Total de visualizações de página

segunda-feira, 27 de julho de 2015

A leitura de uma ficção: A História Sem Fim

É inevitável recortarmos os textos que lemos, de acordo com este ou aquele momento de nosso interesse, à maneira como a pulsão recorta o campo do Outro em busca de um objeto que, ali, acena como possibilidade. Neste trajeto que se repete indefinidamente alguns fragmentos, conceitos, ou até mesmo palavras, permanecem vivas em nossa memória, insistindo. Um destes fragmentos se encontra no texto “O estádio do espelho...”, de J. Lacan: “A assunção jubilatória de sua imagem especular pelo ser ainda mergulhado na impotência motriz e na dependência da amamentação, que é o pequeno homem neste estado de infans nos parece, desde então, manifestar em uma situação exemplar, a matriz simbólica.”
Se for verdade que várias questões se apresentam a partir deste parágrafo, a que escolho para levar a termo, hoje, diz respeito à matriz simbólica e pode ser exposta da seguinte maneira: Qual é a relação desta matriz simbólica com o conceito lacaniano de traço unário e o conceito freudiano de Ideal do Eu? Esta questão se coloca, pois é, exatamente, deste traço unário que se constrói uma ficção. Ficção que se fixa em uma cena e estrutura uma história, estabelecendo os rumos de uma vida.

Para tentar dar conta do que me proponho vou recorrer à literatura, “A História Sem Fim”, de Michael Ende: Bastian Baltazar Bux é um menino de mais ou menos 11 anos, gordo, desajeitado, desprezado por seus professores, seus colegas, e por si mesmo. Tendo perdido a mãe, viu-se abandonado pelo pai, absorvido que este estava em seu próprio luto. Sua única satisfação era os “livros que contavam as aventuras fabulosas de criaturas fantásticas e em que se podia imaginar tudo o que se quisesse. ... talvez  a única coisa que  (Bastian) soubesse fazer bem (era) imaginar uma coisa com tanta clareza, que era quase capaz de a ver e ouvir”.
 Freud, em seu texto sobre “Escritores criativos ...” nos diz que “uma das razões para as fantasias são os desejos insatisfeitos e, cada fantasia é a satisfação de um desejo, uma correção da realidade”.
Foi com esta disposição imaginativa que Bastian se assentou num pequeno sótão de seu colégio para começar a ler um livro que acabara de roubar. Na verdade ele apenas pegou um exemplar que estava lhe sendo oferecido pelo livreiro, numa espécie de faz de conta que eu não estou vendo e você pensa que o roubou. O interessante é que Bastian entrou na livraria em busca de socorro, de uma garantia, contra uma ameaça que estava sofrendo por parte de seus colegas. O livro trata da história do Reino de Fantásia, que se encontrava ameaçado por um perigo incrível: 

- Na nossa terra, dizia  um personagem, aconteceu uma coisa ... inacreditável... Ou melhor, está para acontecer ... é difícil de explicar ... começou assim: a leste de nossa terra há um lago... ou melhor dizendo, havia... Tudo começou quando, certo dia o lago desapareceu... pela manhã, não estava mais ali. Compreenderam?
- Não, quer dizer que secou? Disse um outro.
- Não. Se assim fosse, haveria ali um lago seco. No lugar onde havia o lago não havia nada... Nada mesmo, compreendem?
- Havia um buraco?
- Não, não havia um buraco.... um buraco ainda é alguma coisa. E ali não há nada e isso é que é difícil de explicar.
É como se uma pessoa ficasse cega, quando olhasse para esse lugar...” 

