Do objeto pulsional, passemos agora à pulsão escópica. Em primeiro lugar quero lembrar-lhes que, no campo escópico, o olhar não é uma visão atenta e dirigida, “o olhar é inseparável da falta constitutiva da angústia de castração”. Desta forma, o olhar vale “como símbolo da falta, quer dizer, do falo, não enquanto tal, mas na medida que ele faz falta" (a/-j).
Para Lacan, “na nossa relação às coisas, tal que ela é constituída pela via da visão, e ordenada nas figuras de representação, qualquer coisa desliza, passa, se transmite, de estágio em estágio, para aí se ver sempre e a qualquer grau, elidida - é isto que chamamos o olhar”. (Lacan Sem. XI)
Tal definição coloca o olhar fora do visível, fazendo furo no agenciamento das representações. Em outras palavras, no campo do percebido podemos dizer que o olhar torna presente a parte elidida como libidinal. Nisto, por ser presença de furo, um vazio, ele é condensador de gozo.
É esta a divisão radical entre o olho, órgão da visão, e o olhar, objeto "a" da pulsão escópica, “reduzido, por sua natureza, à uma formação puntiforme, evanescente” (Lacan, Sem. XI).
Para o sujeito, o que vai se desnudar aí é a pré-existência de um olhar: “Eu só me vejo de um ponto, mas, na minha existência eu sou visto de todos os lados” (Lacan, Sem. XI)
Ora, isto quer dizer que o olhar está fora e que é do lugar do Outro, em primeiro lugar, que isso olha, assim como no sonho, podemos dizer, que isso mostra.
Podemos, então, concluir o que seja o paradoxo desta divisão do olho e do olhar: isso que é mostrado do lugar do Outro ao sujeito, que não pode ver, o olha. Mas aí é que está o ponto: isso que o olha, que é o objeto "a" e o causa como aquele que quer ver, permanece impenetrável, para além da visão , deixando o sujeito na sua ignorância: “O olhar que eu encontro (...) não é, de jeito algum, um olhar visto, mas um olhar imaginado por mim, no campo do Outro” (Lacan, Sem.XI)
No intuito de colocar às claras a teoria que desenvolvi até aqui, vou tomar a clínica. Trata-se de um caso de voyeurismo, retirado da literatura ficcional, e que está descrito num excelente artigo de Hervé Castanet intitulado : “Sobre um caso de voyeurismo tirado da obra de Pierre Klossowisk”. Este artigo está publicado na Revue de Psycalanyse, La Cause Freudienne, 25.
Para que possamos acompanhá-lo, vou fazer duas escanções, na apresentação que Castanet faz a este caso. A primeira é sobre o “quadro” e a segunda, sobre “voyeurismo”.
O quadro é inseparável da luz. O ponto luminoso é o “ponto de irradiação, jorro, fogo, fonte abundante de reflexos”. É desse ponto luminoso que tudo me olha. É exatamente porque o olhar está assim colocado que ele não está congelado, nem imóvel e, portanto, não é referendado como tal: “Isto que me olha é sempre algum jogo da luz e da opacidade (...) que participa sempre da ambigüidade da jóia”.
O olhar se elide no espelhamento, no cintilar que especifica o ponto luminoso.
O quadro é isto que, nos jogos de sombras e luz, faz tela, isso que faz mancha na visão. O sujeito, aí, deve ser colocado como estando sob o olhar do Outro, fora. É por isso que para este olhar do Outro, ele faz mancha no quadro. (É o que Lacan chamou, em Subversão do Sujeito de ponto de opacidade subjetiva) - “Sem dúvidas, no fundo de meu olho se pinta o quadro. O quadro visto, está no meu olho. Mas eu, eu estou no quadro” (Lacan, Sem. XI). Eu estou aí, preso, capturado por isso que me olha e que eu ignoro. No quadro, portanto, o sujeito deve se referendar como tal, na medida em que é aí que se encontra, cifrado, isso que o causa como desejoso.
É como se disséssemos: você quer olhar, pois bem, veja então isto! E aí lhe será oferecido algo a ver (um quadro, p.ex.) que recobre, esconde, isso que o sujeito quer ver.
A relação do olhar a isso que se quer ver é uma relação de engano. O sujeito se apresenta como outro que ele não é, e isso que se lhe dá a ver não é o que ele quer ver, pois o que ele quer ver, e que olha não é visível ... para além do quadro como tela não há nada.
Esse nada é o olhar, é o buraco central e esvaziado que faz existir o quadro como tal e institui o sujeito no visível.
A segunda escanção é em torno do voyeurismo:
À pergunta:”o que se passa no voyeurismo?, Lacan vai responder que “no momento do ato do voyeur (...) o sujeito não está aí enquanto o que se trata de ver (...) ele está aí enquanto perverso e ele se situa no final da curva pulsional. Quanto ao objeto (...) a curva gira em torno dele, ele é o míssil (...) o objeto é aqui olhar - olhar que é sujeito (...) que faz a mosca do tiro ao alvo”.
Isto o sujeito alcança por um processo rigoroso de desubjetivação. Neste ponto o sujeito não pode mais nem dizer, nem ver porque, ao se tornar ele mesmo olhar, ele se tornou o que tão avidamente vinha buscando ver. Assim, ao se tornar o que buscava não verá mais nada e o objeto lhe escapará.
Identificando-se, portanto, ao que lhe divide, este resto esvaziado do jogo significante, ele não pode mais dizer, nem explicar. Fascinado, ele estará silente e ... cego.
Por isso é que Lacan nos diz que o voyeur, na verdade, busca “o objeto enquanto ausência. Isso que ele busca e encontra, não é mais que uma sombra, uma sombra por detrás da cortina... Isso que ele busca não é, como se diz, o falo, mas justamente sua ausência...”
Em outras palavras, efetivamente, por detrás da cortina, para além da tela pintada, há nada, malgrado todas as elucubrações, e esse nada é o olhar que o sujeito se torna, para-além, quando seu alvo é atingido.
Véu, tela, pintura, rasura, são artifícios para esconder o membro sexual, na medida mesmo de sua ausência na mãe (-j).
Quer se queria ou não o falo está sempre velado, enquanto significante que inscreve que o gozo falta ao sujeito, que a relação sexual é impossível. Como consequência, o percurso vai se esgotar em verificar o falo, a tentar fazê-lo reentrar no campo do uso, a tentar devolver ao corpo o gozo perdido, se tornando “um recuperador de gozo e, o objeto que ele substitui ao Outro, será um condensador do gozo perdido”. É como o perverso vai, ao se colocar no lugar da falta fálica como objeto que se faz ver, tentar trazer a esse Outro uma consistência de ser sexuado.
“Restituir o olhar como mais-de-gozar” ao Outro fará desse Outro um ser sexuado para-além da castração fazendo com que aí, onde corpo e gozo - incompatíveis desde a entrada do simbólico - sejam, enfim, compatíveis.
(Continua)
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