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domingo, 16 de outubro de 2016

Sobre o Traço de Perversão: Uma Brecha na Fantasia


     "Isto que a psicanálise nos demonstra concernente ao desejo na sua função que se pode dizer a mais natural, já que é dela que depende a manutenção da espécie, isto não é, somente, que ele seja submisso na sua instância, sua apropriação, sua normalidade para dizer tudo, aos acidentes da história do sujeito (noção do traumatismo com contingência), é que tudo isso exige o concurso de elementos estruturais que, por intervirem, dispensam esses acidentes, e cuja incidência desarmonica, inesperada, difícil a reduzir, parece mais deixar à experiência um resíduo que pode arrancar de Freud a confissão de que a sexualidade deve trazer o traço de alguma rachadura pouco natural”.  (J. Lacan, Écrits pág. 812). 

      Vivenciando a nossa clínica no seu dia-a-dia, Uma questão se me apresenta: o que é traço?
Optei por começar com uma pesquisa: como e em que contextos Freud utiliza a palavra traço em sua obra? Trabalhando com o texto original em alemão e cotejando-o com as traduções em inglês e português, pude observar que em alemão existem, pelo menos, três versões para a palavra traço: Zeichen, Zug e Spur. Como não podia deixar de acontecer, cada uma delas nos remete a recortes conceituais diferentes que, infelizmente, se perdem quando da tradução por uma única palavra em outras línguas.
Com o intuito de dar uma sequência ao trabalho, escolhi algumas passagens da obra de Freud, onde encontramos cada uma dessas palavras. Penso que são passagens representativas e que poderão clarear suas respectivas conceituações.
Encontramos a palavra Zeichen (traço, sinal, distintivo, insígnia, indício), principalmente, no "Projeto para uma psicologia científica", "Carta 52 da correspondência a Fliess" e em "A Interpretação dos sonhos". Tomemos como exemplo a "Carta 52" e vejamos como Freud (1896/1969, p. 254) se dirige a Fliess:

[...] Você sabe, eu trabalho com a suposição de que nosso mecanismo psíquico aparece através de camada sobre camada: o material presente na forma de traços de memória (Erinnerungsspuren) sofre, de tempos em tempos, um rearranjo, uma transcrição após novas relações. O essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços (indícios: Zeichen) [...].

Mais adiante, na mesma "Carta 52", quando está a definir o que seja cada uma das "camadas", Freud (1896/1969, p. 254) vai nos dizer que uma delas é a WZ (Wahrnehmungszeichen) - traços de percepção - que consiste no “primeiro registro da percepção [...]”. Sem muito me alongar em citações, posso dizer-lhes que em todas as outras ocasiões por mim analisadas, em que surge a palavra Zeichen, ela vem sempre com o sentido de indicações, insígnias, ou seja, ligada à percepção. Posso inclusive associá-la à palavra Vorstellung (apresentação), tão comum nos escritos freudianos posteriores.
Quanto à palavra Zug (traço, sulco, puxada, puxão), vamos encontrá-la, principalmente, em duas passagens:
1. No texto "Uma criança é batida", primeiro parágrafo da segunda parte: “Uma fantasia desse tipo, proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto-erótica pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista como um traço primário (primaren Zug) de perversão” (FREUD, 1919/1969, p. 228).
2. Em "Psicologia das massas e análise do eu", parte VII – “A identificação”. Essa citação foi a mesma utilizada por Lacan em seu Seminário A identificação, para trabalhar o conceito de traço unário: “Deve também nos surpreender que em ambos os casos a identificação seja parcial e extremamente limitada (höscht beschränkte), tomando emprestado apenas um traço único (einzigen Zug) da pessoa que é seu objeto” (FREUD, 1921/1969, p. 135).
Talvez possamos encontrar outras passagens em que Freud utilize a palavra Zug; a mim, no entanto, não foi possível localizá-las nos textos com os quais trabalhei. Portanto, penso que posso dizer-lhes que o conceito de Zug está, fundamentalmente, associado aos conceitos de primário e unário. Para dar um passo a mais, posso dizer-lhes, também, que o einziger Zug tem como consequência lógica a Bejahung primordial.
Enfim, examinemos a palavra Spur (traço, vestígio, pista, rastro). Esta, talvez, seja a palavra alemã para traço que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Dois textos, no entanto, são de capital importância para apreendermos o conceito de Spur em Freud: "Carta 52" e "Notas sobre o bloco mágico". Na "Carta 52", por exemplo, quando Freud (1896/1969) nos descreve a camada W (Wahrnehmung), ele é bastante claro ao dizer que se trata de neurônios nos quais "nenhum traço" (kein Spur) do que acontece permanece. Só vamos ver surgir os traços (Spuren) quando do segundo registro (UB - Unbewusst): “[...] traços do Inconsciente (UB Spuren) são algo equivalente a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen) [...]”.
Posso lembrar-lhes, nesse ponto, que esses UB Spuren são o que Freud vai chamar, mais tarde, de Vorstellungsrepräsentanz, que é, como nos diz Lacan (1998a, p. 723), “o significante que é recalcado, pois não há outro sentido a dar nesses textos” a essa palavra.
No entanto, é no texto "Notas sobre o bloco mágico" que Freud vai trabalhar exaustivamente o conceito de Spur, que estará sempre ligado ao conceito de memória (Erinnerung) e permanência (Dauer).
A partir do que lhes trouxe até aqui, uma hipótese surge: mais do que simples diferenças de traduções ou de grafia, cada uma dessas palavras utilizadas por Freud apontam um recorte conceitual preciso e nos ajudam a pensar não só os vários "tempos" do sujeito, como também questões clínicas como "traços de perversão".
Na "Carta 52", nosso ponto de partida, Freud (1896/1969) nos fornece o seguinte esquema:

