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terça-feira, 14 de julho de 2015

Analista, uma função do Pai Real?

"Pour tout dire, l'ininterprétable dans l'analyse, c'est la présence
de l'analyste. C'est pourquoi interpréter celle-ci, comme il s'est vu,
comme il s'est même imprimé, est proprement ouvrir la porte,
appeler à cette place l'acting out.(1)"
(J.Lacan)

Hoje só podemos trabalhar a Metáfora Paterna na perspectiva da função do Pai Real. Para isto proponho um trajeto que vai de Freud a Lacan no que diz respeito ao Édipo e ao mais-além. 
J-A. Miller nomeia o capítulo VIII, do Seminário XVII(2) - O Avesso da Psicanálise - "Do mito à estrutura" para chamar a nossa atenção ao movimento que está presente ali e que pode ser resumido como uma passagem do Pai Imaginário ao Pai Real. Desta maneira ele desfaz a crença de que a castração seja uma fantasia: ela é uma operação real introduzida pela incidência do significante. 
A psicanálise, antes de ser uma religião, refere-se a um ateísmo. À morte de Deus responde um "nada é permitido". Nietzsche nos lembra que, ao se acreditar que Deus está morto, é preciso que se abandone a garantia do templo.
Freud pensou dar conta da questão do gozo através do mito do Pai morto. Lacan, por sua vez, parte da morte do pai, como Freud a anuncia - dizendo-a "chave do gozo, do gozo do objeto supremo identificado à mãe, a mãe visada do incesto"(3). Do assassinato do pai que vai edificar a interdição desse gozo como primária, Lacan vai nos levar para além do Pai.
Pode-se identificar aqui a estrutura do matema da "Metáfora Paterna": "O mito de Édipo, no nível trágico em que Freud se apropria dele, mostra precisamente que o assassinato do pai é a condição do gozo"(4).
Uma primeira passagem acontece quando Lacan pergunta se é à custa desse assassinato que Édipo obtém o gozo no leito de Jocasta. Esta é a forma encontrada para introduzir a função da linguagem a partir do lugar do enigma que propõe a Esfinge. Do que se trata é de uma resposta que acaba "suprimindo o suspense que a questão da verdade introduz no povo"(5), pois ao lhe ser proposta uma escolha, Édipo acaba caindo na armadilha desta verdade.
A verdade tem uma relação estreita com a castração, por isso a castração, ou essa verdade, se renova para Édipo. Mesmo advertido por "sua mulher-mãe" de que todos os homens sonham deitar-se com suas mães, ele vai buscar o que "podemos identificar como alguma coisa que, ao menos, tem ligação com o preço pago de uma castração"(6). A queda dos olhos não deixa Édipo, como nos lembra Lacan, "sofrer a castração, mas antes, a ser a própria castração, ou seja, aquilo que resta quando desaparece dele, na forma de seus olhos um dos suportes preferenciais do objeto a”. 
No que diz respeito à questão do significante como aquele que determina a estrutura subjetiva, é importante a articulação entre a sucessão de pai a filho e a castração, ou seja, o que aí se transmite. Édipo pagou por ter acedido ao trono como faz o mestre: "apagando a questão da verdade" da transmissão, sucedendo o pai pela via da tradição.
Na segunda parte da lição do Seminário XVII, ao qual nos referimos no início, Lacan faz uma articulação entre o pai morto e o gozo. Para isso ele relembra uma de suas elaborações quando, utilizando o Grafo do Desejo, distribuiu os dizeres de um sonho que Freud trabalhou no livro "A interpretação dos sonhos"(7) nos andares da enunciação e do enunciado no Grafo do Desejo. Trata-se do sonho de um paciente obsessivo que, depois de masturbar-se à frente de um espelho encontra-se com o vulto de seu pai morto há algum tempo. Neste ponto ele enuncia: “ele não sabia que estava morto". Este é um sonho que diz do ponto de impossível que define a retomada, por Lacan, do mito do assassinato do pai em "Totem e Tabu". Este é o texto freudiano onde se coloca a equivalência entre o pai morto e o gozo. Em outras palavras, para além do mito encontramos o pai morto que tem o gozo sob sua guarda sendo, a ele, atribuída a interdição do gozo: "Eis o que podemos qualificar como operador estrutural" nos diz Lacan. 
Para além do Édipo, portanto, encontramos um operador estrutural: o pai real, “que liga o sujeito ao impossível”(8). O que é o pai real? "A ciência buscou esse pai real e encontrou o espermatozóide."(9) O espermatozóide, diz Lacan com todas as letras nesse capitulo, é o pai real. Só que ninguém vai dizer-se filho de um espermatozóide X ou Y. O pai real, portanto, não pode ser localizado pela ciência. Afinal, o espermatozóide não nomeia! O pai real, operador estrutural, deste a ciência não dá conta, mas desloca o mito no que ele pode ter de psicológico, para estabelecer uma referência outra no que diz respeito à castração, quando ela é definida a partir do princípio do significante-mestre e da interpretação. O pai real produz um furo e um resto.
