Antes de entrarmos na articulação dos discursos e a entrada em análise, vou trazer-lhes alguns comentários em torno do título que Miller escolheu para este capítulo: Saber, meio de gozo. Esta articulação entre saber e gozo será muito importante para determinarmos os giros dos discursos a partir do ato analítico que propicia a entrada e a sustentação de um sujeito em análise.
Lacan inicia o capítulo III do Seminário XVII “O Avesso da Psicanálise” estabelecendo um diálogo com Laplanche e Leclaire a propósito de uma afirmação produzida por ocasião do Colóquio de Bonneval promovido por Heny Ey sobre “O inconsciente”. Laplanche e Leclaire tratam a relação da linguagem e do inconsciente a partir da afirmação de que o “inconsciente é a condição da linguagem”. Afirmação que atribuem a Lacan. Aqui, neste seminário, Lacan reafirma, no entanto, que “A linguagem é a condição do inconsciente”. Ou seja, é a função da palavra no campo da linguagem que permitiu a Freud criar o conceito de inconsciente. Inconsciente que só ex-siste se um psicanalista se coloca em condições de escutá-lo por detrás do ditos que constituem o blá-blá-blá que um sujeito apresenta ao falar segundo as associações que acontecem quando um significante se apresenta na tentativa de representar um sujeito para outro significante.
Esta sequência, que chamamos de “associação livre” coloca em marcha um processo que pode ser definido como saber estabelecido a partir mesmo da série de vivências, experiências, que fizeram o sentido da vida de um determinado sujeito e que é para ele sua verdade. Este saber se ordena a partir do que ele não sabe e que pode ser assim explicitado: a cada vez que um significante é acrescentado na tentativa de representar o sujeito estabelece-se, certamente, um saber, mas empurra-se para frente o “não-sabido” sob a forma de um significante por vir. JAMiller, no seu Seminário “O Banquete dos Analistas”, mais especificamente na lição de 09 de maio de 1990, nos explica esta passagem do Seminário XVII de Lacan, fazendo referência aos números transfinitos de Cantor. Cantor utiliza a série de números inteiros para demonstrar a existência do que ele mesmo denomina os números transfinitos e que representa pelo símbolo Aleph. Assim posso resumir o que nos diz Miller: uma série de elementos de um conjunto é nomeada a partir de um lugar externo ao conjunto e que não pertence a este, p. ex. um conjunto de três “x” pode ser encerrado em um círculo e nomeado pelo número 3 instalado em um pequeno quadrado exterior a este círculo. Mas, se colocamos a série de números inteiros dentro deste círculo vamos trazer para dentro dele uma questão: Qual é o maior dos números inteiros que poderia ser colocado no quadrado exterior e nomear este conjunto? Em outras palavras, vamos trazer para dentro do círculo o “não-sabido”, pois a um número desta série sempre se pode acrescentar mais um. Desta forma, no quadrado exterior ao círculo, onde um nome poderia existir e definir o conjunto dos números inteiros, o que existiria é um ponto de interrogação. É levando, “em primeiro lugar, a consideração dos números inteiros e, em segundo lugar, a exteriorização do não-sabido e o marco de letras, ou números”, que Cantor vai poder dar um passo importante na conceituação lógica desta questão. E ele o faz ao estabelecer que esta exteriorização exige que se invente um novo significante que ali possa ser inscrito. Miller assim nos esclarece este passo: “um número tal que não seja inferior a outro, quer dizer, algo que seja um número, porém que desminta a propriedade de todos os números desta série”. Em outras palavras, um número que coloque uma nova estratificação, um número de uma nova espécie: A invenção de um novo significante que só é possível se se está em posição de “desabonado do inconsciente”, como Cantor.
Este campo assim fica delimitado é um campo de saber que tem seu marco em um ponto que, mesmo pertencendo a ele no que diz respeito a suas propriedades, permanece alheio, fora, delimitando o conjunto que assim se cria a partir deste marco. Uma analogia é possível aqui entre este campo de saber, o campo da realidade, que é composto pelos significantes que constituem a vivência de um sujeito. Campo da realidade que, assim como a série de números inteiros, sempre comporta mais um significante. Por isso, da mesma forma que com a série dos números inteiros não encontramos o maior dos números, não está ao nosso alcance encontrarmos o significante último que designaria a verdade de um sujeito. Pode-se mesmo afirmar que não existe. O matema S(A/) é a melhor forma que encontramos em Lacan para designar esta solidariedade entre a exteriorização deste ponto de interrogação e a constituição do marco pelo qual o não sabido se articula com o saber.