W ------ WZ ------ UB ------ VB ------ Bews
         I         II        III

- “W (Wahrnehmung) - São neurônios nos quais a percepção começa, aos quais a consciência se liga. Neles, nenhum traço (kein Spur) do que acontece permanece [...]”.
- “WZ (Wahrnehmungszeichen) é o primeiro registro (Niederschrift) da percepção. Sua conscientização é totalmente incapaz de se fazer (der Bewusstsein ganz unfahig), e são organizados de acordo com associações por simultaneidade (ach Gleichzeitigkeitsassoziation gefüt)”.
- “UB (Unbewusst) - é o segundo registro (Niederschrift); é ordenado conforme algo assim como relacionamento causal. Os traços (Spuren) de UB são equivalentes a algo assim como lembranças conceituais (Begriffserinnerung) e, da mesma forma, inacessíveis à consciência”.
- “VB (Vorbewusst) - é a terceira transcrição (Umschrift), ligada à representação de palavra (Wortvorstellung), e é aquilo que se refere ao nosso eu oficial”.
No desenvolvimento que Freud faz do esquema da "Carta 52", ele utiliza de maneira bastante clara os conceitos Zeichen e Spur. Será possível, nesse ponto, introduzir no esquema da "Carta 52" o conceito de Zug, a partir do que conhecemos da obra posterior de Freud e dos desenvolvimentos lacanianos?
Com toda a ousadia que me é permitida numa situação como esta, introduzo o conceito Zug, mais especificamente, einziger Zug, entre as camadas WZ e UB:

W ------ WZ ------ einziger Zug ------ UB ------ VB ------ Bews

Com o desejo de substanciar teoricamente o que acabo de propor, lanço mão do esquema R, assim como Lacan (1998b, p. 559) o desenvolve no seu texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose".



