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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Sobre "O Balcão" de Jean Genet (I)

 


"A comédia não é o cômico". Com esta frase Lacan nos introduz à parte de seu Seminário dedicado a examinar "O Balcão" de Jean Genet. 
A comédia está fundamentalmente ligada ao "momento em que a representação da relação entre o homem e a mulher era objeto de um espetáculo que tinha um valor cerimonial"(1). Esta foi uma forma encontrada para representar, diante da comunidade, "a existência de um Homem como tal"(2). 

Fazendo um contraponto entre a tragédia e a comédia, Lacan vai nos remeter ao tempo do teatro grego onde a tragédia representava a relação do homem com a fala, na vertente de sua fatalidade. Já a comédia vai se apresentar em cena quando o sujeito e o homem "tentam assumir, com a fala, uma relação diferente da que existe na tragédia"(3). É neste ponto que Lacan introduz uma metáfora que é, a meu ver, muito esclarecedora, e que retomaremos, de alguma forma no final deste texto: a representação do fim do banquete comunal a partir do qual a tragédia foi evocada, quando o homem se vê como aquele que "consome tudo o que é feito presente, ali, de sua substância, de sua carne comum"(4). 

Ao colocar em cena as funções humanas em sua relação simbólica, Genet aproxima-se da linha que Lacan traçou neste Seminário. Lembro-lhes que esta linha pode ser definida, como nos diz JAMiller, a partir de um dos títulos dados a uma das lições deste Seminário: "Da imagem ao significante ..."(5). É assim que veremos desfilar, um após outro, o Bispo, "o poder conferido por Cristo à posteridade de São Pedro (...) de estabelecer a ligação e a separação entre a ordem, o pecado e o erro"(6); o Juiz, "o poder daquele que condena e castiga"(7); e o General, "o poder daquele que assume o comando nesse grande fenômeno que é a guerra"(8). 

Todos estes personagens se apresentam diante de nossos olhos dizendo da alienação do sujeito, pois eles só podem representar funções da fala das quais o sujeito nada mais é que suporte. 

Assim construída, esta peça, encenada no "Palácio das Ilusões”, deixa claro os descaminhos do Ideal do eu quando, em lugar de construir uma sublimação que traria um certo apaziguamento das "forças enraizadas no interior"(9), ela escorrega, desliza "por uma erotização da relação simbólica"(10). Só mesmo a partir de uma inversão no trajeto da imagem ao significante é que estas posições alienadas se prestam aos mais diversos frequentadores do "Palácio das Ilusões". Por isso podemos dizer que a lei da comédia se faz presente ai, ao acentuar a busca de uma resposta à questão sobre como estes ilustres gozam com estas funções(11). 

As cenas, é importante assinalar, só podem acontecer na medida em que, sendo simulacros, deixam entrever na cumplicidade dos parceiros,
a crença de que realmente estão participando. Este enlaçamento é o que vai nos dizer que o "comprazer-se em buscar a satisfação nessa
imagem (só é possível) na medida em que ela é o reflexo de uma função essencialmente significante"(12). 

É em meio a esta desordem que se introduz o que, nestas ocasiões, resume toda possibilidade da ordem: a polícia, que nesta peça será representada pelo seu chefe e que acaba, como já vimos, buscando na fantasia do falo um signo que o pudesse identificar, assim como barrete ao Bispo, o quepe ao General e a toga ao Juiz. A Escolha desta imagem, o falo, não é sem propósito. Enquanto significante primordial do desejo, portanto como significante que, uma vez recalcado, vai descompletar a articulação, deve permanecer fora, dando sustentação ao conjunto do código, possibilitando a que mensagens possam chegar a seu destinatário ao mesmo tempo que possibilita a interpretação vir a acontecer como aquela que acrescenta um sentido na medida em que ela tenta acrescentar um significante que falta. Esta função, então, é a que pode manter a ordem, pode manter uma relação do homem com a fala que o toma em sua fatalidade. 

Ao representar, em cena, toda a degradação pela qual a sociedade se define, na medida que existem brechas na articulação simbólica, Genet vai questionar a relação do homem com a função da fala, através mesmo da posta em cena da perversão, ou como me disse Eric Laurent: fazer o significante obsceno. O significante Falo surge como imagem denegando seu desaparecimento, ao mesmo tempo que satura o intervalo com espelhos. E assim procedendo ele sustenta uma critica ao "homem integro, homem real, aquele que não dúvida de que seu desejo seja capaz de realizar-se, impor-se como tal, e de maneira harmoniosa"(13). O que vai se desenrolar no palco deixa claro o
que se pode dizer da perversão: quando chega o momento em que o chefe de polícia arregimenta os perversos para que assumam, autêntica e
integralmente, as funções que encarnavam, vai se estabelecer um dialogo que é definido, por Lacan, como de "grande despudor político".
Cada um dos convocados só fazem demonstrar sua repugnância em substituir a ordem que, até então, existia: "uma coisa é gozar na intimidade, sob a proteção dos muros dessas casas (...) lugar em que a ordem é mais minuciosamente preservada, outra coisa é ficar à mercê dos vendavais ou, muito simplesmente, das responsabilidades implicadas nessas funções realmente absurdas"(14). Esta é a grande farsa. 

Em outras palavras, o que se vê aqui é como a perversão questiona a relação do sujeito com a função da fala, enquanto que, como se disse
mais acima, a tragédia que teve no teatro grego sua era grandiosa, representou a relação do homem com a fala. Esse questionamento vamos vê-lo, principalmente, na erotização a que está submetida a relação simbólica que se apresenta na forma de uma hipertrofia do imaginário. 
(Continua)

1)Lacan, J., "As formações do inconsciente", Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999, pag. 272. 
2) Idem. 
3) Idem, pag. 273. 
4) Idem. 
5) Idem, pag. 221. 
6) Idem, pag.274. 
7) Idem. 
8) Idem. 
9) Idem. 
10) Idem, pag. 275 
11) Idem. 
12) Idem. 
13) Idem, pag. 277. 
14) Idem, pag. 278. 





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