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domingo, 31 de maio de 2020

Sobre os efeitos da feminização no sujeito masculino

Vamos abordar, nesse ponto, as diversas vicissitudes que envolvem o encontro do sujeito masculino com o Outro sexo. Eric Laurent nos lembra que as mulheres rogam aos homens de lhes pouparem suas elucubrações sobre o Outro sexo por preferirem, elas mesmas, falarem disso. Assim fazem por considerarem-se um segundo sexo e não o Outro sexo. Essa posição nos leva a uma conclusão que poderia ser assim formulada: “a mulher é o porvir do homem” ou ainda como “o Um é o Outro”(1). 
Se há uma contribuição da psicanálise neste ponto, esta bem poderia se resumir em: o homem e a mulher, na verdade, estão de um mesmo lado pelo fato de terem em comum uma só espécie de gozo, o gozo fálico. Esta definição os coloca separados do Outro Gozo. A diferença, portanto, ficaria por conta de como cada um acessa este Outro gozo. Diferença esta que vai reparti-los, inexoravelmente, em duas espécie(2) que se definem no gênero.
Para corroborar com nosso desenvolvimento, vamos relembrar-lhes a posição de Freud, que tantas dificuldades provocou entre seus alunos, nas mulheres principalmente, quando sublinha que a única maneira de se representar o sexo é o simulacro fálico. Talvez esta tenha sido a forma pela qual ele pretendeu desenhar um caminho na tentativa de estabelecer uma resposta à inquietante questão de “o que deseja uma mulher?”
 Este pequeno preâmbulo ao texto vai nos balizar introduzindo a questão fundamental que aponta para uma constante na elucidação das lógicas da vida amorosa no homem, mesmo que seja possível constatar a presença de um material bem diversificado. 
Como se disse antes, o estatuto do gozo fálico se ordena, a partir de uma subtração do gozo sexual promovida pelo retorno da  Demanda sobre o gozo, estabelecendo, definitivamente, um limite e abrindo um espaço onde um objeto poderá se constituir em causa de desejo.
Este movimento que se sustenta no fato de que “o pai” se veicula através da demanda do Outro, (a mãe, frequentemente) é suficiente para estabelecer um certo vínculo com o que J-A Miller define como “o saber suposto das mulheres”. Suposição de saber  que se impõe a partir do “segredo estrutural da palavra, entanto que há alguma coisa que não se pode dizer, do lado das mulheres”(3).
Este “segredo estrutural” vai determinar que algo sempre se apresente como faltoso no encontro do sujeito com o Outro sexo. É neste lugar de falta, que o discurso vai se apresentar como possibilidade, determinando um modo de relação que se traduzirá no sintoma. 
Se partirmos do fato de que um sintoma se apresenta sempre com duas faces, sendo uma variável e congruente à história do sujeito e uma outra constante, determinada pelo gozo e denotada pelos semblantes que vamos buscar no outro que varia. A conjunção destas duas faces: variável e o gozo, levou Lacan a dizer da “VARITÉ” do sintoma(4).
Se tomarmos a vertente da variável, vamos poder dizer que os sintomas podem ser qualificados de antigos, modernos ou, até mesmo, contemporâneos.
Ora, o que vai definir o contemporâneo, conforme tese defendida por J-A. Miller e E. Laurent é a inexistência do Outro, matemizada como I(A) > a.
Talvez seja importante fazermos uma diferença entre o moderno e o contemporâneo. No moderno, embora exista uma certa desmaterialização das representações, como muito bem ilustra a chamada “arte moderna”, vamos encontrar um “otimismo de forma”, ou uma busca da ótima forma, da forma ideal. Este é o efeito do sujeito moderno, criado por Descartes. Um sujeito esvaziado de seus conteúdos, mas entretanto, fundado em seu princípio de limitação formal: o cogito: “Penso, logo existo.”
No contemporâneo, por outro lado, o que se apresenta é a promoção do objeto “a” da álgebra lacaniana que traz, consequentemente, uma abertura ao disforme, “àquilo que transborda”, ao parcial e ao não todo.
Se fizermos, a partir do que acaba de ser exposto, um amplo recorte na história das idéias, poderemos pensar que, do Cogito cartesiano ao universal hegeliano, o que se viu foi o desenvolvimento do princípio de limitação(5) que Lacan deposita no lado masculino da sexuação xφx   xΦx. 
Se nossa hipótese está correta, poderemos pensar que o sujeito moderno, o sujeito da ótima forma, será correlativo do sujeito masculino. 
Uma questão se coloca a partir deste desenvolvimento: haveriam efeitos sintomáticos ao masculino provocados pela situação contemporânea? Como seriam afetados as modalidades de gozo a partir da promoção do objeto a na contemporaneidade?
Para começarmos a elucidar estas questões, vamos partir da afirmação freudiana de que, tanto homens, quanto mulheres, tem, no simulacro fálico a única forma de se representar o sexo. Esta afirmação, podemos articulá-la às idéias de Laurent quando concebe o modo de gozo masculino, basicamente, como articulações sintomáticas feitas de um encadeamento do gozo fálico com os ideais encontrados no Outro(6). J-A. Miller, ao propor o matema do fantasia masculina $<>Φ(a) esclarece como o desejo masculino se sustenta de semblantes falicizados”(7). Podemos ler este matema dizendo que o sujeito promove a oferta de objetos fálicos que possam apaziguar as demandas produzidas pelo encontro com o Outro sexo. Uma pequena modificação ao matema, a partir da introdução do Outro ficaria assim formulada: $ <> Φ(a) A. Ali onde um desejo pode surgir no buraco do simbólico a oferta de um substituto (um carro ou, até mesmo, uma outra mulher) que inaugura uma série infinita, sem ponto de conclusão estará sempre pronta para tampa-lo
No entanto, a operação do discurso analítico sobre este sujeito, fazendo incidir os efeitos do objeto a no masculino, produz o que Lacan denomina de “efeito feminizante” em seu seminário XVII. “Como ser falante (o que se abriga sob o princípio macho) é intimado a justificar sua essência (...) e, muito precisamente - e exclusivamente - pelo afeto que ele experimenta por este efeito feminizante que é o a.”(8)
Esta não foi a primeira vez que Lacan se referiu à feminização ao longo de seu ensino. Em “Uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, ele trabalha o “empuxo à mulher” como uma saída possível ao psicótico. Sem a mediação do discurso, sem a mediação do falo, o sujeito psicótico se atém à relação especular (a-a’), esclarecendo que neste tipo de feminização o que temos é um deslizamento maciço pelo eixo da identificação narcísica que estabelece uma inércia própria do gozo que então era classificado sob a égide do registro imaginário: “na falta de poder ser o falo que falta à mãe, resta ao sujeito ser a mulher que falta aos homens”.(9) É pois no lugar da significação fálica impossível que este processo de feminização vai adquirir o valor de uma significação assentida pelo sujeito ali, onde até então reinava o que é da ordem do inominado. “Neste sentido, a feminização é uma consequência, ou talvez melhor dizendo, uma resposta à elisão do Falo”. Ou na palavra do poeta: “Como seria belo ser uma mulher…”  
Uma outra ocasião em que este tema é apresentado, sem contudo ser totalmente explicitado, foi no Seminário sobre “A carta roubada”. Nesta ocasião, a tendência à feminização se sustentou no fato do sujeito pretender estar em uma posição que, segundo o próprio Lacan, “ninguém estaria à altura de assumí-la realmente, porque ela é imaginária, aquela do mestre absoluto”.(10) É pois para se tornar mestre absoluto que o ministro priva a mulher daquilo que, segundo Lacan, seria seu signo (fundado fora da lei), ao mesmo tempo que ele passa a estar determinado por esse signo até revestir-se dos atributos de mulher: a sombra, a inércia, o fetiche.(11)
Este foi o percurso que conseguimos depreender na obra de Lacan, com respeito aos efeitos da feminização sobre o sujeito masculino: 1 - revestir-se dos atributos femininos na tentativa de possuir os signo da mulher; 2 - ser a mulher que falta aos homens como resposta à elisão do falo e, 3 - tentar suprir, pelo objeto a, a privação da mulher enquanto falta de um significante. 