Esquema R

O esquema R é um desdobramento do esquema L, primeiramente desenhado no seminário sobre "A carta roubada". Ele é dividido em três partes:
1. O triângulo imaginário.
2. A faixa do real (leia-se realidade), faixa esta que, uma vez extraído o objeto a, vai sofrer uma meia torção, transformando-se em uma banda de Moebius, para nos dizer do sujeito e do pouco-de-realidade.
3. O triângulo do simbólico.
Em cada um dos seus vértices, Lacan vai instalar uma letra, designando cada uma - o grande A no caminho do sujeito. Essas letras também nos auxiliam a matemizar as três posições do analista na direção do tratamento. São elas: M - no instante de olhar, a mãe enquanto das Ding; I - no tempo para compreender, o ideal do eu enquanto matriz simbólica; e, enfim, em P - o momento de concluir pelo Nome-do-Pai enquanto representante da lei. No que diz respeito ao caminho do sujeito, posso localizar a privação do sujeito no real em M, onde vai faltar um objeto simbólico no real; a frustração na posição I, onde falta um objeto real no imaginário especular; e, finalmente, a castração em P, instalando-se definitivamente a falta no simbólico de um objeto imaginário.
Nesse ponto, uma articulação entre o esquema freudiano e o lacaniano me parece possível: M corresponderia às camadas W e WZ, camadas iniciais do aparelho psíquico freudiano da "Carta 52". Esse momento em que existem apenas e tão somente percepções, ou seja, nem sujeito nem objeto a serem percebidos. Existem apenas percepções que, num certo momento, vão se constituir em traços, insígnias, formando o que Freud (1895/1969) denominou, no "Projeto para uma psicologia científica", de "o complexo do semelhante" (Der Nebenmensch Komplex).
O importante, aqui, fica por conta do fato de que não se distingue ainda a qual desses traços de percepção vai se ligar todo o processo de identificação que irá se constituir no nome próprio, a partir do qual o sujeito advirá para nomear todas as coisas que vão fazer existir o pouco-de-realidade de seu mundo ficcional.
Entre as camadas WZ e UB, no esquema freudiano, e entre M e I, no esquema lacaniano, faço incidir a presença inaugurante do traço unário, que “é aquilo que apaga a Coisa”, como nos diz um autor anônimo em Scilicet (1970, p. 124), n° 2/3,

ele aí apaga tudo, exceto este um que ela foi, e jamais será substituída; Lacan dá esta fórmula: Wo es war, da durch das eins werde ich - aí onde era (a Coisa), aí pelo um advirei eu, e é o traço unário que faz aparecer o sujeito como aquele que conta. Mas o primeiro passo do sujeito não pode ser articulado a não ser como a introdução do nada como tal, no sentido do Nihil Negativum de Kant, objeto vazio sem conceito (Leere Gegenstand Ohne Begriff) [...].

Este é o começo do sujeito: uma vez instalado o traço unário, não vemos aparecer, como se pensa por aí, um “isto-bom que é incluído no eu e um isto-mau que é expulso do eu, mas parece que estamos, antes, autorizados a pensar que não há dois "istos", mas sim um e que o sujeito incorpora, e o que se encontra é que, nesse momento, algo se perde (dechoit) dessa incorporação [...]”.
Assim, com o traço unário, instala-se o que Freud denominou de segundo registro, uma vez que o ordenamento aqui já se faz em função de um relacionamento causal, produzindo lembranças conceituais. É o momento em que um eu ideal é a
imagem que se fixa [...] desde o ponto em que o sujeito se detém como ideal do eu. [...] Na captura que sofre de sua natureza imaginária, ele mascara sua duplicidade, qual seja, que a consciência com que ele garante a si mesmo uma existência incontestável [...] não lhe é de modo algum imanente, mas transcendente, uma vez que se apóia no traço unário do ideal do eu (LACAN, 1998c, p. 823).

