Faço a opção de começar pela clínica e, desta forma, do particular para uma formalização passível de transmissão.
Maria começa sua primeira entrevista dizendo: “Sabe, estou lhe procurando porque não suporto mais a minha angústia”.
A angústia, nos ensina Freud, é um sinal. Um sinal de que algo não está funcionando bem. É um sinal de que as garantias que sustentavam o sujeito no mundo perderam esta capacidade.
Ao ser questionada sobre possíveis acontecimentos que poderiam estar relacionados com o surgimento desta angústia, Maria respondeu: “Está tudo absolutamente normal como sempre foi... com exceção de que vou me casar em breve. Mas, quanto a isto já está tudo resolvido. Nem quero tocar neste assunto. Aí não tem problema algum. Mas a minha angústia... está insuportável. Até aqui eu não contei para ninguém. Eu sempre aguentei tudo sozinha. Só agora é que comentei com uma amiga e ela me passou o seu nome...”
Michel Silvestre, em seu texto “Amanhã, A Psicanálise”, nos lembra que há uma diferença entre a queixa e o sofrimento. Maria, por exemplo, sofria mentalmente sem, no entanto, fazer qualquer queixa até que o casamento próximo trouxe consigo a questão do sexual e com ela um ponto de incerteza aí onde ela acreditava saber tudo.
O sintoma, sendo a primeira mensagem cifrada, pleno de sentido, traz em si o ciframento do gozo, que se apresenta como um ponto sem sentido.
Enquanto ciframento, o sintoma implica um endereçamento onde ele se decifra. Assim, de acordo com M. Silvestre, o que temos é: “de um lado, um sofrimento que o sujeito pode suportar com heroísmo estóico e sem dizer palavra. De outro, os portadores de sintomas que banham seu ambiente com eles, sem sofrerem eles mesmos absolutamente nada. Na medida em que os dois se conectam na mesma pessoa, isto pode produzir uma demanda de análise”.
Pode produzir, não quer dizer que produza, pois neste ponto em que o sintoma de Maria claudicou e um-a-mais de sofrimento foi acrescentado ela formulou uma queixa endereçada a alguém que ela supõe saber como restituir-lhe a satisfação perdida. Sim, porque havia uma satisfação no seu sofrimento. “Eu venho aqui, me disse Maria, para que você me ensine como é que vou fazer com a minha angústia”.
Lacan, em seu Seminário XI, nos diz que a única coisa que justifica a nossa intervenção como analista é este “mal-a-mais” que acontece quando o sintoma claudica e, se há uma retificação a ser feita na relação do sujeito com a satisfação, esta deverá ser a nível da pulsão.
No caso de Maria, que é uma profissional séria, que sempre foi a 1º aluna em todos os cursos que fez e que sempre resolveu todas as suas angústias através do saber que encontrava nos mestres e nos livros, o casamento próximo faz desvelar algo, que é ao mesmo tempo novo, estranho, mas também muito familiar.
A este ponto estranho-familiar que vem dizer da inconsistência do Outro que até então era tudo-saber, Lacan vai chamar de “objeto a”. É exatamente o aparecimento na cena, deste objeto que se apresenta aí onde o significante falta S(A/), que vemos surgir a angústia como sinal.
A angústia, portanto, não é um sintoma. Um sintoma é o que se produz, como significação do Outro, na tentativa de prover este objeto “a” de um envelope formal.
E Maria tenta “saber”, como forma de vestir este vazio com os significantes que o Outro possa produzir em reposta às suas queixas.
Mas o “saber” de Maria falhou. O sintoma constituído que lhe sustentava o mundo claudicou e, por isso, acrescentou-se um sofrimento a mais que propiciou a formulação de uma demanda: “eu não dou mais conta e procuro você porque acredito que você sabe...”
Maria tenta, neste momento, refazer a fratura que sofreu o envelope formal de seu sintoma, instalando no lugar um sujeito que ela supõe saber. É a tentativa de refazer, pela via do amor, as identificações que até então mantiveram ao abrigo este último reduto significante do sujeito, a pulsão, antes que ele caia no sem respostas, este lugar que foi matemizado por Lacan com o S (A/). Ao restabelecer, no amor de transferência, esta fratura instalando aí o analista como sintoma, o sujeito restabelece a crença de que o desejo do Outro é equivalente a sua Demanda. Talvez por isso é que Lacan afirma no texto “A Subversão do Sujeito…” que o neurótico confunde o objeto de desejo do Outro com a demanda, fazendo um curto-circuito da fantasia à Pulsão.
Este é o momento em que uma escolha se impõe àquele a quem é dirigida esta demanda. A escolha é forçada, sem dúvidas, mas a possibilidade está colocada, e se apresenta em função da radicalidade da distinção entre a queixa e o sofrimento: “tratar a queixa, ou colocar em causa o sofrimento”.
Caso se faça a opção por tratar a queixa, oferecendo respostas ou até mesmo modelos de conduta, a suposição de saber estará sendo investida e, assim, cada traço oferecido servirá apensas para recobrir a causa, na esperança da constituição de um eu fortalecido que venha “dar conta” do sofrimento.
O recurso da topologia do Grafo do Desejo e das superfícies vai nos auxiliar nesta discussão:
Posso representar a situação descrita acima, no Grafo do Desejo, pelo andar inferior
Onde a busca da significação de um Outro para restabelecer a satisfação perdida produzirá imagens que, sendo propícias à identificação, vai fortalecer um “eu” (moi) que vai poder suportar as significações já pré-estabelecidas.