Isto se demonstra na própria estrutura do discurso chamado do Mestre, “onde a linguagem não obtém o gozo a não ser insistindo até produzir a perda onde o mais-de-gozar toma corpo"(10).
A castração é função essencialmente simbólica, ou seja, concebida exclusivamente na articulação significante e a partir da própria definição do significante que se estrutura por uma diferença! Um significante não se significa a si mesmo. Ele apenas representa um sujeito para outro significante. E é nessa articulação que a transferência vai apontar algo de real. É o resíduo, é um resto, - a frustração é do imaginário, a privação do real. Aqui se tem uma privação que se articula à castração a partir de uma perda imaginaria. Essa perda retorna pelo viés do imaginário, pois só podemos acessar o objeto pelo viés do semblante, do que parece, mas não do é.
No Seminário “A Angústia” o estádio do espelho é relembrado para dizer que se faz do objeto "a" essencialmente uma imagem. Trata-se de uma tentativa de restabelecer a homeostase perdida no confronto especular quando se depara com esse objeto-resto que não é especularizável, que não tem um correspondente.
O pai real, se tomarmos esta referência do espelho, é aquele que faz um sulco traduzido na relação mãe-filho pela privação. É o Traço Unário (einziger Zug). Uma separação se define, por um lado, por um simples: "você não reintegrará seu produto", e por outro por: “não se pode ter acesso à mulher" se se optou pelo falo.
A partir do que se demonstrou até aqui, pode-se dizer que o S1 é uma escritura que, ao promover a separação, abre a possibilidade de uma interpretação. Somente a interpretação deste S1 - a castração - pode sustentar a ex-sistência de um sujeito.
Quando Lacan constrói o novo estatuto do objeto como resto, ele modifica a maneira de abordar a castração. A castração construída por Freud em Totem e Tabu e no complexo de castração, consequência do Complexo de Édipo, é abordada de forma diferente depois da construção do objeto “a” como resto. Do que se trata, como já foi dito, é de uma perda real. A entrada do significante produz uma perda real, ou seja, há algo que se perde realmente. Dai podermos dizer: "O pai, o pai real, nada mais é do que o agente da castração". Somente a partir desta nova perspectiva é que se pode afirmar o pai real como impossível, impossível de ser falado. 
Acompanhemos "o Pai" neste caminho de Freud a Lacan: o pai morto freudiano era um pai impossível e os teóricos da época se contentaram com isso. Esse pai morto, impossível, não há como ter acesso a ele. Ele é correlativo ao final da análise como o encontro com o rochedo da castração. O pai morto freudiano, como impossível, Lacan o diz com todas as letras: está destinado a mascarar o pai real como agente da castração. É o pai guardião do gozo, o Pai que a Igreja cultua: um Pai-Deus que goza e que se sustenta de todo um ritual feito para preservar o lugar do pai morto.
Um passo importante acontece quando Lacan estabelece o pai como operador estrutural, efeito de linguagem. O pai lacaniano, ao mesmo tempo em que interdita e legisla uma lei, sustenta um lugar vazio onde um desejo pode acontecer. Um pai que aponta, também, para um gozo possível, na medida em que ele se dirige a uma mulher. Esta é a consequência de uma operação que só se conclui se o pai foi capaz de “afrontar o gozo de uma mulher”(11), fazendo dessa mulher causa de seu desejo. Causa que está articulada no campo do Outro, na linguagem, mas não é o Outro. 
O pai real, agente da castração, aponta por sua operação, a um objeto causa de desejo abrindo espaço para que uma pulsão possa percorrer seu trajeto. Este é o pai que se pode dispensar à condição de dele se servir.
Até aqui se tem um trajeto que, partindo da metáfora paterna, passa pela construção do objeto “a” no Seminário “A Angústia”(12) e chega até o mais-além do Édipo. Este percurso diz como Lacan pode ir do significante à letra, da enunciação ao dizer, do objeto causa do desejo ao objeto resto - excesso de gozo - e da estrutura ao aparelho. Com isso pode-se desmascarar o pai impossível que leva muitos finais de análise a esbarrarem, via identificação, no rochedo da castração. Esse trajeto nos diz, também, da pluralização dos Nomes-do-Pai, na medida em que o nome próprio, singular a cada sujeito, é a conseqüência do ato de um “operador estrutural” que inscreve um Nome-do-Pai a partir do resto. Resto que antecede ao sujeito: afinal cada sujeito é de início, determinado como objeto pequeno “a”, sendo assim resposta do real. 