Em nenhum outro lugar encontrei uma descrição do REAL lacaniano, com tanta precisão, como nesta passagem, nos dizendo que ali onde o simbólico não se apresenta para que o imaginário promova a consistência borromeana, o que resta é nada. E reforçando esta aproximação, acreditem, este nada que ameaçava o mundo de fantásia só poderia ser contido se, “um filho do homem” viesse colocar fim à doença da Imperatriz Criança, a Princesa do Reino, dando-lhe um nome, como explicou o oráculo. 
À medida que Bastian lia o livro, ia identificando-se com o herói, o pequeno guerreiro Atreiú. Afinal, “cada história tem um herói, nos diz Freud,  que é o centro do interesse, para o qual o escritor tenta ganhar nossa simpatia por todas as maneiras e quem ele parece colocar sob a proteção de uma Provi­dência especial (...) ‘Nada pode acontecer comigo!’. Parece que através desta reveladora característica de invulnerabilidade, podemos imediatamente reco­nhecer ‘His Majesty The Ego’, o mesmo herói de todo sonho diurno e toda história.” A identificação de Bastian com o seu herói, seu duplo, segue num crescendo até um momento em que, quando Atreiú se olha no espelho dos hor­rores, vê Bastian e este o vê.
 Este ponto antecede o primeiro clímax do livro. Bastian se sente chamado, com insistência, a participar e, identificando-se cada vez mais vigorosamente com esta ou aquela passagem, vai criando a cada letra, a cada palavra, um contorno, um certo espaço, até o momento  em que surge um vácuo no mundo de Fantásia, provocando em Bastian uma reação inesperada: ele grita um nome para a Imperatriz Criança: “Filha da Lua”, e diz em seguida : “aqui vou eu”. 
Tomado por um enorme júbilo, ele passa a habitar o seio de Fantásia. 
É a “assunção jubilatória” de sua imagem, que vai se tornar o signo que verifica, aposteriori, a efetivação da identificação unificadora. Ela pode ser conside­rada, como nos diz Guy Trobas, juntamente com a angústia e a agressividade, “o triângulo dos afetos especulares”: Este afeto é a tradução subjetiva do sentido existencial que os juízos de atribuição e existência constroem a partir desta  identificação, na medida em que ela implica uma matriz antecipada, imaginária, disto que é causa da angústia: a não-especularidade do objeto. Conseqüência imediata da constatação de que o objeto está perdido, a constitu­ição do Outro se faz a partir desta marca simbólica que aí permanece como um pinçamento do imaginário, fornecendo-lhe um quadro da realidade, aonde o “eu” vai se precipitar em sua forma primordial para ser “o tronco das identificações secundárias”, passando, a imagem, a ser o umbral do mundo visível.
Seguindo o momento da entrada de Bastian no mundo de Fantásia, uma escuridão se fez presente, e aconteceu  uma “conversa como em sonhos...”: 
-  Onde estamos Filha da Lua?
-  Eu estou com você e você está comigo. 
-  Filha da Lua, é este o final? murmurou ele.
- Não, é o princípio, respondeu ela. 
- Onde está Fantásia, Filha da Lua? Onde estão todos os outros? ... Já não existem?
- Fantásia vai renascer dos seus desejos, Bastian, com minha ajuda, eles se transformarão em realidade. 
- Dos meus desejos? repetiu Bastian, admirado.
- Você bem sabe, ouviu ele dizer com a voz doce, que me chamam  a Senhora dos Desejos. Que deseja você?
- Quantos desejos posso formular?
- Tantos quantos quiser... quanto mais, melhor, Bastian. Fantásia será assim mais rica e variada. 
Bastian ficou surpreso e confuso. Mas exatamente porque se via perante possibilidades ilimitadas, não se lembrou de nenhum desejo. 
- Não sei, disse ele finalmente.
Reinou o silêncio durante algum tempo, e depois tornou a ouvir a voz de passarinho. 
- Isso é mau
- Por que?
- Porque assim não haverá Fantásia. 
Bastian ficou calado, sem saber o que fazer. Sua sensação de liberdade era perturbada pelo pensamento de que tudo dependia dele.
- Por que está tão escuro, Filha da Lua?, perguntou ele.
- O princípio é sempre escuro, Bastian. 
- Gostaria de voltar a vê-la, Filha da Lua! Sabe? Como a vi no mo­mento em que olhou para mim. 
Ouviu outra vez o riso suave e cantante.
- Por que está rindo?
- Porque estou contente.
- Por que?
- Porque você formulou seu primeiro desejo.
- Vai satisfazê-lo?
- Sim. Estenda a mão!
Ele obedeceu e sentiu que lhe punham alguma coisa na palma da mão. Era uma coisa minúscula, mas muito pesada. Irradiava frio e era dura e morta ao tato. 
- O que é isto, Filha da Lua?  
- Um grão de areia, respondeu ela. É tudo o que resta do meu reino sem fronteiras. Ofereço-o a você. 
- Obrigado, disse Bastian, espantado. A verdade é que não sabia o que fazer com aquele presente. Se ao menos fosse uma coisa viva!
Enquanto pensava no que a Filha da Lua realmente queria dele, sentiu umas leves picadinhas na mão. Olhou melhor para o que havia ali. 
- Olhe, Filha da Lua!, murmurou ele. Começa a brilhar! E agora, está vendo?, começa a sair do grão de areia uma chamazinha minúscula. É uma sementinha brilhante que começa a germinar!”

