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terça-feira, 25 de novembro de 2014

O IMAGINÁRIO E A PULSÃO ESCÓPICA (III)

A história de Otávio, o colecionador
 
​Para se dar conta de “escrever um quadro”, ou seja “escrever isso que não se pode dizer nem se ver e que se mostra ao capturar seu espectador”, vamos convocar, com Hervé Castanet, à Otávio: 66 anos, admirador do Marechal Petain, Professor de Direito Canônico e de Escolástica na Faculdade Católica. Otávio é casado com Roberta, uma jovem e bonita mulher. Seu hobby é colecionar quadros de um pintor desconhecido da segunda metade do século passado. Trata-se dos quadros de Frédéric Tonnerre. Otávio se orgulha de ser seu único colecionador.
​Otávio passa horas a olhar aquelas telas, a ponto de escrever, no seu diário que, pelo olhar, o seu, é que as telas tomam vida.
​Mas é exatamente nessa sua tentativa de “fazer” o quadro pelo olhar que Otávio fracassa. Ele fracassa diante do que ele denomina “a glória” da obra, glória, esta, que ele compara ao mistério do Santo Sacramento. “A glória do quadro, diz Castanet, é que há nele, segundo nosso colecionador, uma “presença real” que absolutamente a ultrapassa ...  Uma presença real que lhe olha, enquanto que ele, somente vê a pintura e a descreve” Assim, seu olhar não faz totalmente o quadro e alguma coisa perdura e o faz escrever longas descrições em seu diário.
​Mas, o que, na verdade prende Otávio e o faz estabelecer um catálogo de suas obras está na epígrafe de seu diário. Trata-se de uma frase de Quintiliano: “Alguns pensam que há um solecismo no gesto, todas as vezes que, por um movimento da cabeça ou da mão, damos a entender o contrário do que se diz”. É, portanto, o solecismo o único motivo pictorial dos quadros de Tonnerre.
​Diante deste ponto em que a pintura se cala é que Otávio vai dizer: “trata-se do desvelamento de uma violência, onde uma mulher está aí implicada. O que Tonnerre quer  exprimir é esta simultaneidade da repugnância moral e da irrupção do prazer na mesma alma, no mesmo corpo”. Este ponto de báscula, mostrado por uma mulher, é o que fascina Otávio.
​Isto se explicita no quadro de “Lucrécia”, a heroína romana, que Otávio descreve com precisão: “se ela cede, aos avanços de seu conquistador, ela trairá evidentemente; se ela não cede, ela passará por ter traído, pois, morta pelo seu agressor, ela será caluniada, por acréscimo”. Ao descrever o quadro, Otávio “vai perseguir aquele ponto de irrupção de prazer no corpo, ainda preso na repugnância, expressa pela posição das mãos que vão dizer de um desejo, ao mesmo tempo que evitam o crime”.
​Sabemos que o personagem sadiano não obtém a adesão de seu interlocutor pela argumentação, mas sim por sua cumplicidade, que é afinal de contas, o que Otávio aponta no solecismo, na ambiguidade dos gestos.
​Toda esta situação vai enfim questionar e embaraçar Otávio, “ao se fazer olhar, não é o ‘como pode gozar do Outro?’ que lhe atormenta, mas como e de que goza o corpo do Outro, prioritariamente tornado presente por uma mulher: ... Como mostrar e, portanto, como ver e fazer ver o gozo feminino?” É esta, no final das contas, a paixão de Otávio, que busca “este ponto onde o corpo da mulher dissimula os charmes, tanto mais exuberantes quanto mais eles são velados, pontos-bascula que a mancha de carne revela ao se furtar à vista” comenta Otávio e conclui que: “sem pintura não há dito”.
​Para levar isto às suas últimas conseqüências, Otávio passa a colecionar quadros vivos, colocando em cena personagens de carne, procurando imitar a arte pela vida: “a vida se dando em espetáculo ela mesma; a vida permanecendo em suspenso”, num esforço de “passar por detrás de nossa vida para olhá-la”.