Para concluir uma palavra a mais sobre o que pode definir um analista como função do pai real: 
Trata-se do pai real que não se articula, propriamente, ao que se conserva do pai imaginário no que concerne à interdição do gozo, mas com a transmissão de um gozo possível, ao dizer da castração da mulher e da impossibilidade da relação sexual.
Nos matemas dos discursos, o Discurso do Mestre diz da fundação do inconsciente, e de uma interdição que produz um ponto de fuga, o objeto “a” como resto, mais-de-gozar. O Discurso do Analista, por sua vez, ao fazer reinar o objeto “a” como semblante diz de uma função que re-inscreve a falta, fazendo silêncio ali onde se espera uma resposta. O que se produz é um S1, assemântico, que permite ao sujeito consentir com a impossibilidade da relação sexual. A consequência é um novo enlaçamento a partir do sinthome. Em outras palavras, a partir da desarticulação da fantasia fundamental, quando o ponto de gozo que a animava cessa, cessa também o apelo ao Pai. Isto porque, para-além dos Nomes que vestem o pai real, este se revela idêntico à letra que cifra o objeto pequeno “a”. 
Penso não haver palavra que defina o Pai Real enquanto tal. Pode-se dizer que ele se limita a ser o pai do furo, de um espaço onde um sujeito pode advir e um objeto ser capturado como causa. Se isso acontece, constrói-se uma interpretação que traduz a posse da herança transmitida: o nome próprio, um nome para o particular de gozo possível. 
Notas

(1) Lacan, J., « Le Séminaire, D'un Autre à l'autre, Chapitre XXI, page 350, Le Seuil, 2006.
(2) Lacan, J. O Seminário Livro XVII “O avesso da psicanálise”, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.
(3) Idem.
(4) Idem
(5) Idem
(6) Idem
(7) Freud, S., “A interpretação dos sonhos”, Vols. IV,V da Edição Standard Brasileira, Imago Editora Ltda, Rio de Janeiro, 1972.
(8) Solano, E., “O retorno do pai”, in Opção Lacaniana, nº 20. Publicação da EBP, Dez. 1977.
(9) Lacan, L., Idem,
(10) Idem
(11) Idem,
(12) Lacan, J., Seminário X, “A Angústia”, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005

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