Retomando o tema da contemporaneidade, verificamos que a época atual esta caracterizada por uma ascensão do objeto a em detrimento do ideal. Seguindo a tese do efeito feminizante do objeto a, podemos dizer que há, no momento atual, uma ascensão da feminização, ou seja, o sujeito masculino esta afetado em seu princípio  de limitação pela parcialização do objeto a, pelo não todo feminino(12).
Constatamos, a partir disto, uma transformação do mundo no qual vivemos, definido como “um mundo de crenças justaposta”,(13) levando o homem moderno a fixar-se, cada vez mais a seus atributos fálicos. Este movimento, que tem levado a um aumento do celibato nos dias atuais, longe de ser uma solução, só faz demonstrar que o “ter é para ele um peso, um incomodo” e percebido apenas como mais uma coisa a perder. Por isso, podemos dizer com Miller, que o homem que Lacan descreve ao longo de seus Seminários e Escritos, é medroso, estorvado pelo falo(14). O uso constante de semblantes se faz necessário para proteger seu pequeno ter, produzindo uma civilização que se rege pela regra do “para todos a mesma coisa” denunciando um fracasso dos ideais em organizarem o estilo de vida do sujeito(15).
Fator preponderante neste processo é o fracasso do pai em levar a bom termo sua função de converter o buraco que organiza a estrutura da família edípica em lugar misterioso da causa de seu desejo. Esta nova versão da metáfora paterna nos explicita a inserção dos velhos sintomas em novos contextos, denotando que a forma atual de se viver as vicissitudes do desejo promoveu um verdadeiro remanejamento do que podemos chamar de clínica do falo e do gozo fálico(16).
Quando um homem deposita no automóvel o valor de “falsa mulher”, ele, necessariamente, irá esbarrar com um sintoma; mesmo que este seja uma outra mulher. Na verdade, o homem moderno pode fazer do automóvel um falo. Porém, o automóvel só tem relação com o falo na medida em que ele aí se instala como o que vai estorvar, impedir o homem de se relacionar com o que pode ser denominado fiador sexual: uma mulher colocada como causa de desejo. No entanto, isto que o homem tanto almeja só advém quando este último se depara com um desejo que não seja anônimo. Um desejo que não esteja sob a égide do “para todos a mesma coisa”. Um desejo que carregue consigo a marca singular, quase sempre irreconhecível do nome e que torna o ser sexuado masculino portador da lei que se articula com o desejo. A possibilidade de utilizar esta marca como um ponto de báscula na globalização proposta pela contemporaneidade é o que desloca o pai das funções de “guardião do sentido, do sentido sexual, do sentido fálico”, para “o pai do qual é preciso se servir”(17), indo além.
Esta é a possibilidade que nos oferece este resíduo que promove o fato irredutível da transmissão fálica no humano que propicia a oportunidade de poder se dizer o “não” que vai impedir que uma adaptação ao mundo venha escamotear o que há para se saber do insuportável. 
Para além das identificações, o que resta é uma falta que, convertida em causa de desejo pela incidência da lei, vai poder oferecer ao homem a chance de ver seu desejo redirecionado, abandonando o anonimato e a indiferença inerente à relação deste com os gadgets.

NOTAS

1 - Laurent, E., “Les deux sexes et l’Autre jouissance”, in Revue de Pyschanalyse “La Cause freudienne”. Nº 24. ECF, Paris, 1993. Pag. 3.
2 - “C’est là l’obstacle à ce que la dimension culturelle du gender vienne totalment recouvrir la sexuation” Laurent, E., Op. Cit. 
3 - Miller, J-A. “Des semblants dans la relation entre les sexes”, Revue de Psychanalyse La Cause freudienne” nº 36 ECF Paris, 1997, pag. 13.
4 - Lacan, J., “Vers un signifiant nouveau”, in Ornicar? 
5 - Laurent, E. Op. Cit.
6 - Laurent, E., Op. Cit
7 - Miller, J-A. “Des semblants dans la relation entre les sexes”, in Revue de Psychanalyse, Nº36, ECF, Paris. Pag. 14.
8 - Lacan, J. “O avesso da psicanálise”
9 - Lacan, J. “Questions preliminaire a tout traitement possible de la psychose” in Écrits, ed. Du Seuil, Paris,  Pag. 560.
10 - Lacan, J., “La lettre volée” In Écrits, Ed. Du Seuil, Paris, 1966, pag. 33.
11 - Idem, pag. 31.
12 - Miller & Laurent, “L’Autre qui n’existe pas...” lição de 21/05/97.
13 - Laurent, E., “Les nouveau symptômes et les autres” in Lettre Mensuelle, nº162, sept-oct. 1997, pag. 37
14 - Miller, J-A., “Des Semblants dans la relation entre les sexes”. Op. Cit.  Pag. 11.
15 - Laurent, E. Op,. Cit. Pag. 38.
16 - Laurent, E., Op, Cit. Pag. 39.
17- Idem, pag. 40.

