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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Inconsciente e entrada em análise

A experiência que tem Lacan do inconsciente não é empirista, mas se ocupa do que já está aí, do que é prévio e do que condiciona toda experiência possível para o sujeito: a linguagem, que está no lugar, reservado por Descartes, às ideias inatas.
Desde modo, a experiência se desdobra ante a linguagem e sua estrutura. A estrutura condiciona a experiência e se interpõe entre esta e o sujeito vazio. O saber de todos e cada um, como saber inconsciente, é que não há relação sexual. E nenhuma experiência virá desmentir este axioma inscrito pela linguagem mesma. Por isso Lacan, ao falar em Televisão, nos disse que estava falando para o homem comum: o homem comum é aquele para quem é verdade que não há relação sexual. Ainda que o homem comum não compreenda, de toda maneira, já sabe.

Há que distinguir da linguagem do inconsciente que vale para todos e é, no fundo, nosso universal, o discurso do analista que, de maneira nenhuma, pode pretender ser equivalente.

"O inconsciente está estruturado como uma linguagem" e "o inconsciente é o discurso do Outro" não são duas fórmulas equivalentes. É preciso acrescentar que o último corte produzido no ensino de Lacan passa, precisamente, entre ambos. O fato de que o inconsciente seja linguagem não implica forçosamente que seja discurso. A divisão está acompanhada pela distinção entre gozo e desejo e a preeminência do gozo na teoria do desejo. De modo que quando dizemos que o inconsciente é linguagem estamos acentuando o gozo, enquanto que ao por em primeiro plano o discurso do inconsciente damos preponderância ao desejo. 

No texto A Instância da Letra, os matemas, as fórmulas da metáfora e metonímia se baseiam no significante, termo que todavia não se distingue claramente da letra. Será em Televisão que Lacan vai introduzir o conceito de signo para incluir a letra e o significante: o significante é o signo na medida em que tem efeito de sentido, enquanto a letra é o signo considerado por seu efeito de gozo. Assim, se o ponto de vista do significante nos conduz de imediato à teoria da comunicação e a implicar o Outro na linguagem, o ponto de vista da letra é, pelo contrário, autista; é a perspectiva de um gozo que não se dirige ao Outro. 

O gozo, na medida em que concerne ao objeto 'a' e não ao Outro, é pseudo sexual. 

É a passagem da função da palavra ao campo da linguagem que permite a Lacan introduzir neste último a função, a instância da escritura. Tudo o concernente ao "sinthome", à nova doutrina do sintoma, supõe a formulação de que o inconsciente escreve, que "isso" se escreve.

O inconsciente escreve e no inconsciente Isso se escrever foi o que permitiu Lacan aproximar-se de Joyce e poder ver comprovada sua tese que o inconsciente se escreve. O sintoma, desde o texto Função e Campo da Palavra e da Linguagem já estava remetido a um processo de escritura, ficando a palavra insuficiente para dar conta de sua consistência.

Consequência natural deste desenvolvimento foi estabelecer em “Televisão” que “na medida em que o inconsciente está interessado, a linguagem introduz as vertentes do sentido e do signo”.

A Linguistica, ao contrário da psicanálise, prescindiu-se do fato de que o inconsciente aí está interessado, ao trabalhar o significante e o significado. Foi, portanto, com Lacan que este fator foi recuperado e, com ele, pode-se esclarecer que o termo mensagem, concernente ao sintoma, está diretamente dependente da distinção entre o significante e o significado. Esta distinção foi o que levou Lacan a tentar esclarecer (me refiro aqui aos seu primeiros escritos, principalmente Função e Campo...) que a análise operava pelo sentido, dado pelo preenchimento das lacunas da história do sujeito pelas interpretações. Seriam pedaços desta história, experiências que haviam permanecido não assimiladas, que seriam integradas. Esta forma de trabalhar, no entanto, implicava que a experiência analítica fosse abordada a partir do sentido, o que deixava a posição do analista como se fosse o senhor da verdade. (Em "Função e Campo..." Lacan chega mesmo a dizer que o analista está no lugar de onde se decide o sentido) É importante ressaltar aqui que sempre que tratarmos do sentido o que está implicado é uma relação com a verdade que se coloca antinomicamente ao Real. Esta distinção é fundamental se queremos chegar a alguma conclusão com respeito a identificação ao sinthoma no final de uma análise. 

Por tudo isso vamos verificar Lacan questionando o sentido e seus limites na experiência analítica ao dizer que sempre que manipulamos o sentido só chegamos ao sem sentido. Para esclarecer esta afirmação ele vai trabalhar o sentido dito comum e o cómico na direção, exatamente, que vai do sentido comum ao cómico. “O sentido comum se caracteriza por ignorar o sem sentido e se mantém como sugestão. Quer dizer que a base do sentido comum é o significante amo, que ignora que ele mesmo é um sem sentido – o ignora no bom sentido, claro. É algo que se ignora quando se faz – com as melhores intenções do mundo, com compaixão – do significante amo o sentido comum.” É exatamente isso que mascara o sem sentido que vai ser desvelado ao final de uma análise. Quando, muitas vezes, se fala que o neurótico passa a vida tentando salvar o Pai, a referência é a este "mascarar o sem sentido". O neurótico, e aqui as histéricas estão a cavaleiro: procuram nada saber do cómico em jogo no sem sentido do significante mestre que o sentido comum procura manter a todo custo. Este significante que mantém o sujeito assujeitado a um sentido pre-estabelecido pelo circuito congelado de sua fantasia. Este mesmo que o discurso do mestre aponta no algoritmo S1/$ e que vai se colocar em condições de construir um chiste pois, assim como o “familionário” que Freud descreve no início de seu livro sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, constitui-se em um novo significante. A forma deste significante se apresentar se justifica pelo fato de que o cómico especula com o sentido ao mesmo tempo que tem um saber sobre o sem sentido. “Existe assim o insensato sobre o que pode jogar o cómico ali onde o sentido sugestiona.” 

O sentido tem uma propriedade fundamental de ser o que nos fascina, na palavra. É interessante notar a homofonia desta palavra nos dizendo que algo se “faz sina” no sentido traçando o destino do sujeito. O termo fascinação nos indica o que de imaginário permanece na função da palavra. Se sabemos por experiência de nossa própria análise que a palavra faz vacilar o ser do sujeito e pode introduzi-lo na falta a ser, por outro lado sabemos que nesse caminho retém o que aí permanece de fascinação do sentido, relançando o vetor do grafo para os velhos caminhos do sintoma. É aí que Lacan vai opor sentido e signo em seus escritos de 70.

Para esclarecer esta oposição vamos tomar o que se diz sob o termo de mensagem cifrada, tão frequente nos escritos de Lacan quando ele se refere ao sintoma. Esta expressão, mensagem cifrada, traz em si mesmo uma ambiguidade que vai nos permitir caminhar um pouco mais. Ao mesmo tempo que nos remete, através do termo mensagem, à comunicação, uma mensagem cifrada pode nos levar ao equivoco de pensarmos que falta um Código que poderia decifrá-la, se pensamos que cifra só se referencia ao significante. No entanto esta expressão só poderá ser esclarecida se tomarmos por referência a libido, este mito freudiano, que Lacan vai substituir por seu conceito de gozo. 