Em uma nota de rodapé acrescentada em 1966 a seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, que está nos Escritos, encontramos uma frase muito importante: “(o campo da realidade) só se sustenta pela extração do objeto ‘a’ que, no entanto, lhe dá seu marco”. Esta frase pode e deve ser trabalhada a partir da lógica cantoriana dos números transfinitos: “Esta proposição articula exatamente da mesma maneira a emergência do marco e a extração de um elemento, que aqui é o objeto ‘a’, na medida que é distinto de todo significante. Evidentemente “a” é um significante, porém feito para assinalar o caráter heterogêneo do objeto com respeito a ele. Desde esta perspectiva, a exteriorização mostra no significante lacaniano “a” um termo de algum modo equivalente ao Aleph0 cantoriano, na medida em que não é do mesmo tipo que os significantes.” Aqui o objeto ‘a’ é extraído como “não sabido” e dá o marco a partir do qual um pouco de realidade pode se sustentar.
Mas o que é esta extração do objeto ‘a’? Freud a ele se refere em “Perda da realidade na neurose e na psicose”, como sendo o desinvestimento libidinal necessário para que a realidade de um sujeito se construa, pois quando acontece o investimento libidinal de um elemento da percepção consciente a realidade se apresenta alterada. A alucinação é o exemplo que ele nos apresenta, para afirmar que a realidade se sustenta a partir de um menos de libido. A extração do objeto ‘a’ carrega consigo todo o investimento de libido. Por isso costumamos dizer que além de consistir logicamente (como este esquema cantoriano nos permite dizer) o objeto ‘a’ é um condensador de gozo (investimento libidinal). Esta é uma outra forma de dizer o que já afirmamos acima, seguindo os passos de Miller, que existe uma correlação entre o campo da realidade e o campo do saber, “podemos dizer que este último representa a tradução em termos significantes do gozo identificado aqui com o investimento libidinal”. Em outras palavras, o saber é a conseqüência da tradução da libido em significante. Retomo, para melhor explicitar esta passagem o processo de nomeação do corpo pelo Outro. Processo este que determina a tradução de cada ponto do corpo por um significante à medida que vai sendo investido libidinalmente. Este processo produz um esvaziamento de gozo transformando a carne em corpo simbólico. Esta é a equivalência entre saber e gozo em Lacan: “o intercâmbio do gozo com o significante constitui de maneira solidária o campo do saber e o campo da realidade”. Em outras palavras fazer o gozo entrar no mundo contável aprisionando-o nas malhas da rede significante, possibilitando à pulsão seu circuito e à demanda dizer de um sujeito que deseja.
Esta forma de tradução do gozo é o que podemos chamar de uma primeira subtração do gozo, feita pelo significante. Existe uma segunda que está explicitada na citação que lhes apresentei da nota de rodapé dos Escritos. “Como o significante não esgota a totalidade do gozo, no campo em que se realiza sua conversão em saber, permanece um excedente que Lacan denominou “a”, mais de gozar.” Trata-se de uma porção do gozo que não se traduz em significante. Algo do inconsciente que não passa à palavra e que, portanto, não é intercambiável pelo saber, para lembrar a Carta 52 de Freud a Fliess. A exteriorização deste elemento “a” é que vai dar, seguindo a lógica que estamos examinando, o marco do campo do saber.
Esta articulação pode ser desenhada no Discurso do Mestre se levamos em consideração que o inconsciente, enquanto saber se estrutura como uma linguagem onde S1 se articula a S2.. Importante assinalar que ela se sustenta pela produção de um mais de gozar (a) , de um resto que diz de um desejo que se constitui como metonímia da falta-a-ser, solidário do que não existe, do que está fora, exterior e íntimo. Desejo que se articula e que tem no movimento do sujeito em busca do querer ser, a possibilidade da construção de uma fantasia que nada mais é do que uma “janela para o Real”: o marco do saber possível. Saber que ele só tem acesso ao promover neste ponto um atravessamento para percebê-lo como marco a partir da criação de um novo significante. Em outras palavras do que se trata é de uma operação transfinita. É preciso deixar claro que não se trata de chegar à verdade do sujeito, pois esta permite sempre que se possa agregar algo mais, uma vez que só pode ser dita pela metade. Do que se trata, portanto é o “acesso a uma fórmula, ao Aleph0 de cada um, ainda que exista um aleph0 para todos, que Lacan formulou como não há relação sexual”.
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