apresenta hoje, nãotodo, resultado do declínio da função paterna, da função de exceção fornecida pelo Nome-do-Pai. Um Outro furado, inconsistente, sem fronteiras.
Para concluir transcrevo uma passagem no texto de JAMiller “Lacan e a Política”, já citado acima. Penso que assim poderemos nos colocar a pensar, mais uma vez, o lugar da psicanálise e, claro, do psicanalista, nestes tempos do Outro que não existe: 
“A psicanálise não é revolucionária, mas ela é subversiva, o que não é semelhante, (...) porque ela vai contra as identificações, o ideais, os significantes-mestres. Aliás, todo mundo sabe disso. Quando vocês vêem alguém que lhes é próximo começar uma análise, vocês temem que ele cesse de honrar seu pai, sua mãe, seu parceiro e o bom Deus. Quiseram fazê-la mais adaptativa do que subversiva, mas foi em vão. Em geral, é quando o sujeito é subvertido, destituído de sua mestria imaginária, quando sai da gaiola de seu narcisismo, ele tem uma chance de enfrentar todas as eventualidades.”2
Notas Bibliográficas:

1 – Miller, J.A – Lacan e Política em Opção Lacaniana Nº 40
2 – Idem.