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Sobre o Incurável

Em seu primeiro encontro com o Outro, consequência da incidência de um significante, o sujeito tem de lidar com um incurável, que não se subjetiva, que não permite que desejo e percepção coincidam. Ponto de opacidade e de silêncio, nos diz Lacan, que indica o lugar onde poderá se edificar a determinação significante capaz de escrever o fenômeno sintomático, na esperança de se “curar” a diferença que se instala na contingência deste primeiro encontro.
O sintoma é o sinal de que alguma coisa não anda, pois há uma dessemelhança definida como incurável, que se coloca como uma pedra no caminho do sujeito e se explicita no fato de que homens e mulheres estão privados do elemento que poderia propiciar a escritura da relação sexual.
É o incurável que promove o sintoma como única possibilidade de fazer laço, ao mesmo tempo em que permite uma leitura, uma vez que ele participa de uma escritura, função da letra. O sintoma é uma verdade mentirosa sobre este incurável, sobre a relação sexual que não existe. É por isso que Lacan pode dizer que é o sintoma que nós colocamos neste lugar da impossibilidade da relação sexual, constituindo-se, talvez, no único Outro que existe. 
Há, portanto, um incurável sobre o qual o sintoma se apóia e vai construir seu envelope formal. Incurável que se instala no ponto em que a presença do singular, do recusado e recalcado pelo sujeito vai se manifestar sob a forma de um mal-estar, presença de um excesso que não foi absorvido no processo de identificação, como disse Freud. É este processo de busca de uma identidade entre o que se deseja e o que se encontra que foi definido como pulsão. Em outras palavras a pulsão é o que se apresenta com seu caráter incurável, rebelde e refratário ao laço social, convocando o sintoma como uma forma de inscrever, de fazer coincidir o que insiste como marcas da singularidade do sujeito e de suas fixações.
O sintoma, assim como a cena da fantasia fundamental, nada mais é do que envelope da pulsão, modalidades de seu exercício, formas que o sujeito busca para apreender um objeto, no campo do Outro, que lhe sirva de parceiro. Este objeto “pequeno a”, se define a partir dos orifícios do corpo e marcam o ponto por onde o sentido não se deixa apreender nas malhas do discurso. É o pequeno “a” que apresenta o incurável em torno do qual a pulsão faz seu circuito desenhando uma escritura que situa a repetição do sintoma. 
Lacan nos diz que “O Outro é uma matriz com duas entradas”. O objeto pequeno “a” constitui uma destas entradas. E a outra é o Um do significante. Desfazer a presença deste Outro é fundamental para que o sujeito possa se livrar das diretrizes que determinam a fixação do circuito pulsional e o faz mola da repetição sintomática. 
O sintoma, por comportar um efeito de sentido, sofre a ação da interpretação. O seu valor de gozo é antinômico ao sentido, só se deixando apreender pelo equívoco, dai se deduz a função da letra. A redução do sintoma à letra é uma forma de renovar o estatuto do simbólico, resumindo a pulsão à função de furo. 
Por isso, a interpretação do analista pode apontar o incurável e esclarecer o circuito que delimita o objeto velado pela interpretação que o inconsciente fez do encontro traumático com o Outro sexo.
Este objeto, desde o congelamento do sentido na fantasia, passa a ser uma constante, nos dizendo de um ponto de incurável denunciado na atividade pulsional. Ora, a pulsão é sua força real ao mesmo tempo em que denuncia o limite do sintoma à ação do simbólico. O resto que escapa, foge, retorna sob a forma de mal-estar e relança o vetor pulsional sempre na direção determinada pelo imperativo do supereu. Desfazer este circuito, devolvendo ao objeto sua característica de ser qualquer um, mobilizando o seu valor de gozo é um dos objetivos de uma análise. Neste seu objetivo, a estratégia da qual se utiliza a psicanálise consiste em oferecer, a quem a busca como solução, a possibilidade de que esta cena se repita na transferência ao instalar, no ponto de não saber, um sujeito suposto saber da significação de seu sofrimento. Esta estratégia se utiliza do fato de que o inconsciente ex-siste e sua ex-sistência se sustenta, exatamente no fato da inexistência da relação sexual e que a sexualidade só se representa no inconsciente pela pulsão.
Utilizando-se do objeto pequeno ‘a’ enquanto agalma pode-se ter entrada ao Outro, fazendo possível a construção desta cena fundamental, a partir mesmo da determinação de uma constante através da qual o sujeito se relacione ao real do gozo. Balizada por esta construção, uma interpretação pode operar separando S1 do S2 e criar um intervalo deixando transparecer a dessemelhança entre o que se chamou de “A Coisa” e o seu “atributo”. Este é o momento em que acontece a produção de um significante que pode indexar a falta, um nome que estabelece novos rumos, fazendo intervir a letra como borda do real. 
O amor, resposta ao real da não relação sexual, sustenta o trabalho da transferência nesta relação ao Outro do saber, e se esvazia pela ação da interpretação que desfaz o mistério da diferença sexual. Este é o momento em que se abre, para cada
sujeito, uma nova relação ao saber a partir do consentimento com seu modo próprio de gozo. 
Esta passagem estabelece uma nova aliança com a pulsão. Nova aliança que só pode acontecer pela revitalização da marca do Nome Próprio propiciando um “saber aí fazer com o sintoma”, uma das fórmulas possíveis da liberdade. 
Assim o incurável, o resto que persiste passa, após o trabalho que leva ao consentimento com o inconsciente, do mais-de-gozar ao estatuto de causa. Desta forma o desencontro entre “esses dois investimentos”, como nos diz Freud, podem se colocar numa posição de trabalho para que a “coincidência entre ambas” produza uma nova aliança pulsional. Ou seja, uma aliança onde o resto não se apaga nem se cura, mas persiste como vivificação do objeto-resto não mortificado pela palavra. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Psicanálise ou Psicoterapia: O lugar do analista! (II)

Vamos retomar a questão da transferência pelo o esquema L, na tentativa de explicitar o mecanismo da relação narcísica: Vamos instalar o sujeito que chega no lugar de S, dizendo que ele aí está na mais pura ignorância do que lhe causa mal. O que este sujeito vem buscar no Outro a quem ele supõe um saber é um traço qualquer que possa dizer-lhe o que, na verdade, ele é. Este traço, poderá ser tomado aqui como o 'a', na medida que este traço faz exatamente a borda deste objeto que se encontra como um vazio, no espelho. A partir daí, vai se estabelecer a relação de transferência e o sujeito vai se identificar a este traço na esperança de que, assim colocado, seja amado pelo Outro que vai lhe fornecer a resposta para a questão de sua existência. 