É no Outro que o sujeito vai existir, na medida em que, dependente fundamentalmente de seu amor, “isto é, pelo desejo de seu desejo, identifica-se com o objeto imaginário desse desejo, na medida em que a própria mãe o simboliza no falo” (LACAN, 1998b, p. 561).
Passagem fundamental acontece nesse ponto quando, de acordo com o esquema da "Carta 52", a terceira transcrição é possível, ligando lembranças conceituais (Begriffserinnerungen) a representações de palavras (Wortvorstellungen). É o momento de instalação da lei, quando vai ser colocada em relevo a duplicidade que a imagem do eu ideal tentava mascarar. Com isso, precipita-se o ideal do eu como herdeiro desse momento que se resolve na separação. Em outras palavras, é a entrada do significante fálico que vem ordenar, estabelecer uma sequência e um tempo de espera para o que só visava o imediato do gozo sem limites.
E assim, num só-depois, poderemos observar a evolução que os esquemas apontam em sua dimensão cronológica. É a série que, começando no universo perceptivo das imagens ideográficas (Zeichen), vê eleger-se um traço unário (einziger Zug), um “traço distintivo, traço exatamente tanto mais distintivo quanto mais está apagado tudo que o distingue, salvo ser um traço, acentuado o fato de que quanto mais parecido, mais funciona, não digo como signo, mas sim suporte da diferença [...]” (LACAN, 1961-1962, aula de 13/12/1961, inédito) que, ao constituir-se em letra, vai se tornar o que sustenta materialmente o significante enquanto traço de memória (Erinnerungsspur).
Sendo, portanto, recortes conceituais precisos, quando falamos em "traços de perversão", de qual "traço" se trata: Zeichen, Zug ou Spur?
Freud (1924/1969, p. 203), no texto "O problema econômico do masoquismo", nos diz: “A castração, ou seu substituto, a cegueira, deixam, com frequência, um traço negativo (negative Spur) nas fantasias (masoquistas), pois nenhum dano deve ocorrer precisamente aos genitais ou aos olhos”. Seria possível interpretar essa frase de Freud no que diz respeito ao traço negativo, como um traço que, uma vez instalado, foi negativado? (Ou, quem sabe, desmentido?).
Encontro em outro texto de Freud (1896/1969, p. 256) subsídio para tentar responder a essa questão. É na "Carta 52", essa inesgotável fonte teórica:

Uma falha na tradução, isso é o que se chama, clinicamente, recalque [...]. Dentro de uma mesma fase psíquica e entre os registros da mesma espécie, forma-se uma defesa normal devido à produção de desprazer. Já a defesa patológica somente ocorre contra um traço de memória (Erinnerungsspur) de uma fase anterior que não foi traduzido.

Partindo daí, penso poder dizer que um traço negativo é exatamente um traço que, tendo chegado a se constituir em mais um na cadeia, "regride" ao que passa a ser um traço (Zug) que, assim, adquire a função da qual não sofreu tradução, ou seja, passa a não se submeter à ação ordenadora do significante falo, exigindo, portanto, a ação de mecanismos de defesa patológicos.

Uma fantasia desse tipo (perversa), proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto-erótica, pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista como um traço primário (primären Zug) de perversão (FREUD, 1919/1969).

Coloco-lhes, então, minha proposta: localizar a ação da Verleugnung, esse mecanismo de defesa patológico que tenta dar conta do que não sofreu tradução, entre as camadas WZ e UB no esquema modificado da "Carta 52" ou, no esquema lacaniano, entre o I e o P (esquema R). Agindo nesse ponto, a Verleugnung (desmentido) negativa a ação legislativa do significante falo, deixando sobreviver, sem tradução, um traço primário (primären Zug) que se faz o único, nesse momento, a ditar as leis: é a vontade de gozo que surge na brecha aberta da tela protetora da fantasia fundamental. É a marca estrutural que diferencia um traço de perversão de um acting-out, que se caracteriza por ser um signo cênico transitório em seu endereçamento a um outro que não está. Diferencia-se também dos traços da fantasia, esses significantes que surgem no percurso de uma análise, a partir dos quais pode-se, eventualmente, ser construída a fantasia fundamental.



REFERÊNCIAS


FREUD, Sigmund. “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1985]). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. I. “Project to a Cientifique Psychology”. In: Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1966.

FREUD, Sigmund. "Carta 52" (1896). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. I. “Aus den Anfängen der Psychoanalysis”. London: Imago Publishing - CO, LTD, 1950, p. 185, 187. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. I, p. 233, 235.

FREUD, Sigmund. "Uma criança é espancada" (1919). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XVII. Studienausgaben. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. VII, p. 233. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. XVII, p. 181.

FREUD, Sigmund. "Psicologia das massas e análise do eu" (1921). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XVII. Studienausgaben. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. IX, p. 100. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. XVII, p. 107.

FREUD, Sigmund. "O problema econômico do masoquismo" (1924). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XIX. Studienausgaben. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. III, p. 346. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. XIX, p. 162.

LACAN, Jacques. Le Séminaire, livre IX: L’identification (1961-1962). Paris (inédito).

LACAN, Jacques. "À memoria de Ernest Jones: Sobre sua teoria do simbolismo". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998a.

LACAN, Jacques. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-1958)". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998b.

LACAN, Jacques. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998c.

Scilicet, n° 2/3. Paris: Seuil, 1970.


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