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segunda-feira, 18 de maio de 2020

S(A/) - Sobre a Angústia


Optei por dar a esse texto, que pretende falar da angústia, este título tão exíguo S(A/). Não conheço melhor forma de dizer do silêncio, este que se espera de um analista, e que poderá fazer operar um certo desejo na construção de uma passagem ali, onde o Outro falta. Uma construção possível ali onde a angustia(1) se apresenta como sinal do desamparo próprio ao sujeito humano, no seu nascimento. Paradoxalmente, este é o matema que desenha a estrutura do “falasser”. Esta estrutura que tem, como enlaçamento lógico, o silêncio, nos dizendo que o analista deverá, quando falar, falar a partir do silêncio, ou, como nos diz JAM: “guardar o silêncio totalmente, ao falar”(2). Este é o segredo da interpretação que deverá preservar o lugar do que não se diz, ou melhor ainda, do que não se pode dizer. A mais preciosa das interpretações é o desacordo do analista em ocupar o lugar que lhe demanda o analisante, não permitindo, ao sujeito, nutrir seu sintoma de sentido. Sentido este que se busca na esperança de ver apaziguado o sinal da angústia que aí se apresenta diante da falta no Outro. O analista, portanto, se colocará mais ao lado daquilo que se cala do que ao lado do que fala, no analisante. 
O S(A/) nos diz do que permanece do significante após a palavra ter sido eliminada. Esta é a consequência da intervenção de um analista que vai propiciar ao significante da falta no Outro assumir seu valor de letra, ou seja, o valor de significante escrito. A escritura, podemos dizer, é a única forma que o ser falante tem para subtrair-se aos artifícios do inconsciente. Enquanto preso à palavra, o sujeito não tem como sair das artimanhas que o inconsciente apresenta e que Freud definiu como sendo suas formações. Isto se explica pelo fato de que, uma letra, ao contrário do significante, tem uma identidade(3). Enquanto um significante só se apresenta a partir da diferença(4) e sempre chama um segundo significante, a letra se basta. Um bom exemplo encontramos no número matemático. O número é cifra e não tem efeitos secundários de significado. Um significante, por outro lado, está posto como aquele que pode representar um sujeito para um outro significante. Ao sujeito, enquanto sujeito do inconsciente, sujeito dividido, só resta permanecer nesta brecha do significante como sujeito a advir, num futuro anterior.
A letra, por outro lado, tem uma identidade. O que se pode traduzir do inconsciente por uma letra, o sintoma, tem dois valores: S1 e a. Estes dois valores nos dizem que o Outro é uma matriz de dupla entrada: a e o Um do significante. 
Sabemos, a partir dos textos de Lacan dos anos setenta, que é possível articular uma certa contabilidade ao gozo. Isto se apresenta sob uma forma bem simples se pensamos que o inconsciente está estruturado como uma linguagem e que, os significantes que constituem esta cadeia nada mais são do que uma forma que assume a transformação do gozo em algo contábil: a pulsão parcial e seu quantum de energia que Freud tratou de explicitar quando inventou a libido.  
O sintoma, faz o caminho inverso do que tenta o inconsciente. O sintoma é uma função: Lacan nos diz que é uma função matemática, um f(x) que realiza a transferência da contabilidade ao gozo, do simbólico ao real. E o faz ao traduzir o que há do inconsciente em uma letra. Em outras palavras, o sintoma é o que tenta, criando um envelope formal, dar conta do que de gozo permanece fora da articulação proposta pela fantasia fundamental no seu objetivo de transformar este gozo em prazer. 
Como estamos no rastro da angústia, este resto que permanece como nada, fora do significante, é o que dispara o sinal de alerta da angústia.

Neste ponto devemos retomar a questão do silêncio do S(A/) ao acrescentarmos que a palavra, na verdade, guarda o silêncio e mesmo, podemos dizer, que ela falha diante do gozo. É uma brecha, representada pela impossibilidade do código em recobrir toda a mensagem, ao mesmo tempo que  nos diz da distância entre a demanda e a resposta que se obtém do Outro: espaço, aliás, onde se estrutura a fantasia fundamental, primeira interpretação do desejo do Outro.

  Por isso uma fantasia não pode ser dita, não pode ser interpretada, mas construída. É o que nos diz Freud a propósito do paradigma da fantasia que se define nos termos mesmo de sua construção como: “uma criança é batida”. O cerne desta construção só a alcançamos a duras penas pois, o que se constitui como pivô desta cena é o que não nos lembramos, é o que não tem reminiscência e que precisa ser reconstruído. Não se trata, obviamente, de uma construção qualquer, mas de uma construção que responde a uma necessidade lógica em relação a algo que não se pode dizer. “Há o silêncio no coração da fantasia”(5) Este silêncio, podemos correlacioná-lo ao famoso silêncio da pulsão de morte que Freud tão bem descreveu em seu texto “O Eu e o Isso” designando-lhe, como lugar, um possível núcleo do Isso. Assim, quando nos vemos aprisionados por uma pulsão qualquer, experimentamos o constrangimento de não podermos responder com palavras a este silêncio amedrontador que nos coloca servo de um circuito que só temos consciência no momento em que ele se fecha ao final de sua curva fazendo retornar, sobre o sujeito, um sentido-gozado, sob a forma do discurso do Outro. 
Isso, que está no coração da fantasia e que habita o circuito pulsional nos diz de uma afinidade do silêncio com o gozo. Se, por um lado, esta afinidade se apresenta sob a forma da vergonha e da culpabilidade, tão comuns nos neuróticos, por outro lado ela nos diz deste ponto: o silêncio diz respeito a uma falha mais essencial da palavra diante do gozo. 
Antes de passarmos à função do sintoma e sua relação com o  silêncio e o gozo, chamo a atenção para um ponto que considero fundamental: o analista se faz a partir do silêncio sobre o qual ele se assenta para sustentar uma análise até o seu final. Para que este objetivo seja alcançado ele precisa estar atento ao risco que existe da infiltração de gozo que este silêncio propicia. Uma das saídas possíveis para evitar-se este risco nos aponta na direção da transmissão: é realmente necessário que o analista ensine, fale em público ou então, que faça supervisão. 