domingo, 24 de maio de 2020

Luto e Melancolia no circuito da Pulsão

Proponho que comecemos por uma citação do texto freudiano, mais exatamente de “Os três ensaios...”, que vou me permitir transcrever aqui, com o intuito de pavimentar o caminho de minha exposição: “No tempo, quando os primórdios da satisfação sexual estavam ligados à amamentação, a pulsão sexual tinha um objeto fora do próprio corpo do infante, na forma do seio de sua mãe. É somente mais tarde que a pulsão perde este objeto, justamente no momento, talvez, em que a criança é capaz de formar uma idéia total (Gesamtvorstellung) da pessoa a quem pertence o órgão que lhe está dando satisfação. Como regra, a pulsão sexual se torna autoerótica (...). Há, pois, boas razões do porque uma criança sugando o seio de sua mãe tornou-se o protótipo de toda relação de amor. Encontrar um objeto é, de fato, reencontrá-lo.”(1)
Esta passagem, em Freud, nos diz claramente da constituição do campo do Outro e da produção de um resto como consequência da operação de separação, tão bem desenvolvida por Lacan em seu “Seminário XI” e “Posição do Inconsciente”. Mais do que isso, e diretamente ligado ao tema de nosso trabalho, nesta passagem fica posto que a inauguração da atividade pulsional acontece no instante em que uma perda ocorre. Em outras palavras a busca do objeto perdido, que inaugura a atividade do inconsciente nada mais é do que um trabalho de luto. O trabalho do inconsciente é trabalho de luto e a atividade pulsional vem aí testemunhar disto, com sua pulsação em torno de um objeto que, sendo “uma cor-de-vazio, suspenso na luz de uma brecha”(2), não para de não se apresentar ali onde um reencontro é esperado. “O luto é a saudade de algo perdido”.(3) Caso encontre um obstáculo no caminho de sua elaboração se torna melancólico e testemunha de “uma perda na vida pulsional ... (nos dizendo que) não estaríamos muito enganados, portanto, de começar da idéia que a melancolia consiste no luto sobre a perda de libido”.(4) 
Luto, melancolia e pulsão estão, portanto, associados deste os primórdios freudianos. Para reforçar esta idéia, retomo uma outra passagem do texto onde ele afirma que enquanto “no luto é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia é o eu ele mesmo (...). Há um suplantar das pulsões que compelem cada coisa viva a agarrar-se à vida”(5).
Seguindo esta trilha, Freud em seu texto “O Eu e o Isso” vai explicar a “dolorosa desordem da melancolia supondo que um objeto que foi perdido reinstalou-se dentro do Eu - quer dizer - um investimento objetal foi substituído por uma identificação”(6).
Mais à frente, no capítulo sobre “As duas classes de pulsões”, ele vai esclarecer que “ambas as pulsões (vida e morte) estariam ativas em cada partícula da substância viva, apesar de estarem em proporções desiguais…”(7). Estas duas pulsões se encontrariam em um estado permanente de “Mischung” - fusão, embaralhamento, mistura. Em situações especiais, elas sofreriam uma “Entmischung” - defusão, desintricamento.
  
