“A intolerância sempre existiu, mas aumentou muito. Estamos vivendo reedição às avessas das famosas Cruzadas. Os cristãos saíram da Europa para atacar os muçulmanos e, hoje, o movimento é contrário. Acredito que as razões mudaram, apesar de os efeitos serem semelhantes. Estamos sofrendo mudança na nossa cultura, desde meados do século passado de forma acelerada. Há coisas boas e outras não. A ciência se desenvolveu de forma radical e trouxe consequências. Temos acesso às informações de forma instantânea. Um dos grandes progressos foi a pílula anticoncepcional, que trouxe como consequência a liberação da mulher do vínculo do casamento. Ela não precisaria ter um homem que a sustentasse e escolheria quando, onde e com quem engravidar. Logo em seguida, a ciência ofereceu à mulher a possibilidade de dispensar o parceiro para engravidar. Isso desfez, de alguma maneira, algo que existia desde a Renascença, até meados do século passado, que era a unidade do casamento porque era nessa célula que reinava o que a psicanálise chama de em nome do pai: a lei. A pessoa nascia em um ambiente em que as coisas estavam determinadas: homem se casa com mulher, cresce, trabalha, produz dinheiro. Na medida que a mulher foi se deslocando, criou-se uma possibilidade de novas investidas da própria ciência. Zygmunt Bauman, sociólogo polonês morto recentemente, coloca no livro A modernidade líquida, de maneira bem clara, como nossos limites foram se dissolvendo e dá exemplo da mudança da sociedade hardware para software, em que as empresas estão cada vez mais líquidas. Antes, éramos um grupo, hoje, estamos no reinado do 1 e esse 1, para se proteger, está cada vez mais avesso às diferenças. Não as suportando mais, ele tenta agredi-la ou se agrega aos que têm aversão a determinado estímulo. A liberdade de escolha para os homossexuais é agressão para os homofóbicos. Essa liquefação diz que está cada vez mais exigindo de cada um a responsabilização de seus atos. Há insuportabilidade da diferença em função de toda essa evolução que vem, o que chamamos de declínio da função paterna, em que a lei perde os seus limites. Quanto menos você sabe dos seus limites, mais frágil se coloca para suportar a diferença e, paradoxalmente, a falta de limites é que propicia mais liberdade. Hoje, não se tem mais respeito ao outro, e isso é consequência séria da falta de limites, por causa da sociedade software. Se não está bom, não tolero essa frustração, eu mudo. As diferenças estão insuportáveis. Não suportamos no outro o que não conseguimos consentir na gente.”
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