​Todo o processo é de observar esta vida sob a “sensação de desaparecer como sujeito: (...) a visão é para mim, insiste Otávio, a última chance de saída (...) a única certeza de minha existência consiste no fato de ver isso que chega quando se crê que eu aí não sou”. É assim que Otávio se torna “todo inteiro olhar envolvido”. É deste lugar que ele vai colocando em cena, uma a uma, as pinturas de Tonnerre, na intenção de obter esta “simultaneidade da repugnância moral e da irrupção do prazer na mesma alma, no mesmo corpo”. E ele aí vai implicar, sistematicamente, sua mulher Roberta.
​Otávio passa, então, a descrever as cenas congeladas nestes quadros vivos, onde Roberta é a jovem pura, submetida aos impuros apelos  que vão despertar nela a irrupção do prazer. Cenas em que Roberta é descrita como estando inteiramente nas passagens e é reduzida ao ponto-báscula, imobilizada por homens desconhecidos que abusam dela. Otávio vai definindo, passo a passo, as regras perversas onde Roberta se torna uma puta: “É o momento tanto perseguido, nos diz Castanet, o instante da porta aberta onde os semblantes se desmancham deixando aparecer a verdade da essência da esposa: seu gozo próprio, o mal e sua irrupção, sem palavras, sinaliza a morte de Deus”.
​É a maneira de desconectar o corpo dele mesmo, de trazer à tona “uma força estranha ao interior do significante”: as forças da não palavra. Do que se trata, afinal de contas, é de extorquir ao outro, para-além do semblante fálico, o Outro gozo que ele esconde.
​A escolha dos homens estranhos acontece por produzir, em Roberta, exatamente o “frisson” que satisfaz e que sinalizará a irrupção do gozo que a divide e a deixa sem palavras.
​Mas, novamente Otávio fracassa, como diante dos quadros de Tonnerre. Para repetir infinitamente seus quadros vivos, ele segue atribuindo este fracasso à Roberta não ter seguido, precisamente, as suas regras. O que ele não sabe é que, na verdade, o que ele tenta é delimitar esse real (a glória da tela) que jamais será redutível à rede significante. Este real que é o buraco delimitado no coração central do quadro, ponto esvaziado, para o qual olha nosso herói, exatamente aí onde não pode vê-lo.
​Cada vez mais insuportável, o fracasso constante leva Otávio a lançar-se, ele mesmo na cena. O quadro escolhido é o da “Bela Envenenadora”. É um quadro que procura ilustrar uma cena de incesto. Otávio demanda a Roberta mais uma participação. Mais uma,  para que ele possa saber enfim! Para que ele saiba, enfim, o que é Roberta.
​E Otávio decide: “deve morrer para se reduzir a um puro olhar, propriamente falando, eterno: ‘Eu verei sempre! Exclama...’ Morrendo, nosso sujeito perverso tenta - tal é o ponto de sua fantasia que assim libera sua lógica - se colocar definitivamente do lado do Outro. Ao colocar em cena sua morte, ele ensaia se equivaler ao Outro, absoluto, não barrado, que concretizará o gozo que nenhum significante virá encantoar ou furar...  e se libertará definitivamente de sua divisão. (...) Morto, Otávio não dirá mais nada, nada mais de ‘Che Vuoi?’ tormentoso”. Assim ele tenta apagar do Outro toda falta que se simboliza pelo corpo dA mulher [S(A/)].

​Para concluir: “Tal teria sido, a partir desta Tiquê inaugural, o destino subjetivo de Otávio. Para se fazer olhar cego da ‘emoção satisfeita’ de sua esposa, onde ele tentou ver se desdobrar o gozo do corpo do Outro que não tem forma, nem nome, S(A/), ele vai até desaparecer. Otávio não pode chegar a se fazer voyeur absoluto de Roberta, tornando-se definitivamente Outro. Ele será, enfim ‘voyeur’ do gozo feminino, mas morto, Outro absolutamente”

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