Escolho a clínica como suporte de meu trabalho, mesmo porque ela é a razão principal  para escrever esse texto. Da clínica escolho um caso onde um sujeito apresentou um quadro de depressão intensa como reação ao falecimento de um familiar. Uma depressão, associada a uma forte angústia, já estava presente como motivos de sua demanda de análise. Digo que já em Freud encontro que a neurose obsessiva é propensa a se associar a um quadro sintomático de depressão: “entendemos que a defusão pulsional e uma acentuada emergência da pulsão de morte chamam para uma consideração particular entre os efeitos de algumas neuroses severas - p.ex. neurose obsessiva”(8). É exatamente deste ponto que vou partir.
No texto “Luto e Melancolia” está escrito que “das três precondições da melancolia - perda do objeto, ambivalência e regressão da libido ao eu - os primeiros dois são também encontrados nas auto-censuras obsessivas que surgem após a ocorrência de uma morte.”(9) A partir desta associação das idéias obsessivas com a depressão(10) podemos observar que os sujeitos que escolheram este tipo de estratégia na sua relação ao Outro são especialmente susceptíveis ao desenvolvimento de sintomas depressivos. Mas chamo-lhes a atenção que para se constituir um quadro de melancolia é fundamental a terceira precondição: “a regressão da libido ao eu”.
Trago-lhes alguns fragmentos clínicos que comentarei para mostrar esta associação da neurose obsessiva e depressão, assim como as dificuldades clínicas decorrentes do que Freud denomina “defusão” (Entmischung) da pulsão, que vai deixar a céu aberto o silêncio da pulsão de morte.
“Sempre que eu ia comer uma fruta que escolhia no pomar de minha casa, mesmo que encontrasse apenas uma, oferecia primeiro à minha mãe, torcendo para ela não aceitar.” Esta pequena lembrança da infância de uma paciente veio reforçar a hipótese do diagnóstico de neurose obsessiva, em um sujeito do sexo feminino, filha caçula de uma enorme prole e que passou sua vida sob a égide do desejo de morte explicitado e repetido várias vezes pelas seguintes palavras de sua mãe: “eu não queria que você nascesse, mas o médico me disse que você poderia ser a minha salvação”. Desde então, ela, que disse ter sido “uma criança dominada por palavras”, vem desenvolvendo tentativas de dominar sua angústia pelo viés do saber: primeira aluna da escola, filha e irmã exemplar, está sempre atenta à demanda do outro na expectativa de poder antecipar todas as necessidades dos que a cercam, ao mesmo tempo em que  está sempre adiando seus atos, na esperança de apagar a chama do desejo. 
Desde Freud tem sido colocado e trabalhado pelos psicanalistas a relação da neurose obsessiva e a dialética da demanda anal (reter as fezes - dar as fezes), na medida em que ela funda o desejo de expulsar as fezes. A incidência disto é consequente à demanda de satisfação do Outro que, na ocasião se estrutura como a expectativa do educador materno. 
Do que se trata então é de uma disciplina da necessidade que produz a sexualização no movimento de retorno à necessidade - o excremento adquire um caráter de presente - em contraposição à demanda oral onde a libido sexual é bem, em efeito, um excesso que torna vã toda satisfação da necessidade aí, onde ela se coloca. É a recusa de satisfação da necessidade - da fome - que vai preservar a função do desejo, muito bem explicitado nos casos de anorexia.
Este retorno à necessidade, movimento determinado pela fixação libidinal, por uma fixação de gozo, instala a presença real do terceiro (objeto fezes) e com isto estabelece o campo da dialética anal como sendo o verdadeiro campo da oblatividade. Cumpre ressaltar que esta realização do objeto da fixação libidinal (ou, se quiserem, do gozo) “é especialmente colocada em evidência nas perversões, nos diz Miller, (onde) encontramos, podemos assim dizer, a céu aberto, uma memória do gozo que toma a forma de um mau encontro (dustuchia), ... um acontecimento de gozo inesquecível. É dentro desta visão que podemos construir uma antítese entre a inesquecível fixação de gozo e isso que é da ordem do recalque, onde o esquecimento vem recobrir o que teve lugar”(11).
Na neurose obsessiva, no entanto, esta fixação libidinal vai fazer emergir não o objeto imaginário, como nas perversões, mas sim a função do falo Φ (Phi), sob a forma degradada de ϕ  ao nível da consciência. Fazer a função fálica consciente é uma “possibilidade de cumplicidade do sujeito com ele mesmo (conscius) ... portanto também de uma cumplicidade com o Outro que observa”(12).
Retomando o termo da oblatividade, tão presente na vida do obsessivo e em especial desta paciente, podemos afirmar, com Lacan, que “o termo mesmo de oblatividade é uma fantasia do obsessivo. Tudo para o outro (13), ... e é bem isso que ele faz pois, estando na vertigem perpétua da destruição do outro, ele não faz aí jamais o bastante para que o outro se mantenha na existência”(14). É assim que esta paciente vai dizer das raivas que sentia de sua mãe: “Em alguns pontos não consigo perdoar mamãe.” Para, em seguida tentar desfazer essa raiva: “Mas não tem sentido estas coisas me provocarem sofrimentos...” 
A fantasia do obsessivo, Lacan vai colocá-lo no seguinte matema: 
                             A/ <> φ (a, a’, a”, a’” ...)
Diante da demanda de um Outro barrado, portanto em falta, o sujeito se oferece enquanto falo imaginário, servo deste senhor, propondo constituir-se como Outro do Outro, na tentativa de suprir-lhe a demanda infinita pela via do deslizamento metonímico de objetos de desejo. Objetos estes instalados numa série de “equivalência permanente, ... tomando o lugar do ϕ como redução de Φ ou até mesmo de degradação deste significante”(15). Desta forma procura colocar ao abrigo seu próprio desejo, apagando a demanda do Outro. E o faz deslocando para si próprio a pergunta que faria ao Outro: onde falhei? Temos aí o que se chama clinicamente o sintoma da dúvida: “Será que se tivessem me dado a chance de escolher se eu queria ou não nascer eu teria escolhido nascer?”.
      Ao tamponar assim, no Outro, a divisão entre o saber e o gozo, ela pode assumir essa solução do desejo que é a erudição. Talvez por isso seja possível aproximar do dialeto da neurose obsessiva a estrutura do discurso da Universidade:
                                               S   ----->    a
                                               S1     //    $
Em outras palavras podemos dizer que o obsessivo vai tentar fazer do saber um remédio ao mal-estar que se apresenta no real do objeto como mais-de-gozar: “Por que a angústia? Racionalmente eu entendo, mas emocionalmente ...”, disse a paciente outro dia, diante de toda impotência  do saber adquirido, não só nos livros como até mesmo em seu percurso analítico, para apaziguar a angústia que a assalta constantemente. Na verdade, contrariamente a todo o movimento que ela faz na direção de obter este “saber”, o sonho do obsessivo é “nada a saber” do objeto, ou seja, cobrir o referente pelo significante, como nos diz C. Soler: “o que implica uma posição em relação ao Outro, ao desejo do Outro, que é uma posição de anulação”(16). Em outras palavras, ele está disposto a gozar do saber à condição de que não seja o saber sobre o gozo. “Será que todas as minhas neuroses são geradas pelo relacionamento com minha mãe?” E ela continua:  “Pelo nosso trabalho penso que sim. Pelo meu lado acho que é patológico mesmo, é uma carga genética que eu tenho que carregar.” Com esta declaração, a paciente deixa claro o lugar que coloca o seu saber: oscilando entre um ponto e outro, ela passa o tempo repetindo uma ação sempre incompleta na esperança de poder evitar isso que fará da ação mesma um ato: o dizer do ato. 
Esta fragilidade do saber em cercear a irrupção do vazio do entre-dois significantes, assim como a ineficácia do adiamento, da insistência da repetição (automaton), como forma de evitar o encontro (tiquê), só nos dizem da suscetibilidade que apresenta a estrutura obsessiva à depressão. Neste ponto, onde falha sua estratégia, “pode se introduzir isso que dissolveria toda sua fantasmagoria”(17).
Por isso o obsessivo faz deslocar sua ação para o eixo do simbólico na tentativa de abdicar de seu desejo colocado alhures, a partir mesmo da transferência que faz de seu gozo a um outro imaginário a quem supõe gozar: “Olha para a minha sobrinha, já teve o segundo filho e está lá ... terminando a residência, dando plantão. Tem força para tudo, não tem dúvidas... Esta sobrinha era a querida de mamãe ... Acho a vida dela muito boa. Apesar das dificuldades.”
No final do ano passado um acontecimento veio acentuar ainda mais a angústia e a depressão que a paciente demonstrava ao longo de todo o seu percurso analítico. Após um grande período de sofrimento, sua mãe faleceu.
Em consequência, o desenvolvimento do seu processo foi bruscamente interrompido. Em lugar de se fazer um luto onde “o teste da realidade mostra que o objeto amado não mais existe demandando a que toda libido seja retirada da sua ligação a este objeto”(18), instalou-se uma oposição tão intensa que um afastamento da realidade aconteceu prolongando a existência psíquica do objeto perdido: “cada uma das memórias e expectativas nas quais a libido está ligada ao objeto foi trazida à tona e hiperinvestida”(19). (Este momento descrito acima, foi acompanhado com muita atenção, inclusive com indicação de um colega psiquiatra para acompanhá-la com medicação pois, fenomelogicamente, o quadro apresentado muito se aproximou de uma melancolia.) 
Normalmente, quando o processo de luto está completo, o “eu, nos diz Freud, se torna livre e desinibido novamente”(20). Com esta paciente, no entanto, um outro caminho parece ter sido tomado, a partir mesmo do prolongamento deste luto. Já vivendo os augúrios da estrutura obsessiva que não lhe  permite, como ela mesma disse, “vazios na agenda”, esta perda colocou em cheque todo o seu esforço para cercar através do racional, do saber, o que poderia haver de espaço entre dois significantes. Em outras palavras, o último recurso que encontra o sujeito, no momento de fading é agarrar-se ao objeto na estrutura própria da fantasia fundamental - este objeto que vem aí como elemento de vida, como resposta a esta falta devido ao efeito mortificante do significante(21). No caso que lhes trago pode ser observado que “o objeto perdido reinstalou-se dentro do Eu - quer dizer - um investimento objetal foi substituto por uma identificação”(22). A paciente desenvolveu uma série de sintomas físicos semelhantes aos de sua mãe, chegando mesmo a produzir uma doença auto-imune: Artrite Reumatóide.  A morte que sempre esteve perto deste sujeito, como ela mesma tantas vezes já expressou, se concretizou na morte da mãe e este acontecimento “comportou-se como uma ferida aberta, drenando para si as energias do investimento ... de todas as direções e esvaziando o eu …”(23). Esta energia, esta libido, no entanto, não se presta a nenhum outro uso, mas sim a “estabelecer uma identificação do eu com o objeto abandonado, projetando a sombra do objeto sobre o eu, que pode ser, a partir daí julgado por uma agência especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado.”(24)  Uma outra forma de formalizarmos este ponto pode ser assim escrita:  
                                      S2 ——>  a
                                      S1      //    $  
Um sujeito barrado, portanto desejante e, como tal condenado à não relação sexual, pois ele aí ex-siste exatamente como resposta a uma falta instalada no mais íntimo do Outro. Este sujeito só se sustenta enquanto desejante se instala, neste lugar, um objeto ao mesmo tempo íntimo e estranho mas marcado pelo significante: o objeto ‘a’ causa de desejo. Ora, esta marca, este -ϕ é a própria presença da castração, que se mantém sob a barra. Este é o impasse do obsessivo, pois se ele cede ao desejo terá que se admitir como faltoso, por isso ele tenta uma operação de positivação da castração estabelecendo a transformação do -ϕ em ϕ fazendo com que cada objeto seja capaz de entrar na dialética da oblatividade sob a forma de significantes que, hipoteticamente, poderiam completar o Outro lhe anulando toda demanda. Assim, o matema poderá ser escrito:
$ <> ϕ  ——  A
onde um sujeito acredita que o que tem poderá servir completamente à demanda do Outro, de tal forma que ela será anulada e o Φ (significante do desejo) será para sempre abolido. Esta situação pode ser exemplificada por uma fala que freqüentemente escutamos em nossos consultórios: “Se eu fizesse um pouco mais...” “Se me esforçasse mais...” “Mais um pouco de paciência e eu vou conseguir, desta vez é pra valer…” O que se verifica é um saber que nunca vai “dar conta” do tudo para o outro
Neste ponto trago-lhes uma imagem.