                                                         

Alguns esclarecimentos são necessários: Na verdade a questão da existência do sujeito se coloca a partir de um Outro lugar, e não a partir de um outro sujeito como se tenta acreditar na relação transferencial, que se sustenta no eixo a - a', eixo narcísico, lugar do engodo amoroso. 
Cada vez que o analista intervêm, ele o faz do lugar do Outro (A), como se fosse a boca do Outro visando o sujeito do inconsciente ($), naquilo que ele tem de mais íntimo, kern unseres wessen, o coração do nosso ser, ou seja o que não tem palavra [S(A/)], ou ainda a causa de desejo. 
O que se espera liquidar, então, é esta suposição de saber que se estabelece no eixo da relação narcísica que tende a exercer o fechamento do inconsciente. 
Quando Lacan trabalhou o esquema L, ele nos disse que este eixo narcísico, imaginário, é o muro da linguagem. Isto pode parecer estranho, colocar a linguagem no eixo imaginário, uma vez que a linguagem seria simbólica. No entanto, o que temos aqui é um muro da linguagem que se constitui pelo véu do sentido que impregna a fala do sujeito quanto ele se dirige ao outro, exatamente para escamotear a sua relação ao Outro. Desta forma estará impedido o  acesso do simbólico ao real, estabelecido, aqui, pelo eixo A - S. Função esta que vai ser atribuída, mais à frente no ensino de Lacan, à fantasia fundamental. Por isto podemos até mesmo desenhar o matema da fantasia neste eixo a—-a’ ($<>a). Ora, cada vez que o analista intervêm, ele o faz do lugar do Outro, como nos diz Lacan em "A direção da cura..." promovendo uma brecha neste muro da linguagem, 
esburacando esta cortina de sentido que cega o sujeito". Este momento se traduz, na clínica, por aquela surpresa que têm, analista e analisante, quando o sujeito que está falando no divã, imerso e gozando de um sentido preestabelecido, se percebe pego em um vazio que produz uma mudança. Este momento é fugaz, mas fundamental. É o momento em que podemos testemunhar o aparecimento do sujeito como resposta do real no estabelecimento de um novo sentido que se apresenta promovendo o fechamento do inconsciente. Podemos dizer que é isto que produz um ato: relança o sujeito em uma nova cadeia significante, uma nova série produzindo no lugar da verdade um saber que possa sustentar a causa de desejo. 
Retomando a questão da identificação que, a meu ver é uma das balizas das diferenças que podemos estabelecer entre a psicanálise e a psicoterapia, vamos observar que ela ocorre a partir da escolha que o sujeito faz de um certo traço no Outro. Não é um traço qualquer. É um traço tal que o sujeito acredita dizer do desejo deste Outro. É um traço que vai dizer que deste ponto o sujeito vai ser amado pelo Outro. Este traço idealizado vai constituir o núcleo de sua fantasia, a borda do enquadre da realidade para este sujeito, porque é a partir deste traço que vai se constituir a fantasia fundamental do sujeito e que vai nos dizer como o sujeito interpretou o desejo do Outro. Esse traço é o traço unário (Einzeger Zug). Em outras palavras, este traço está inscrito no S1 ao qual o sujeito se encontra assujeitado. É o mestre que dita o caminho que o sujeito deve seguir para ser amado. Quando Lacan diz que a interpretação deve visar para além da significação que se produz a partir do significante ao qual o sujeito se encontra assujeitado, é a isso que ele está fazendo alusão. Ora, tudo isto poderá ser traduzido pela fórmula lacaniana: "o desejo é sua interpretação". 
A identificação especular imediata é apenas a sustentação da identificação que está em jogo nesta entrada do S1, já que é esta identificação primeira que sustenta a perspectiva do sujeito no campo do Outro. Em outras palavras, o que acabo de lhes dizer pode ser assim descrito: eu desejo o que o Outro deseja que eu deseje. Esta é a perspectiva do sujeito no campo do Outro onde a identificação especular poderá ser vista como algo que satisfaz. Esta identificação estabiliza a imagem e sustenta o sujeito no mundo de alguma maneira. 
Na verdade nunca nos livramos disto inteiramente, sempre vão existir pontos de identificação, de ancoragem, afinal Lacan coloca no fim do seu Grafo do Desejo o matema I(A): impossível viver sem ideais!
No percurso pelo gráfico sempre se esbarra em pontos de ancoragens onde se busca uma identificação. Na verdade cada ponto de estofo nada mais é que ponto de identificação significante. 
Mas, retornando ao percurso de uma análise, vamos dizer que o mal-estar a partir da claudicação do sintoma produz uma demanda ao Outro para que seja reconstituído o sintoma. Uma vez feito o percurso e experimentado o vazio no ponto onde a falta do Outro se apresenta, vai acontecer a possibilidade de se mudar o endereçamento da demanda 
que não será mais de reconstituição do sintoma, mas de relançamento do desejo de saber. Não mais de apaziguamento no sintoma, mas de uma inquietação produtiva. É o trabalho de transferência se transmutando em transferência de trabalho. 
De volta ao ponto do Ideal do Eu, o ponto no campo do Outro que o sujeito elege como sendo aquele onde ele pode ser visto pelo Outro e,portanto, amado, é o que lhe permitirá se suportar numa situação dual. Caso não houvesse esse ponto de ancoragem, de identificação no campo do Outro, esta dualidade especular seria insuportável. É o que acontece na psicose, quando a “Bejahung” fundamental não acontece e, como consequência, vai faltar ao sujeito este ponto de ancoragem produzindo uma tendência a fazer desaparecer o intervalo entre um e outro, sempre que a dualidade especular ocorrer. Na psicose a saída é o delírio, a erotomania; na neurose é o amor. A diferença entre um e outro fica por conta da certeza que o psicótico tem. O neurótico, mesmo que seu amor seja tão intenso que fica como que colado ao outro, vai existir uma certa distância que é colocada pela dúvida: será que ele me ama mesmo? Na psicose a certeza é plena: ele me ama, ou me odeia. 
Enquanto miragem especular, o amor tem a essência do engano, é aqui que se instala o único significante necessário a introduzir uma perspectiva centrada sobre o ponto do ideal. Este ponto, este traço, para que ele possa se tornar um ponto de visada do sujeito, tem que ser um traço que se refere ao objeto 'a'. É o traço da borda de onde o objeto foi subtraído. O 'I' é o significante que desenha o contorno nesta borda. É um significante qualquer, mas não pode ser qualquer um. É aquele que elegemos por estar mais próximo do objeto perdido, por isso Lacan matematiza assim este ideal: I(a). É sustentado por este traço que vai se instalar o sujeito suposto saber a partir do que Lacan chamou de significante da transferência. Todo o trabalho de análise, todo o trabalho da interpretação, vai na direção de promover a separação deste I do a, para reconstituir, no final, o I(A) na transferência de trabalho. 
Nesta coalescência do traço com o objeto, um dando suporte ao outro, um fazendo o outro existir na sua ausência, como ponto de visada, é que vai se estabelecer o engano da transferência. Este engano, podemos dizer muito simplesmente, é o seguinte: se você tem o traço da borda do objeto, você tem o objeto. Neste ponto acontece algo de paradoxal pois, ao se perceber que as coisas não são bem assim, ao se deparar com o vazio deste objeto vai acontecer, como diz Lacan, a descoberta do analista. Sim, pois se ao se dirigir ao sujeito suposto saber para se sustentar na alienação do seu sintoma, ele encontrar um analista, ele vai se deparar com este vazio, com esta inconsistência do Outro. 
Em outras palavras, vamos dizer que o sujeito busca um analista que vai sustentar o lugar de semblante onde vai reinar o objeto, mas somente para, ao fazer uma interpretação, dizer que esse lugar é vazio. Sabemos que toda intervenção do analista aponta para o final de análise. Em outras palavras, não há final de análise sem interpretação. 
Cumpre ressaltar aqui que há intervenções do analista que não são interpretações. Em outras palavras, é preciso que haja pelo menos uma interpretação que faz descolar o I do a para que se possa alcançar o final de análise. 
Um analista é aquele que escuta por detrás dos ditos do analisante. É preciso que o analista saiba que existe um para-além da demanda endereçada ao sujeito suposto saber, que é uma demanda de amor. É preciso que ele saiba se a demanda de amor aponta para um mais além e o desejo aponta para um mais aquém. Por isso Lacan forjou esta frase tão contundente quando ele tratou do amor de transferência: "Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente eu amo em ti qualquer coisa mais do que tu, o objeto a, eu te mutilo". E Lacan continua dizendo que apesar desta fala apontar para o oral, ela nada tem a ver com a nutrição pois seu acento recai totalmente neste efeito de mutilação. É o que vai nos apontar a possível continuação da fala do analisante: "Eu me dou a ti, mas esse dom de minha pessoa - mistério!, se transforma, inexplicavelmente em presente de merda". 
Na verdade, se pensamos no agalma, este que sustenta a transferência, este que está dentro do Sileno e que ninguém viu, o que está dentro deste sujeito é merda. Quando, diz Lacan, após esta passagem em que o psicanalista se transforma em resto, em merda, podemos dizer é que será possível dar-nos conta da vertigem que acontece quando estamos diante de uma página em branco. Esta é uma experiência que, acredito, todos já vivemos: enquanto as idéias estão na nossa imaginação tudo corre fácil, na hora de passar para a folha de papel em 
branco que fica à nossa frente, ofuscando nossa ação, as coisas não são tão belas, na verdade é merda. Se o sujeito não pode tocar nesta folha em branco, diz Lacan, é porque ele a toma como papel higiênico. Esta distância entre o ideal e o objeto criado, estabelecido pelo princípio de realidade é que promove esta desidealização aterrorizadora. 
Como dizia a pouco, a liquidação da transferência é um assunto de destituição do sujeito suposto saber que se transforma num resto, exatamente este resto que nunca foi absorvido pelo saber suposto. Ao final, o esvaziamento do analista vai deixar um resto que será elevado a condição de causa de desejo. É quando, finalmente, o analista estará reduzido ao representante da representação do objeto "a". 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Psicanálise ou Psicoterapia: o lugar do analista! (I)