Este grão de areia é o que podemos dizer, uma segunda fase da matriz simbólica que estrutura a antecipação do eu (je). Neste momento, o que era uma matriz vai se constituir num grão-traço que se ordena, a partir de um dito primeiro que decreta, legisla e vai conferir ao outro real, sua obscura autoridade. Enquanto a matriz denuncia a “Coisa”, o nada, o traço é o que vai apagá-la. “Lacan  vai nos dar essa fórmula : Wo es war, da durch das Eins werde Ich - aí onde estava (a Coisa), aí pelo um advirei eu, e é o traço unário que vai fazer aparecer o sujeito como aquele que conta”. e, permanecendo um, pode estruturar a cena imaginária dando realização aos desejos e mergulhando Bastian num reino sem fronteiras, onde tudo se transforma... 
Em outras palavras, podemos dizer que este traço é o que vem no lugar original do sujeito que vai, como conseqüência, ser elidido para se reencontrar nas marcas das respostas que se fizeram capazes de traduzir seus gritos em apelos. Nasce daí uma possibilidade de que algo se repita, insista, neste ponto mesmo de impossibilidade que o lugar vazio do sujeito vai abrir no seio do Outro. É neste ponto que virá se servir o eu (moi) para fazer revalidar o seu poder enquanto o que vai estender o campo da ignorância, pois a função deste eu (moi) é manter este vazio, o desconhecimento. Do que se trata por­tanto, é de uma transformação do que era, na antecipação apenas uma matriz simbólica, em um traço de sustentação do significante enquanto tal : o traço unário
Se por um lado, o traço unário vai ser o que se repete na cadeia que se forma em conseqüência mesmo de seu surgimento, por outro lado, será a sustentação desta cadeia que vai circunscrever, envolver, dar forma a uma realidade onde os traços dos significantes vão constituir o Outro enquanto todo poderoso, colocando-o como tendo o poder de resposta. Esta será a constelação das insígnias que constituirão, para o sujeito, o Ideal do Eu  [I(A)], esta formação que virá neste lugar simbólico, ligando-se, por esta via, às coordenadas in­conscientes do eu, para dar-lhes consistência onde as imagens só fazem intro­duzir uma tensão sem fim : “eu não sou senão no outro e, ao mesmo tempo, ele permanece alheio, estranho; este outro que sou eu mesmo é outro diferente de mim mesmo”. Esta é a dialética que se estabelece entre Bastian e Atreiú.
Matriz simbólica, traço unário, ideal do eu, vários nomes para dizer do que vai propiciar a que uma imagem possa se estabilizar, mesmo com suas instabilidades, num eu ideal [i(a)] que carrega em si a marca de sua própria impossibilidade: este objeto a, impossível a negativar e que vai permanecer como opacidade subjetiva. É esta opacidade subjetiva que vai sustentar a cadeia significante, como efeito de discurso, e uma certa distância entre o Ideal do Eu e o Eu Ideal poderá ser mantida. Distância que vai apontar para a angústia de se deparar com desejo do Outro, e que o neurótico  tenta apaziguar respondendo às demandas do Outro como se elas fossem o seu desejo. Assim, o que falta [S(A)] ficará sempre num segundo plano. Esta é a ilusão que a fantasia propícia. “Uma resposta antecipada à questão radical do Outro”.
No entanto esta distância entre o ideal do eu e o eu ideal, só vai se sustentar se aconteceu um consentimento do sujeito para que o traço unário seja traduzido em um significante, o Nome-do-Pai. Significante este que, ao fazer-se herdeiro do Complexo de Édipo, vai sustentar-se como suplência entre o simbólico e o real fornecendo um limite para que o desejo saia do desvario imaginário para se suportar de uma cadeia simbólica. Caso contrário, a enfatuação da imagem, com seu curto circuito [no Grafo do Desejo - i(a) -m - I(A)] só vai dificultar o que há de transmissível da castração. 