Trata-se de um quadro do pintor italiano Domênico Fetti, que pertencia à coleção de Luís XIV e que se encontra no Louvre. O nome desta obra: “Melancolia”. Neste quadro o artista retrata um jovem debruçado sobre uma mesa de estudos, um dos braços sustentando sua cabeça que se apresenta como extremamente pesada e a outra, apoiando-se sobre um grande livro fechado. Ele segura um crânio para o qual olha fixamente, como que hipnotizado pelas órbitas vazias. Pelo chão, dando a impressão de terem sido abandonados pelo jovem estudioso, encontram-se livros abertos com páginas amassadas e um cachorro que observa o torso retorcido da estátua de um homem sem cabeça.
Dizia-lhes das dificuldades de um analista em fazer incidir sobre um sujeito que se coloca, mesmo que momentaneamente, não  em relação a um Outro, mas sim petrificado, congelado diante do objeto, do vazio destas órbitas onde o olhar desaparece por não poder ser, neste ponto onde o sujeito se esvai, o objeto ‘a’ como vida, como causa de desejo. Sabemos que o que confere ao objeto esta condição, descrita por Miller como um objeto de gozo vivo, é exatamente a marca do significante fálico que, propiciando uma volta a mais, faz deslizar a curva da satisfação pulsional(25). Como enfatizei no início deste texto, Freud já nos dizia que, na melancolia vamos encontrar uma defusão das pulsões, deixando a céu aberto o silêncio da pulsão de morte. A imagem do quadro de Domênico Fetti nos mostra este silêncio e a impotência do saber para deslocar o sujeito deste lugar. 
Resta-nos então uma pergunta: Como intervir para que este ponto de silêncio, este ponto de fixação possa ser deslocado e o objeto de gozo se transmutar em objeto de vida, objeto causa de desejo propiciando à pulsão fechar o seu circuito?                     
Após um longo período onde o silêncio imperou - aqui me refiro não ao silêncio da falta de palavras, pois na verdade ela falava muito, se queixando todo o tempo, refiro-me ao silêncio da pulsão de morte que, pela fixação de gozo, não permite um movimento pulsional - a paciente relatou situações que apontavam para uma saída do seu estado depressivo. Foi exatamente num destes momentos que um pensamento atravessou seu caminho fazendo escurecer o que havia sido precariamente iluminado. “Estava muito bem até que encontrei meu irmão que está deprimido de novo. Isto me deixou angustiada. Acho que vou ficar deprimida de novo! Isto é uma questão de família: meu pai, minha mãe, minha irmã ... não tem saída para mim!” “É hereditário!” Apenas lhe disse: “porque continuar a linhagem?”
No outro dia, quando retornou, disse que esta pergunta abriu-lhe um novo caminho. Ela nunca havia pensando que poderia ter uma outra possibilidade senão seguir o que lhe mandavam, ou seja, a de se manter colada às insígnias do Outro. A questão colocada pelo analista chegou-lhe como um enigma e provocando um corte, promoveu uma separação entre S1 e S2, desfazendo o sentido que ela sustentava como verdade até então. Esta intervenção abriu espaço, desmanchando a fantasia e, conseqüentemente, vetorizando o objeto ‘a’, causa de desejo: 
                                                                      a  ——->  $
                                                                      S2      //      S1
A interpretação que apontou a impossibilidade dela continuar como a que pode salvar sua mãe, só pôde ser eficaz porque aconteceu no contexto do discurso analítico. Em outras palavras, esta frase se apresentou como uma “interpretação Outra”, outra diferente da interpretação do sentido”(26) ao qual este sujeito estava submetido. “A outra interpretação não se reduz ao silêncio isso porque eu a direi habitada de silêncio, nos diz C. Soler, pois ela não diz nada também: ela destaca isso que Lacan chamou, a muito tempo, de significante assemântico, fora da cadeia, vazio de significação, mas pleno de gozo que ele fixa em função de contingências.” (...) “Este corte aí nada faz compreender, reduz a significação, eu poderei dizer que ela castra, não ao proveito do sentido, mas do destacamento dos signos onde o sujeito está assujeitado”(27).
   