"...le signifiant, c'est comme le style... 
si on ne part pas de ce niveau qui est le niveau de départ, on ne peut absolument rien faire de plus dans I’expérience psychanalytique... on ne peut rien faire de plus que de faire de la bonne psychothérapie"
(Jacques Lacan, Du discours Psychanalytique - Conférence à l'université de Milan, le 12 mai 1972) 

É a claudicação do saber, da certeza do sintoma, que abre um espaço para que um endereçamento possa ser feito a um Outro lugar, na esperança de que o estranho possa ser decifrado. Sim, decifrado, por que o sintoma, sendo a primeira mensagem cifrada, pleno de sentido, traz em si o "ciframento" do gozo, que se apresenta como um ponto sem sentido, como um estranho, como um "x" no caminho do sujeito. Este é o momento em que se instala, no ponto de inconsistência do Outro, um Sujeito a quem se supõe um saber sobre o que seria a sua verdade. Para que isto possa acontecer, uma escolha, forçada sem dúvida, deverá ser feita para que um significante qualquer venha se alojar aí, onde o saber falhou. Este significante será, ele mesmo, integrante do sintoma que se constituirá neste momento. É a transferência que, agora, pode sustentar estrategicamente a direção do tratamento, enquanto signo de um amor que possibilitará um giro de quarto de volta no discurso. 
No entanto, para que as coisas possam continuar caminhando em função da política do tratamento, é fundamental que este lugar, primeiramente imaginário, seja "cadaverizado", para usar uma expressão de Lacan em "A coisa freudiana", e que seja anulada a própria resistência do analista, o que equivale dizer que ele não vai simplesmente matraquear a significação que o paciente tenta fazer valer nas suas proposições. 

                                                  

Se tomarmos o Grafo do Desejo e colocarmos a claudicação do sintoma em s(A) teremos, no vetor que daí parte, um endereçamento ao (A), enquanto lugar. Se o analista se deixa levar pelo sentido que lhe é proposto, exaltando o Sq, o traço que lhe foi atribuído, ele estará favorecendo uma identificação e esvaziando sua palavra num discurso do convencimento que só vai se prestar a abrir caminho para a circulação no chamado andar inferior: s(A) ----- (A) ----- i(a) --- (m). Podemos também dizer do que se passa neste nível, utilizando a topologia da banda circular, com suas duas bordas e suas duas faces, para mostrar que estão presentes dois sujeitos e, portanto dois sentidos sem que nenhum, nunca, possa intervir sobre o outro. 
No entanto, para que uma análise possa acontecer é fundamental que, no amor de transferência que se instala, pelo menos um dos dois saiba que não tem o que lhe está sendo atribuído. Isto é o que se espera de um analista: que coloque em operação o desejo do analista que se constituiu em análise. É somente deste lugar que uma interpretação pode operar. 
Lacan, já em seu Relatório de Roma, nos diz que a interpretação por alusão é uma forma de se evitar este confronto narcísico próprio de um debate sustentado no eixo a ---- a'. A interpretação deverá, assim como o dedo 
de São João, apontar para o vazio. 
O que se objetiva, no final das contas, é uma primeira desarticulação do binário S1- S2 que, enquanto enunciado, sustenta sob a barra a relação de um sujeito com o objeto que ele escolheu a partir da interpretação que ele fez do desejo do Outro. Objeto esse que ele acredita poder consistir o Outro. A interpretação, portanto, abre um buraco no sentido até então estabelecido. Este vazio cria um estado de desamparo (hilflösigkeit) não deixando outra saída ao sujeito senão o bem-dizer pois, deslocando-se do eixo do enunciado para o da enunciação, ele se depara com a verdade que circula entre o gozo e a castração e que se elabora como uma relação do sujeito à pulsão. É neste ponto, e somente aí, que o sujeito poderá saber da causa de seu desejo pois, pela via da fantasia, esta causa está dissimulada pelos benefícios secundários. 
Este é o trajeto que vai, digamos, preparar o momento em que um ato analítico pode acontecer e possibilitar a "experiência da fantasia fundamental tornar-se a pulsão". 
Um pouco de topologia vai nos auxiliar a definir como esse 
caminho se desenha e ajudar a diferenciar uma psicoterapia de uma psicanálise. 
Se o analista não se cala impedindo que o objeto "a" possa reinar como semblante, o que vai acontecer é um favorecimento a uma identificação a partir mesmo da ação da sugestão através do convencimento, como vimos acima. Este movimento vai dirigir o vetor para o andar inferior do Grafo e estabelecer duas posições distintas aos dois sujeitos em questão: o terapeuta e o paciente, que permanecerão indefinidamente cada qual do seu lado sem que as intervenções possam produzir efeito. Teremos então uma topologia da banda circular onde o que se passa de um lado ali permanece. 
               