A Banda Circular, com suas 2 bordas, superposta ao circuito descrito no Grafo do Deseno, vai nos dizer da presença de dois sujeitos em cena. Dois sujeitos barrados e desejantes de sentido, na esperança de que possa ser excluída a questão que traz o “sem sentido” que habita o seio de toda significação. Ao mesmo tempo, aponta para a impossibilidade de se intervir pois, o que vemos são dois caminhos que são percorridos sem que haja qualquer mudança de posição, ou seja, a cada volta retorna-se ao mesmo lugar.
A outra possibilidade, a única para que uma análise possa acontecer, é a de se sustentar este lugar de endereçamento da demanda como vazio. Esta é a decisão que implica numa certa “renúncia de gozo”. Isto só se dá no momento que fazemos operar o Desejo do Analista. Este desejo pode ser definido assim: dizer não à demanda para que se possa saber um pouco mais do desejo em questão, lembrando que o sujeito em questão numa análise é o analisante. Em outras palavras, para que se possa saber um pouco mais do que são as primeiras relações do sujeito com seus objetos.
É verdade que para operacionalizar este desejo é fundamental que o analista tenha caminhado, em sua análise pessoal até o ponto em que encontra a falta do significante no Outro. Até que se possa saber de uma certa opacidade subjetiva que permanece incrustada no Outro como restos da passagem da necessidade pelos desfiladeiros do significante. Saber este único a operar como verdade.
Utilizando então a topologia do Grafo do Desejo, localizo esta passagem como sendo a do andar inferior para o andar superior:
A demanda endereçada ao lugar Outro se depara com este ponto de opacidade subjetiva que vai dizer da “presença primitiva do desejo do Outro como opaca, como obscura”. Isto deixa o sujeito sem recursos, desamparado (Hiflos). “Se está aí o fundamento disto que em análise foi explorado, experimentado, situado como a experiência traumática, é também onde se situa o horizonte do ser para o sujeito. É neste intervalo, nesta brecha de entre dois significantes que se coloca a experiência do desejo...”! (Lacan, S. VI)
A entrada em jogo do desejo do analista, fazendo passar do andar inferior para o andar superior, modifica totalmente a estrutura que, no andar inferior está representada pela Banda Circular. No entanto, neste ponto de opacidade subjetiva no Outro, uma meia torção vai ocorrer, transformando a Banda Circular em uma Banda de Moebius, confirmando, com sua borda única e seu lado único, que na análise só há um sujeito em questão: o analisante.
Esta é a retificação que coloca a questão da existência do sujeito a partir do esvaziamento dos significantes da demanda do Outro. Em outras palavras, é quando o envelope formal do sintoma não mais faz frente ao desamparo (Hiflosigkeit) que o sujeito encontra a dor de existir.
Para que esta experiência possa ser levada a cabo é fundamental um silêncio. Um silêncio que é muito mais que um simples calar-se. É o silêncio da falta de palavras que coloca o sujeito num lugar de onde ele não tem outra saída senão entrar e construir algo.
Verificamos no matema da transferência:
S ——————————> Sq
_____________________
S ( S1 S2 S3 .................Sn )
que quando um sujeito busca um significante que poderia representá-lo ele, na verdade, vai se deparar com uma falta o que o leva a buscar um objeto que acredita apaziguar seu desejo. Ele vai, então, tentar se articular com esse objeto de alguma maneira. E ele o faz a partir dos restos perceptivos que o constituíram num primeiro momento. São as percepções de sua primeira experiência de satisfação e que nunca sofreram tradução de traços de percepção para traços de memória. Alguns destes traços ficam como restos e são estes restos que colocam para o sujeito a pergunta: Que queres? É a partir destes restos que o sujeito vai construir sua fantasia fundamental.
Lacan, em seu Seminário XI, nos diz: “Não nos interessa explicar porque sua filha é muda, do que se trata é fazê-la falar !” Ora, a fantasia é muda. Construída a partir de dois elementos estranhos entre si: $ (Simbólico) e “a” (Real), e se manifesta no Imaginário, pois esta fantasia nada mais é do que a colocação em cena dos significantes do sujeito.
É, pois, fundamental, que se faça falar o sintoma.
Para isto é preciso que o analista se cale como fez Freud diante de suas histéricas. Pois ao “calar-se” coloca aí uma pergunta a mais e cria a possibilidade para que, ao fim do tratamento, a experiência da fantasia fundamental se torne a Pulsão.
BIBLIOGRAFIA:
- Lacan, J. – Écrits. Édition du Seuiol, Paris, 1996;
- Lacan, J. – L’Etourdit in Scilicet nº 4, Éditions du Seuil, Paris, 1973;
- Lacan, J. – Le Séminaire VI – Le désir et son Interpretation. Inédito,
- Lacan, J. – Lê Séminaire XI – Les Quatre Concepts Fondamentaux de lª Psychanalyse. Éditions du Seuil, Paris, 1973;
- Leguil, F. – A Entrada em Análise e sua Articulação com a Saída. Fórum Iniciativa Escola, Bahia, 1993;
- Silvestre, M. – Demain, La Psychanalyse. Narvarin Éditeur, Paris, 1987.
Celso,você poderia falar um pouco mais acerca de " Ao restabelecer, no amor de transferência, esta fratura instalando aí o analista como sintoma, o sujeito restabelece a crença de que o desejo do Outro é equivalente a sua Demanda." No mais você foi muito claro quando nos ensinou os passos da Banda Larga( dois sujeitos em cena) à Banda de Moebius ( apenas o analisante); os traços de percepções que não se traduziram em para traços de memória, etc e tal. aprendi muito com esse texto/aula. Obrigada
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