Notas:

1 - Freud, S., “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” in S.E. Vol. VII, The Hogarth Press. London, 1973, pag. 222.
2 - Lacan, J. - “Du ‘Trieb’ de Freud ao Desejo do Analista”, in Écrits, Edition du Seuil, Paris. 1966. Pag. 851
3 - Freud, S., “Rascunho G - Melancolia” S.E. Vol. I, op. cit., pag. 200.
4 - Ibidem
5 - Idem, - “Mournig and Melancholia” S.E. Vol. XIV, The Hogarth Press, 1973, pag. 246
6 - Idem, - “O Eu e o Isso”, S.E. XIX, op. cit. pag. 28.
7 - Ibidem, pag. 40.
8 - Ibidem, pag. 42.
9 - Idem, pag. 258.
10 - “A perda de um objeto amoroso é uma excelente oportunidade para que a ambivalência das relações de amor se tornem efetivas e venham à luz. Onde há uma disposição para neurose obsessiva o conflito devido à ambivalência dá o molde patológico ao luto e o força a expressar-se na forma de auto-acusações produzindo, como efeito, tornar o que está de luto culpado pela perda do objeto, i.e. que ele desejava isto.” (Freud, S,.  op. cit., pag. 250)
11 - Miller, J. A., “Silet” curso do dia 29/03/95
12- Lacan, J., “Le Séminaire VIII - Le Transfert”, Ed. Du Seuil, Paris, 1991, pag. 298.
13 - Grifo meu.
14 - Lacan, J., “Le Séminaire VIII - Le Transfert”, op. cit. pag. 241   
15 - Ibidem, pag. 298  
16 - Soler, C., “As modalidades da transferência” in “Artigos Clínicos”, Ed. Fator, Salvador, 1991, pag. 18.
17 - Lacan, J., “Le Séminaire VIII”, op. Cit., pag. 305.
18 - Freud, S., “Mournig and Melancholia”. S.E. vol. XIV. The Hogarth Press. London, 1973. Pag. 244.
19 - Ibidem, pg. 245.
20 - Ibidem
21 - Miller, J. A., “Silet” Curso do dia 17/05/95.
22 - Freud, S., “The ego and The id”, S. E. Vol. XIV. Op. Cit. Pag. 28.
23 - Ibidem,  Pag. 253.
24 - Ibidem, Pag. 249.
25 - “La jouissance phalique est au joint du symbolique et du réel, hors de l’imaginaire, du corps, en tant que quelque chose que parasite les organes sexuels.” Lacan, J., - “Conference - Yale University, Law School Auditorium, 25/11/75, In Scilicet 6-7, Seuil, Paris, 1976.
26 - Soler, C. “Silences” in Revue de Psychanalyse - La Cause Freudienne nº 32, pag. 30
27 - Ibidem

segunda-feira, 18 de maio de 2020

S(A/) - Sobre a Angústia


Optei por dar a esse texto, que pretende falar da angústia, este título tão exíguo S(A/). Não conheço melhor forma de dizer do silêncio, este que se espera de um analista, e que poderá fazer operar um certo desejo na construção de uma passagem ali, onde o Outro falta. Uma construção possível ali onde a angustia(1) se apresenta como sinal do desamparo próprio ao sujeito humano, no seu nascimento. Paradoxalmente, este é o matema que desenha a estrutura do “falasser”. Esta estrutura que tem, como enlaçamento lógico, o silêncio, nos dizendo que o analista deverá, quando falar, falar a partir do silêncio, ou, como nos diz JAM: “guardar o silêncio totalmente, ao falar”(2). Este é o segredo da interpretação que deverá preservar o lugar do que não se diz, ou melhor ainda, do que não se pode dizer. A mais preciosa das interpretações é o desacordo do analista em ocupar o lugar que lhe demanda o analisante, não permitindo, ao sujeito, nutrir seu sintoma de sentido. Sentido este que se busca na esperança de ver apaziguado o sinal da angústia que aí se apresenta diante da falta no Outro. O analista, portanto, se colocará mais ao lado daquilo que se cala do que ao lado do que fala, no analisante. 
O S(A/) nos diz do que permanece do significante após a palavra ter sido eliminada. Esta é a consequência da intervenção de um analista que vai propiciar ao significante da falta no Outro assumir seu valor de letra, ou seja, o valor de significante escrito. A escritura, podemos dizer, é a única forma que o ser falante tem para subtrair-se aos artifícios do inconsciente. Enquanto preso à palavra, o sujeito não tem como sair das artimanhas que o inconsciente apresenta e que Freud definiu como sendo suas formações. Isto se explica pelo fato de que, uma letra, ao contrário do significante, tem uma identidade(3). Enquanto um significante só se apresenta a partir da diferença(4) e sempre chama um segundo significante, a letra se basta. Um bom exemplo encontramos no número matemático. O número é cifra e não tem efeitos secundários de significado. Um significante, por outro lado, está posto como aquele que pode representar um sujeito para um outro significante. Ao sujeito, enquanto sujeito do inconsciente, sujeito dividido, só resta permanecer nesta brecha do significante como sujeito a advir, num futuro anterior.
A letra, por outro lado, tem uma identidade. O que se pode traduzir do inconsciente por uma letra, o sintoma, tem dois valores: S1 e a. Estes dois valores nos dizem que o Outro é uma matriz de dupla entrada: a e o Um do significante. 
Sabemos, a partir dos textos de Lacan dos anos setenta, que é possível articular uma certa contabilidade ao gozo. Isto se apresenta sob uma forma bem simples se pensamos que o inconsciente está estruturado como uma linguagem e que, os significantes que constituem esta cadeia nada mais são do que uma forma que assume a transformação do gozo em algo contábil: a pulsão parcial e seu quantum de energia que Freud tratou de explicitar quando inventou a libido.  
O sintoma, faz o caminho inverso do que tenta o inconsciente. O sintoma é uma função: Lacan nos diz que é uma função matemática, um f(x) que realiza a transferência da contabilidade ao gozo, do simbólico ao real. E o faz ao traduzir o que há do inconsciente em uma letra. Em outras palavras, o sintoma é o que tenta, criando um envelope formal, dar conta do que de gozo permanece fora da articulação proposta pela fantasia fundamental no seu objetivo de transformar este gozo em prazer. 
Como estamos no rastro da angústia, este resto que permanece como nada, fora do significante, é o que dispara o sinal de alerta da angústia.