Mas quando o desejo do analista opera, fazendo reinar o objeto "a" ali onde uma resposta é esperada, veremos o vetor ser lançado na direção do andar superior do Grafo e, em função mesmo da não resposta, sofrer uma meia torção e retorna como mensagem invertida. 
A topologia que se desenha não é mais a da banda circular, mas sim a da Banda de Moebius, nos dizendo que em uma análise temos apenas um sujeito em questão pois a estrutura desta superfície demonstra a existência de um só lado e de um só corte. 

                                                  


Esta articulação coloca uma questão e nos abre a possibilidade de discutirmos um outro aspecto desta diferenciação entre psicanálise e psicoterapia: trata-se do que encontramos no momento em que Lacan trabalha, especificamente no Seminário XI o conceito de liquidação da transferência. Ali ele estabelece um dialogo com os conceitos estabelecidos pela IPA, no que diz respeito ao final de análise. O corpo teórico que sustenta o trabalho na Internacional vai na direção de acreditar que no final da análise a transferência poderia ser liquidada. 
Para tanto, era fundamental que o analista levasse o sujeito a não deixar resto algum, já que a identificação, como é de nosso conhecimento, se estrutura em torno do eixo imaginário e a partir da idealização. Desta forma, um "Eu" (moi) surgiria ali onde um sujeito, como resposta do real, deveria acontecer. É o reforço da alienação onde uma separação deveria acontecer. 
Ao contrário, o silêncio do analista em 'A' faz com que a demanda que lhe é dirigida sofra uma meia torção, criando uma banda de Möebius (como explicitamos acima) e, retorna ao sujeito a partir mesmo do desamparo que se estabelece em (d) - lembro-lhes que Lacan, ao construir seu grafo nos disse que este pequeno (d), num primeiro movimento, indica o estado de desamparo (detresse - hilflosigkeit) no qual se encontra o infans em seu encontro com o homem ao lado (Nebemmensch) - passando pelas demandas do Outro ($ <> D) onde vão se estruturar as pulsões em seu movimento de ir e vir em torno do vazio da falta no Outro S(A/). Uma relação muito especial vai se estabelecer então, a partir da interpretação que se faz desta falta, construindo uma cena ($<>a) que precisa ser retificada para que um novo saber fazer possa se instalar s(A). É por isso que afirmamos que só há um sujeito em questão na análise, o analisando, e que é somente a partir de um ponto fora da linha - que eu correlaciono, nesta situação, à função do desejo do analista - será possível sustentar o corte de uma linha sem pontos. 
Retomo o que acabo de dizer um outro caminho. Partindo do conceito de Sujeito Suposto Saber, Lacan vai nos dizer que esse sujeito, que supostamente sabe sobre o analisante, na verdade não sabe nada. O que se liquida na transferência, portanto é esta suposição de saber, já que, todo o processo de análise vai, à cada intervenção do analista, desfazê-la. Em outras palavras, como nos diz Lacan, este sujeito suposto saber deve ser considerado liquidado exatamente no momento da análise em que ele começa a saber alguma coisa do seu analisante. Por isso ele pode, neste momento, ser chamado de sujeito suposto vaporizado. Ainda uma outra forma de se dizer isto, com Lacan, é que a sustentação da transferência se dá pelo fato do analista se colocar como um "X" para o analisante. Quando o analisante vai, passo a passo, esburacando este lugar, o analista vai perdendo esta aura de suposição de saber. A consequência disto é que o analista não vai mais 
ter o poder de relançar o sujeito para mais uma volta no seu percurso. 
Espera-se que este momento seja aquele que venha encerrar um tempo de compreender e o sujeito em questão possa fazer uma passagem a partir mesmo do resto a que o sujeito suposto saber se transforma. 
Para além de suas vestimentas imaginárias, semblantes que o analista pôde encarnar para um sujeito, este o verá cair do lugar do Outro do saber ao lugar do “a”, objeto libidinal. 
Esta passagem, nós a conhecemos da teorização de Lacan, é a de analisante para analista quando este sujeito deseja, ele mesmo se prestar a sustentar este lugar de causa. 

Este termo "liquidação da transferência", se ele tem um sentido, é o da liquidação permanente deste engano através do qual a transferência tende a exercer o fechamento do inconsciente. Ou seja, no duplo movimento da transferência onde o sujeito se engancha supondo um saber ao Outro - estabelecendo o amor de transferência - vamos ver acontecer o engodo do tamponamento da falta do Outro. Este mecanismo é o da relação narcísica onde o sujeito tenta se colocar no lugar em que ele acredita ser amado pelo Outro. "De sua referência àquele que deve lhe amar, ele tenta induzir o Outro numa relação de miragem onde ele se convence ser amável".

domingo, 16 de outubro de 2016

Sobre o Traço de Perversão: Uma Brecha na Fantasia


     "Isto que a psicanálise nos demonstra concernente ao desejo na sua função que se pode dizer a mais natural, já que é dela que depende a manutenção da espécie, isto não é, somente, que ele seja submisso na sua instância, sua apropriação, sua normalidade para dizer tudo, aos acidentes da história do sujeito (noção do traumatismo com contingência), é que tudo isso exige o concurso de elementos estruturais que, por intervirem, dispensam esses acidentes, e cuja incidência desarmonica, inesperada, difícil a reduzir, parece mais deixar à experiência um resíduo que pode arrancar de Freud a confissão de que a sexualidade deve trazer o traço de alguma rachadura pouco natural”.  (J. Lacan, Écrits pág. 812). 

      Vivenciando a nossa clínica no seu dia-a-dia, Uma questão se me apresenta: o que é traço?
Optei por começar com uma pesquisa: como e em que contextos Freud utiliza a palavra traço em sua obra? Trabalhando com o texto original em alemão e cotejando-o com as traduções em inglês e português, pude observar que em alemão existem, pelo menos, três versões para a palavra traço: Zeichen, Zug e Spur. Como não podia deixar de acontecer, cada uma delas nos remete a recortes conceituais diferentes que, infelizmente, se perdem quando da tradução por uma única palavra em outras línguas.
Com o intuito de dar uma sequência ao trabalho, escolhi algumas passagens da obra de Freud, onde encontramos cada uma dessas palavras. Penso que são passagens representativas e que poderão clarear suas respectivas conceituações.
Encontramos a palavra Zeichen (traço, sinal, distintivo, insígnia, indício), principalmente, no "Projeto para uma psicologia científica", "Carta 52 da correspondência a Fliess" e em "A Interpretação dos sonhos". Tomemos como exemplo a "Carta 52" e vejamos como Freud (1896/1969, p. 254) se dirige a Fliess:

[...] Você sabe, eu trabalho com a suposição de que nosso mecanismo psíquico aparece através de camada sobre camada: o material presente na forma de traços de memória (Erinnerungsspuren) sofre, de tempos em tempos, um rearranjo, uma transcrição após novas relações. O essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços (indícios: Zeichen) [...].