À medida que a “História sem fim” segue o seu caminho, acompanhamos o nosso herói ir se perdendo neste curto-circuito, nos meandros das imagens plásticas, sempre confiando no símbolo que lhe fora entregue pela Imperatriz, a Senhora dos Desejos, que trazia no seu torso a seguinte inscrição: “Faça o que quiser”. A loucura, pouco a pouco ia tomando conta. Suas realizações nunca chegavam ao fim, pois não havia um eixo diretor. Enquanto isso, seu “eu” (moi) ia ocupando um espaço enorme, até o ponto em que, confrontando-se num combate por puro prestígio (a - a’), Bastian mata Atreiú. Isto, ao contrá­rio de aliviá-lo, só faz aumentar a angústia da falta de limites.  No entanto, Bastian havia consentido com a entrada de um traço, com a “bejahung” pri­mordial e sabia que se persistisse neste caminho iria ficar,  para sempre, no seio deste Outro, submetido a este desejo enlouquecido. 
Desesperado, sem conseguir fazer seu, o símbolo que havia recebido da Senhora dos Desejos, ele vai a busca de uma saída. 
Depois de percorrer vários capítulos, que o autor faz iniciar com letras que tem a seqüência  do alfabeto, Bastian se depara com o velho Yor, o mi­neiro. Solitário e cego, Yor tem  passado sua vida cuidando do que os homens já não se importam mais: as imagens de seus sonhos e fantasias. 
Bastian é acolhido pelo velho que, diante de sua angústia vai dizer-lhe  que será necessário buscar uma recordação, uma imagem qualquer que possa levá-lo até as “Águas da vida”, a porta de saída do Reino de Fantásia. Este objetivo, no entanto, só poderá ser alcançado se ele deixasse esvaziar da enfatuação que ainda apresentava. 
Vários dias se passaram, durante os quais, dentro dos labirintos das cavernas que formavam a base de Fantásia, Bastian aprendeu a localizar, na escuridão dos subterrâneos,  as pequenas placas de mica com as imagens dos sonhos dos homens, em busca das que lhe pertenciam. Durante este tempo, pouco a pouco, ele ia se esquecendo de si mesmo, até que, após muito procurar,  se deparou com uma imagem conhecida. Era uma imagem de seu pai. Quando isto acontece, ele percebe que já não se lembra mais de seu nome. Não havia mais nenhum significante que o pudesse garantir como ser, deixando à mostra o que é “a essência ausente do corpo, (...)  este ponto de ausência que o nome próprio recobre na sua função de designar o individuo, não como indivíduo, mas como alguém  que pode faltar ou desaparecer: feito para obturar os buracos e dar uma falsa aparência de sutura, o nome próprio sugere, ao mesmo tempo, o nível radical da falta”. O esquecimento do nome representava, portanto, o sinal de que a enfatuação narcísica chegava ao fim e uma passagem podia ser reali­zada, para além das garantias imaginárias. 
Sem nome e de posse da cena do pai, ele se despede do velho e caminha em direção à saída. Este é o segundo clímax da história. Diante da fonte das “Águas da vida”, Bastian, auxiliado pelo seu duplo, o herói Atreiú,  que ressurge trazendo no peito a ferida do combate, consegue gritar o Nome-do-Pai e, passando para além do Portal, para além do Pai, retorna à realidade, deixando defini­tivamente, o desvario de um mundo sem fronteiras.

Referências Bibliográficas:

Ende, Michael. A historia sem fim.Trás. Maria do Carmo Cary. São Paulo. Martins Fontes/Editorial Presença, 1985.
Freud, Sigmund. Edição Standard Brasileira. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1976.
Julien, Philippe. “Le retour a Freud de Jacques Lacan, Littoral, Toulose
Lacan, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
Trobas, G. - Le triangle des ‘affects speculaires’. Actes d’Ecole de la Cause freudienne nº X. Paris, 1986.

Le clivage du sujet et son identification, Scilicet, Paris, n.2-3, p. 103-136, Seuil, 1970.

2 comentários:

  1. Muito bom Celso!!! Apresentei um trabalho no Encontro Brasileiro de 2014 sobre o caso de uma menina de 6 anos que se sirviu da ficção do filme Historia sem fim na análise, agora atendendo um menino de 10 anos soube que está lendo o livro nas férias e é miuto interessante o que elabora com ele da sua própria historia. Obrigada pelo excelente texto!

    ResponderExcluir