Neste ponto devemos retomar a questão do silêncio do S(A/) ao acrescentarmos que a palavra, na verdade, guarda o silêncio e mesmo, podemos dizer, que ela falha diante do gozo. É uma brecha, representada pela impossibilidade do código em recobrir toda a mensagem, ao mesmo tempo que  nos diz da distância entre a demanda e a resposta que se obtém do Outro: espaço, aliás, onde se estrutura a fantasia fundamental, primeira interpretação do desejo do Outro.

  Por isso uma fantasia não pode ser dita, não pode ser interpretada, mas construída. É o que nos diz Freud a propósito do paradigma da fantasia que se define nos termos mesmo de sua construção como: “uma criança é batida”. O cerne desta construção só a alcançamos a duras penas pois, o que se constitui como pivô desta cena é o que não nos lembramos, é o que não tem reminiscência e que precisa ser reconstruído. Não se trata, obviamente, de uma construção qualquer, mas de uma construção que responde a uma necessidade lógica em relação a algo que não se pode dizer. “Há o silêncio no coração da fantasia”(5) Este silêncio, podemos correlacioná-lo ao famoso silêncio da pulsão de morte que Freud tão bem descreveu em seu texto “O Eu e o Isso” designando-lhe, como lugar, um possível núcleo do Isso. Assim, quando nos vemos aprisionados por uma pulsão qualquer, experimentamos o constrangimento de não podermos responder com palavras a este silêncio amedrontador que nos coloca servo de um circuito que só temos consciência no momento em que ele se fecha ao final de sua curva fazendo retornar, sobre o sujeito, um sentido-gozado, sob a forma do discurso do Outro. 
Isso, que está no coração da fantasia e que habita o circuito pulsional nos diz de uma afinidade do silêncio com o gozo. Se, por um lado, esta afinidade se apresenta sob a forma da vergonha e da culpabilidade, tão comuns nos neuróticos, por outro lado ela nos diz deste ponto: o silêncio diz respeito a uma falha mais essencial da palavra diante do gozo. 
Antes de passarmos à função do sintoma e sua relação com o  silêncio e o gozo, chamo a atenção para um ponto que considero fundamental: o analista se faz a partir do silêncio sobre o qual ele se assenta para sustentar uma análise até o seu final. Para que este objetivo seja alcançado ele precisa estar atento ao risco que existe da infiltração de gozo que este silêncio propicia. Uma das saídas possíveis para evitar-se este risco nos aponta na direção da transmissão: é realmente necessário que o analista ensine, fale em público ou então, que faça supervisão. 

“De que se goza fica esquecido por detrás do dito.” Esta frase, cunhada por Miller a partir do que Lacan nos diz em “L’Etourdit: “o que se diz permanece esquecido por detrás do dito, no que se compreende”(6) - esclarece uma dificuldade que se apresenta quando articulamos o sentido com o sentido-gozado. Sabemos que o sentido se escreve a partir do Outro (A), que está na dependência direta do Outro, o que nos leva a escrever que o sentido é um "efeito de". O sentido, portanto, não existe por sua própria conta. Sua produção implica um Outro: A s(A)
No entanto, quando estamos tratando de uma psicanálise, para além deste sentido que se apresenta como efeito do Outro nós implicamos, também, o sentido-gozado. Lembremos que este sentido-gozado foi identificado como parte da própria estrutura da fantasia fundamental:                         
                                            
                                            ($<>a)
                                     A    s(A)