Mais adiante, na mesma "Carta 52", quando está a definir o que seja cada uma das "camadas", Freud (1896/1969, p. 254) vai nos dizer que uma delas é a WZ (Wahrnehmungszeichen) - traços de percepção - que consiste no “primeiro registro da percepção [...]”. Sem muito me alongar em citações, posso dizer-lhes que em todas as outras ocasiões por mim analisadas, em que surge a palavra Zeichen, ela vem sempre com o sentido de indicações, insígnias, ou seja, ligada à percepção. Posso inclusive associá-la à palavra Vorstellung (apresentação), tão comum nos escritos freudianos posteriores.
Quanto à palavra Zug (traço, sulco, puxada, puxão), vamos encontrá-la, principalmente, em duas passagens:
1. No texto "Uma criança é batida", primeiro parágrafo da segunda parte: “Uma fantasia desse tipo, proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto-erótica pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista como um traço primário (primaren Zug) de perversão” (FREUD, 1919/1969, p. 228).
2. Em "Psicologia das massas e análise do eu", parte VII – “A identificação”. Essa citação foi a mesma utilizada por Lacan em seu Seminário A identificação, para trabalhar o conceito de traço unário: “Deve também nos surpreender que em ambos os casos a identificação seja parcial e extremamente limitada (höscht beschränkte), tomando emprestado apenas um traço único (einzigen Zug) da pessoa que é seu objeto” (FREUD, 1921/1969, p. 135).
Talvez possamos encontrar outras passagens em que Freud utilize a palavra Zug; a mim, no entanto, não foi possível localizá-las nos textos com os quais trabalhei. Portanto, penso que posso dizer-lhes que o conceito de Zug está, fundamentalmente, associado aos conceitos de primário e unário. Para dar um passo a mais, posso dizer-lhes, também, que o einziger Zug tem como consequência lógica a Bejahung primordial.
Enfim, examinemos a palavra Spur (traço, vestígio, pista, rastro). Esta, talvez, seja a palavra alemã para traço que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Dois textos, no entanto, são de capital importância para apreendermos o conceito de Spur em Freud: "Carta 52" e "Notas sobre o bloco mágico". Na "Carta 52", por exemplo, quando Freud (1896/1969) nos descreve a camada W (Wahrnehmung), ele é bastante claro ao dizer que se trata de neurônios nos quais "nenhum traço" (kein Spur) do que acontece permanece. Só vamos ver surgir os traços (Spuren) quando do segundo registro (UB - Unbewusst): “[...] traços do Inconsciente (UB Spuren) são algo equivalente a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen) [...]”.
Posso lembrar-lhes, nesse ponto, que esses UB Spuren são o que Freud vai chamar, mais tarde, de Vorstellungsrepräsentanz, que é, como nos diz Lacan (1998a, p. 723), “o significante que é recalcado, pois não há outro sentido a dar nesses textos” a essa palavra.
No entanto, é no texto "Notas sobre o bloco mágico" que Freud vai trabalhar exaustivamente o conceito de Spur, que estará sempre ligado ao conceito de memória (Erinnerung) e permanência (Dauer).
A partir do que lhes trouxe até aqui, uma hipótese surge: mais do que simples diferenças de traduções ou de grafia, cada uma dessas palavras utilizadas por Freud apontam um recorte conceitual preciso e nos ajudam a pensar não só os vários "tempos" do sujeito, como também questões clínicas como "traços de perversão".
Na "Carta 52", nosso ponto de partida, Freud (1896/1969) nos fornece o seguinte esquema:

W ------ WZ ------ UB ------ VB ------ Bews
         I         II        III

- “W (Wahrnehmung) - São neurônios nos quais a percepção começa, aos quais a consciência se liga. Neles, nenhum traço (kein Spur) do que acontece permanece [...]”.
- “WZ (Wahrnehmungszeichen) é o primeiro registro (Niederschrift) da percepção. Sua conscientização é totalmente incapaz de se fazer (der Bewusstsein ganz unfahig), e são organizados de acordo com associações por simultaneidade (ach Gleichzeitigkeitsassoziation gefüt)”.
- “UB (Unbewusst) - é o segundo registro (Niederschrift); é ordenado conforme algo assim como relacionamento causal. Os traços (Spuren) de UB são equivalentes a algo assim como lembranças conceituais (Begriffserinnerung) e, da mesma forma, inacessíveis à consciência”.
- “VB (Vorbewusst) - é a terceira transcrição (Umschrift), ligada à representação de palavra (Wortvorstellung), e é aquilo que se refere ao nosso eu oficial”.
No desenvolvimento que Freud faz do esquema da "Carta 52", ele utiliza de maneira bastante clara os conceitos Zeichen e Spur. Será possível, nesse ponto, introduzir no esquema da "Carta 52" o conceito de Zug, a partir do que conhecemos da obra posterior de Freud e dos desenvolvimentos lacanianos?
Com toda a ousadia que me é permitida numa situação como esta, introduzo o conceito Zug, mais especificamente, einziger Zug, entre as camadas WZ e UB:

W ------ WZ ------ einziger Zug ------ UB ------ VB ------ Bews

Com o desejo de substanciar teoricamente o que acabo de propor, lanço mão do esquema R, assim como Lacan (1998b, p. 559) o desenvolve no seu texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose".



Esquema R

O esquema R é um desdobramento do esquema L, primeiramente desenhado no seminário sobre "A carta roubada". Ele é dividido em três partes:
1. O triângulo imaginário.
2. A faixa do real (leia-se realidade), faixa esta que, uma vez extraído o objeto a, vai sofrer uma meia torção, transformando-se em uma banda de Moebius, para nos dizer do sujeito e do pouco-de-realidade.
3. O triângulo do simbólico.
Em cada um dos seus vértices, Lacan vai instalar uma letra, designando cada uma - o grande A no caminho do sujeito. Essas letras também nos auxiliam a matemizar as três posições do analista na direção do tratamento. São elas: M - no instante de olhar, a mãe enquanto das Ding; I - no tempo para compreender, o ideal do eu enquanto matriz simbólica; e, enfim, em P - o momento de concluir pelo Nome-do-Pai enquanto representante da lei. No que diz respeito ao caminho do sujeito, posso localizar a privação do sujeito no real em M, onde vai faltar um objeto simbólico no real; a frustração na posição I, onde falta um objeto real no imaginário especular; e, finalmente, a castração em P, instalando-se definitivamente a falta no simbólico de um objeto imaginário.
Nesse ponto, uma articulação entre o esquema freudiano e o lacaniano me parece possível: M corresponderia às camadas W e WZ, camadas iniciais do aparelho psíquico freudiano da "Carta 52". Esse momento em que existem apenas e tão somente percepções, ou seja, nem sujeito nem objeto a serem percebidos. Existem apenas percepções que, num certo momento, vão se constituir em traços, insígnias, formando o que Freud (1895/1969) denominou, no "Projeto para uma psicologia científica", de "o complexo do semelhante" (Der Nebenmensch Komplex).
O importante, aqui, fica por conta do fato de que não se distingue ainda a qual desses traços de percepção vai se ligar todo o processo de identificação que irá se constituir no nome próprio, a partir do qual o sujeito advirá para nomear todas as coisas que vão fazer existir o pouco-de-realidade de seu mundo ficcional.
Entre as camadas WZ e UB, no esquema freudiano, e entre M e I, no esquema lacaniano, faço incidir a presença inaugurante do traço unário, que “é aquilo que apaga a Coisa”, como nos diz um autor anônimo em Scilicet (1970, p. 124), n° 2/3,