Podemos ler isto que acabamos de escrever, tomando o Grafo do Desejo como referência, da seguinte forma: “não existe prática analítica sem que o efeito de sentido esteja parasitado pelo efeito de sentido-gozado.”(7)  Esta afirmação implica uma posição ética do analista que se traduz nos seguintes termos: mais além da teoria que sustenta sua prática, o analista sempre se orienta pelo que pode perceber como efeito de sentido-gozado e que se apresenta, simplesmente, como antinômico ao efeito de sentido que se compreende. Em outras palavras, a atenção flutuante do analista deverá ser capaz de captar o que se apresenta como sem sentido dentro de todo o sentido que a palavra nos oferece à compreensão. Desta forma, podemos dizer que o sem sentido é um dos nomes do sentido-gozado. Assim, todas as vezes que manipulamos o significante produzimos sem sentido, no sentido à compreender ao mesmo tempo que o transformamos em sentido para gozar. Este sentido para gozar é o que vai nos tocar, de alguma forma, como por exemplo, no chiste. Podemos abrir um parênteses para falarmos do Passe e sua estrutura de chiste: De uma maneira simples, o momento do passe se define por uma transformação de um significante que, se destacando do conjunto pleno de sentido, vai produzir um sem sentido e retornar ao sujeito, deslocando-o da posição que, até então, sustentava. Podemos fazer alusão, aqui, ao sintagma lacaniano que se encontra trabalhado em algumas lições de um de seus seminários: “Em direção a um significante novo”(8) para explicitar o que está no horizonte de uma análise.
Quando um sujeito entra em análise, ele o faz pela via da transferência e, consequentemente, da instalação do Sujeito Suposto Saber - pivô disto que Freud chamou de sintoma analítico. Este Sujeito Suposto Saber só faz nomear, explicitar este efeito de sentido que vem do Outro. Em contra partida, o sem sentido é o que permanece separado do Outro ficando silencioso neste processo de proliferação do sentido a partir do sujeito suposto saber. Este sem sentido, que habita o núcleo da fantasia, é o responsável pela paralisia do sujeito diante de uma frase e pelo aparecimento da angústia, pois ele aponta sempre o vazio em torno do qual gira a pulsão que tem seu sentido congelado pela interpretação que esse sujeito fez do desejo do Outro. No exemplo que Freud constrói, esta frase é: bate-se numa criança. O sujeito se detêm diante dela, na ânsia de restabelecer um elo perdido entre o sem sentido que ela aponta e o Outro do discurso. Esta frase, podemos dizer, vale por um significante unário, um S1, que leva o sujeito a inquietar-se, a buscar um outro significante que possa fazer as vezes de S2, estabelecendo um sentido qualquer. Mas existe, neste ponto,  um paradoxo pois, este S1 além de não pedir uma outra palavra ou outra frase, S2, ele se recusa a isso.
Um Sujeito Suposto Saber, portanto, designa a presença de um significante, ou seja, indica um efeito de sentido, enquanto o sentido-gozado não é suposto, mas experimentado. 
Para abordarmos este sentido-gozado é necessário distinguir deste, o que lhe permite acesso na teoria analítica: a fantasia que está, de alguma forma, articulada ao Outro:
Partindo do andar inferior do grafo: As(A), podemos seguir Lacan e buscar a posição do Outro no efeito de sentido, quando se trata da fantasia:
A/ ($<>a)
A   s(A)
Nestes dois esquemas podemos perceber uma diferença fundamental que se apresenta em relação ao Outro. Enquanto na relação de sentido temos um Outro sem barra – o que indica a alienação - o Outro que  corresponde à fantasia é um Outro modificado, um Outro barrado – que aponta para a separação. Nesta perspectiva a fantasia se coloca como o que responde, no sujeito, à angústia produzida pela presença do desejo do Outro (ou se quizerem, pela própria presença de um índice de separação). A barra sobre este Outro é que nos diz que ele é desejante. A fantasia pode, inclusive, ser considerada como o desejo do Outro ou, mais especificamente, como a interpretação que se fez do desejo do Outro. Chamo a atenção de vocês para a diferença que acabamos de assinalar:  de um Outro que não é o da linguagem, mas do desejo. 
Uma outra modificação se impõe na medida em que trabalhamos com a perspectiva de que a fantasia, tal como está escrita no grafo do desejo é uma formação que agora se veste do gozo que é da ordem do real:

($<>a)
a

Duas vertentes podem ser destacadas da fórmula da fantasia a partir de como o objeto a aí se coloca: uma diz respeito ao objeto a na sua função de dividir, a outra, inversamente, na sua função de complementar.
Uma linha de trabalho pode levar pelos caminhos onde a problemática do tamponamento está presente. Se existe uma falta no Outro, e inclusive a falta do Outro, a fantasia estaria aí para fazer-se de tampão. Deste ponto de vista, a idéia de um atravessamento da fantasia iria implicar num para disso que tampona a para-além do Outro, para, consequentemente, acomodar-se a ela. 
Ora, a própria escritura da fórmula da fantasia, por Lacan, implica esta vertente do tamponamento, desta vez de um sujeito que, como falta a ser, se vê compelido a buscar uma figura imaginária, o objeto a, para complementá-lo. Até mesmo quando Lacan trata do objeto a como real, a problemática do tamponamento persiste. No entanto, passo a passo, uma outra vertente vai se impondo que é inversa a precedente: o objeto não tampona, mas divide, barra. Esta divisão é que serve de ponto de partida ao discurso do analista, no qual o objeto a aparece como divisor e não como tampão.
É esta a perspectiva onde uma retificação pulsional poderá ser feita e o traço da letra poderá abrir novos circuitos que, até então, estavam submetidos à direção única ditada pelo sentido congelado da fantasia fundamental.  Estes novos circuitos, que devolvem ao sujeito a sua possibilidade de escolha, ao mesmo tempo que o faz responsável por elas, são consequências de uma transmutação do objeto a, levando-se em conta a estrutura de extimidade deste objeto: (a A/)
Esta nova perspectiva nos abre caminho para esclarecer que: “quando se trata do objeto a como divisor, quando o que está em jogo não é a encenação da fantasia, mas o gozo que o habita, não se pode afirmar que a é sentido-gozado, efeito de sentido, porque o escrevemos como causa. E quando assinala-se ao objeto a função de causa da divisão do sujeito que, a partir daí resultará sensível aos efeitos de sentido, a não é efeito. De modo que não o convertemos no efeito de sentido, mas sim na referência dos efeitos de sentido e, mais ainda, na referência dos efeitos de sentido-gozado”.


Notas: 
1 - Lacan, J., Escritos, pag. 828: O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade: essa margem é a que a demanda, cujo apelo não pode ser incondicional senão em relação ao Outro, abre sob a forma da possível falha que a necessidade pode aí introduzir, por não haver satisfação universal (o que é chamado de angústia). Margem que, embora sendo liberar, deia transparecer sua vertigem por mais que seja coberta Peo pisoteio de elefante do capricho do Outro.
2 - Miller, J-A., Silet, Curso do dia 23/11/94
3 - “O significante estando integralmente definido por seu lugar, é im­possível de deslocá-lo; mas é possível deslocar uma letra. O si­gnificante advém somente da instância simbólica; mas a letra enlaça R,S e I, que são mutualmente heterogêneos”. Milner, J.C.,- J. Lacan , Penseé et savoir, in Connaissez-vous Lacan , pag 195
4 - Conhecemos bem as definições do significante que Lacan vai buscar em Saussure, onde se define o significante como profundamente diacrítico – somente se coloca a partir da diferença e da distinção.
5 - Miller, J-A,  Silet, Curso do dia 23/11/94
6 - Lacan, J., L’Etourdit, in Scilicet n. 4, Editions du Seuil, Paris, 1973, pag. 5.
7 - Miller, J-A., Los signos del goce , Ed. Paidós, Buenos Aires, 1998, pag. 315.
8 - Lacan, J., “L`insu que sait de l`une-bevue s`aille a mourre”  1976-1977, inédito.