ele aí apaga tudo, exceto este um que ela foi, e jamais será substituída; Lacan dá esta fórmula: Wo es war, da durch das eins werde ich - aí onde era (a Coisa), aí pelo um advirei eu, e é o traço unário que faz aparecer o sujeito como aquele que conta. Mas o primeiro passo do sujeito não pode ser articulado a não ser como a introdução do nada como tal, no sentido do Nihil Negativum de Kant, objeto vazio sem conceito (Leere Gegenstand Ohne Begriff) [...].

Este é o começo do sujeito: uma vez instalado o traço unário, não vemos aparecer, como se pensa por aí, um “isto-bom que é incluído no eu e um isto-mau que é expulso do eu, mas parece que estamos, antes, autorizados a pensar que não há dois "istos", mas sim um e que o sujeito incorpora, e o que se encontra é que, nesse momento, algo se perde (dechoit) dessa incorporação [...]”.
Assim, com o traço unário, instala-se o que Freud denominou de segundo registro, uma vez que o ordenamento aqui já se faz em função de um relacionamento causal, produzindo lembranças conceituais. É o momento em que um eu ideal é a
imagem que se fixa [...] desde o ponto em que o sujeito se detém como ideal do eu. [...] Na captura que sofre de sua natureza imaginária, ele mascara sua duplicidade, qual seja, que a consciência com que ele garante a si mesmo uma existência incontestável [...] não lhe é de modo algum imanente, mas transcendente, uma vez que se apóia no traço unário do ideal do eu (LACAN, 1998c, p. 823).

É no Outro que o sujeito vai existir, na medida em que, dependente fundamentalmente de seu amor, “isto é, pelo desejo de seu desejo, identifica-se com o objeto imaginário desse desejo, na medida em que a própria mãe o simboliza no falo” (LACAN, 1998b, p. 561).
Passagem fundamental acontece nesse ponto quando, de acordo com o esquema da "Carta 52", a terceira transcrição é possível, ligando lembranças conceituais (Begriffserinnerungen) a representações de palavras (Wortvorstellungen). É o momento de instalação da lei, quando vai ser colocada em relevo a duplicidade que a imagem do eu ideal tentava mascarar. Com isso, precipita-se o ideal do eu como herdeiro desse momento que se resolve na separação. Em outras palavras, é a entrada do significante fálico que vem ordenar, estabelecer uma sequência e um tempo de espera para o que só visava o imediato do gozo sem limites.
E assim, num só-depois, poderemos observar a evolução que os esquemas apontam em sua dimensão cronológica. É a série que, começando no universo perceptivo das imagens ideográficas (Zeichen), vê eleger-se um traço unário (einziger Zug), um “traço distintivo, traço exatamente tanto mais distintivo quanto mais está apagado tudo que o distingue, salvo ser um traço, acentuado o fato de que quanto mais parecido, mais funciona, não digo como signo, mas sim suporte da diferença [...]” (LACAN, 1961-1962, aula de 13/12/1961, inédito) que, ao constituir-se em letra, vai se tornar o que sustenta materialmente o significante enquanto traço de memória (Erinnerungsspur).
Sendo, portanto, recortes conceituais precisos, quando falamos em "traços de perversão", de qual "traço" se trata: Zeichen, Zug ou Spur?
Freud (1924/1969, p. 203), no texto "O problema econômico do masoquismo", nos diz: “A castração, ou seu substituto, a cegueira, deixam, com frequência, um traço negativo (negative Spur) nas fantasias (masoquistas), pois nenhum dano deve ocorrer precisamente aos genitais ou aos olhos”. Seria possível interpretar essa frase de Freud no que diz respeito ao traço negativo, como um traço que, uma vez instalado, foi negativado? (Ou, quem sabe, desmentido?).
Encontro em outro texto de Freud (1896/1969, p. 256) subsídio para tentar responder a essa questão. É na "Carta 52", essa inesgotável fonte teórica:

Uma falha na tradução, isso é o que se chama, clinicamente, recalque [...]. Dentro de uma mesma fase psíquica e entre os registros da mesma espécie, forma-se uma defesa normal devido à produção de desprazer. Já a defesa patológica somente ocorre contra um traço de memória (Erinnerungsspur) de uma fase anterior que não foi traduzido.

Partindo daí, penso poder dizer que um traço negativo é exatamente um traço que, tendo chegado a se constituir em mais um na cadeia, "regride" ao que passa a ser um traço (Zug) que, assim, adquire a função da qual não sofreu tradução, ou seja, passa a não se submeter à ação ordenadora do significante falo, exigindo, portanto, a ação de mecanismos de defesa patológicos.

Uma fantasia desse tipo (perversa), proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto-erótica, pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista como um traço primário (primären Zug) de perversão (FREUD, 1919/1969).

Coloco-lhes, então, minha proposta: localizar a ação da Verleugnung, esse mecanismo de defesa patológico que tenta dar conta do que não sofreu tradução, entre as camadas WZ e UB no esquema modificado da "Carta 52" ou, no esquema lacaniano, entre o I e o P (esquema R). Agindo nesse ponto, a Verleugnung (desmentido) negativa a ação legislativa do significante falo, deixando sobreviver, sem tradução, um traço primário (primären Zug) que se faz o único, nesse momento, a ditar as leis: é a vontade de gozo que surge na brecha aberta da tela protetora da fantasia fundamental. É a marca estrutural que diferencia um traço de perversão de um acting-out, que se caracteriza por ser um signo cênico transitório em seu endereçamento a um outro que não está. Diferencia-se também dos traços da fantasia, esses significantes que surgem no percurso de uma análise, a partir dos quais pode-se, eventualmente, ser construída a fantasia fundamental.



REFERÊNCIAS


FREUD, Sigmund. “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1985]). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. I. “Project to a Cientifique Psychology”. In: Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1966.

FREUD, Sigmund. "Carta 52" (1896). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. I. “Aus den Anfängen der Psychoanalysis”. London: Imago Publishing - CO, LTD, 1950, p. 185, 187. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. I, p. 233, 235.

FREUD, Sigmund. "Uma criança é espancada" (1919). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XVII. Studienausgaben. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. VII, p. 233. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. XVII, p. 181.

FREUD, Sigmund. "Psicologia das massas e análise do eu" (1921). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XVII. Studienausgaben. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. IX, p. 100. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. XVII, p. 107.

FREUD, Sigmund. "O problema econômico do masoquismo" (1924). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XIX. Studienausgaben. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. III, p. 346. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. XIX, p. 162.

LACAN, Jacques. Le Séminaire, livre IX: L’identification (1961-1962). Paris (inédito).

LACAN, Jacques. "À memoria de Ernest Jones: Sobre sua teoria do simbolismo". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998a.

LACAN, Jacques. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-1958)". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998b.

LACAN, Jacques. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998c.

Scilicet, n° 2/3. Paris: Seuil, 1970.


sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Inconsciente, Linguagem, Letra e Sentido (II)

O sentido tem uma propriedade fundamental: ser o que nos fascina, na palavra. É interessante notar a homofonia desta palavra nos dizendo que algo “faz sina” no sentido, traçando o destino do sujeito. O termo fascinação nos indica o que de imaginário permanece na função da palavra. Se sabemos por experiência de nossa própria análise que a palavra faz vacilar o ser do sujeito e pode introduzi-lo na falta a ser, por outro lado sabemos que nesse caminho retém o que aí permanece de fascinação do sentido, relançando o vetor do grafo para os velhos caminhos do sintoma. É aí que Lacan vai opor sentido e signo em seus escritos de 70.
Para esclarecer esta oposição vamos tomar o que se diz sob o termo de mensagem cifrada, tão frequente nos escritos de Lacan quando ele se refere ao sintoma. Esta expressão, mensagem cifrada, traz em si mesmo uma ambiguidade que vai nos permitir caminhar um pouco mais. Ao mesmo tempo que nos remete, atraves do termo mensagem, à comunicação, uma mensagem cifrada pode nos levar ao equivoco de pensarmos que falta um Código que poderia decifrá-la, se pensamos que cifra só se refere ao significante. No entanto esta expressão só poderá ser esclarecida se tomarmos por referência a libido, este mito freudiano, que Lacan vai substituir por seu conceito de gozo. 
A perspectiva lacaniana sobre a experiência analítica se sustenta na formulação sobre o gozo que é descrito como a verdade estrutural do mito freudiano que se constitui nos desfiladeiros lógicos que Freud seguiu para decifrar os fenômenos inconscientes. Partindo deste princípio, o termo mensagem ficaria corroído pelo seu adjetivo cifra. A cifra carcome a mensagem. "O termo cifra está aí introduzido na vertente mesma do signo, reduzindo o gozo ao cifrado. O gozo está no cifrado mesmo: é assim que se isola um efeito que não é do sentido.”
Esta formulação deixa entrever que nas propostas mesmo de metáfora e metonímia - estes dois tipos de articulações significantes - o efeito de sentido que emerge na metáfora e fica retido na metonímia. A proposta do gozo estar na cifra, implica que a articulação do significante produz um efeito distinto do sentido. Este outro efeito Lacan chamou de sentido-gozado (jouis-sens). É este efeito que escapa a observação dos linguistas e que só pode ser percebido se se leva em conta que o inconsciente está aí implicado. E uma das formas de se levar em conta o inconsciente é, sem dúvida, o sintoma que, em outras palavras, foi como efeito de sentido gozado introduzido nos estudos da linguagem. O sintoma que obriga a complementar o efeito de sentido com o de gozo, já foi abordado de várias formas ao longo da experiência analítica, como uma maneira da resistência se manifestar. Uma destas formas muito conhecidas deste Freud é a chamada reação terapêutica negativa. 
É neste ponto, em que a distinção entre significante e significado conduzem ao Outro, que linguagem e discurso se distinguem. De S/s passamos à função do Outro, que vai ocupar o lugar de significante. Tem-se que levar em conta que não é possível implicar o significante, definido por sua diferença com respeito aos outros significantes, sem implicar o Outro como conjunto de significantes. 

S     (A)
s    s(A)

O significado também poderá ser substituído pelo Outro na medida em que ele é também o mestre do sentido.
O significante introduz a diferença consigo mesmo porque para ele não há princípio de identidade. É a partir mesmo deste princípio que a cadeia significante desliza. Em outras palavras podemos afirmar que para o significante é impensável dizer que B = B, ou seja há dois "B". Esta distinção se mantém até o infinito. Esta diferença é o espaço onde vemos surgir o sujeito que, na sua singularidade, é pura diferença. Destacar, no final de uma análise, a partir do desejo do analista, a pura diferença é, em outras palavras, fazer surgir o sujeito ali onde uma identificação ao ideal da não diferença insiste em se apresentar. Com a letra, no entanto, é possível verificar o princípio da identidade onde B = B. 
Quando se trata de um significante podemos plantear ao menos S1 – S2 para ter o Outro, enquanto que para B, que é uma letra, uma só basta e não se concebe colocá-la em cadeia. 
O sentido, portanto, vamos colocá-lo com respeito ao Outro, enquanto que o sentido gozado (Jouis-sens) não pode ser relacionado com o Outro. O sentido como sentido do Outro implica, além do mais, o desejo como desejo do Outro. Essa afirmação nos conduz à problemática mesmo do desejo do analista, ou seja, aquilo que como efeito de sentido, deve ser obtido do enunciado do analista. No entanto, por em relação ao analista o gozo do Outro é algo completamente distinto. 
Em Televisão Lacan vai definir o sintoma como um nó que captura cadeias de gozo. Essa definição esclarece a expressão mensagem cifrada. Este gozo – ou sentido gozado – não é relativo ao Outro, com ele se designa um nível mais fundamental que o Outro, que aparece então como um derivado.
Supostamente a linguagem deve ser prévia ao gozo, quando é o gozo de pequeno "a". Porém neste ponto o conceito de Outro se encontra diferenciado em Lacan. Se consideramos que o gozo é mais fundamental que o Outro, como Lacan vai nos esclarecer, podemos acompanhar porque ele introduz o conceito de lalíngua como anterior ao da linguagem. Considera que a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalingua. Neste nível primordial são solidários o gozo e lalingua, e resultam derivados o desejo, o discurso e inclusive a linguagem. 
Ao tomar estas duas referências pode-se verificar em alguns  matemas de Lacan a presença destas articulações. Por exemplo no Grafo do desejo verifica-se:
d   ($<>a)
Fórmula que coloca o desejo frente à fantasia fundamental na medida que o gozo está localizado na fantasia. Nesta fórmula temos uma preeminência dada ao desejo. 
Já no matema:
o objeto a, mais de gozar, está em posição de privilégio em relação ao sujeito do desejo e o orçamento em conta a posição central, operativa, da forma de gozo como o que determina o modo de divisão do sujeito. Deste então se abre uma clínica diferencial a partir das diferentes inscrições que este objeto a pode receber quando se refere ao Outro, o companheiro sexual. Sabe-se que sempre se referência de maneira enganosa, porque neste nível fundamental o gozo é um gozo sem companheiro, um gozo que podemos denominar, com JAMiller, de autista.
Tudo isso esclarece porque se fala de histerização do sujeito numa entrada em análise: o sintoma histérico, por apresentar seu modo de gozar do inconsciente passando pelo Outro, implica em seu gozo mesmo o desejo do Outro.