“De que se goza fica esquecido por detrás do dito.” Esta frase, cunhada por Miller a partir do que Lacan nos diz em “L’Etourdit: “o que se diz permanece esquecido por detrás do dito, no que se compreende”(6) - esclarece uma dificuldade que se apresenta quando articulamos o sentido com o sentido-gozado. Sabemos que o sentido se escreve a partir do Outro (A), que está na dependência direta do Outro, o que nos leva a escrever que o sentido é um "efeito de". O sentido, portanto, não existe por sua própria conta. Sua produção implica um Outro: A s(A)
No entanto, quando estamos tratando de uma psicanálise, para além deste sentido que se apresenta como efeito do Outro nós implicamos, também, o sentido-gozado. Lembremos que este sentido-gozado foi identificado como parte da própria estrutura da fantasia fundamental:                         
                                            
                                            ($<>a)
                                     A    s(A)

Podemos ler isto que acabamos de escrever, tomando o Grafo do Desejo como referência, da seguinte forma: “não existe prática analítica sem que o efeito de sentido esteja parasitado pelo efeito de sentido-gozado.”(7)  Esta afirmação implica uma posição ética do analista que se traduz nos seguintes termos: mais além da teoria que sustenta sua prática, o analista sempre se orienta pelo que pode perceber como efeito de sentido-gozado e que se apresenta, simplesmente, como antinômico ao efeito de sentido que se compreende. Em outras palavras, a atenção flutuante do analista deverá ser capaz de captar o que se apresenta como sem sentido dentro de todo o sentido que a palavra nos oferece à compreensão. Desta forma, podemos dizer que o sem sentido é um dos nomes do sentido-gozado. Assim, todas as vezes que manipulamos o significante produzimos sem sentido, no sentido à compreender ao mesmo tempo que o transformamos em sentido para gozar. Este sentido para gozar é o que vai nos tocar, de alguma forma, como por exemplo, no chiste. Podemos abrir um parênteses para falarmos do Passe e sua estrutura de chiste: De uma maneira simples, o momento do passe se define por uma transformação de um significante que, se destacando do conjunto pleno de sentido, vai produzir um sem sentido e retornar ao sujeito, deslocando-o da posição que, até então, sustentava. Podemos fazer alusão, aqui, ao sintagma lacaniano que se encontra trabalhado em algumas lições de um de seus seminários: “Em direção a um significante novo”(8) para explicitar o que está no horizonte de uma análise.
Quando um sujeito entra em análise, ele o faz pela via da transferência e, consequentemente, da instalação do Sujeito Suposto Saber - pivô disto que Freud chamou de sintoma analítico. Este Sujeito Suposto Saber só faz nomear, explicitar este efeito de sentido que vem do Outro. Em contra partida, o sem sentido é o que permanece separado do Outro ficando silencioso neste processo de proliferação do sentido a partir do sujeito suposto saber. Este sem sentido, que habita o núcleo da fantasia, é o responsável pela paralisia do sujeito diante de uma frase e pelo aparecimento da angústia, pois ele aponta sempre o vazio em torno do qual gira a pulsão que tem seu sentido congelado pela interpretação que esse sujeito fez do desejo do Outro. No exemplo que Freud constrói, esta frase é: bate-se numa criança. O sujeito se detêm diante dela, na ânsia de restabelecer um elo perdido entre o sem sentido que ela aponta e o Outro do discurso. Esta frase, podemos dizer, vale por um significante unário, um S1, que leva o sujeito a inquietar-se, a buscar um outro significante que possa fazer as vezes de S2, estabelecendo um sentido qualquer. Mas existe, neste ponto,  um paradoxo pois, este S1 além de não pedir uma outra palavra ou outra frase, S2, ele se recusa a isso.
Um Sujeito Suposto Saber, portanto, designa a presença de um significante, ou seja, indica um efeito de sentido, enquanto o sentido-gozado não é suposto, mas experimentado. 
Para abordarmos este sentido-gozado é necessário distinguir deste, o que lhe permite acesso na teoria analítica: a fantasia que está, de alguma forma, articulada ao Outro:
Partindo do andar inferior do grafo: As(A), podemos seguir Lacan e buscar a posição do Outro no efeito de sentido, quando se trata da fantasia:
A/ ($<>a)
A   s(A)
Nestes dois esquemas podemos perceber uma diferença fundamental que se apresenta em relação ao Outro. Enquanto na relação de sentido temos um Outro sem barra – o que indica a alienação - o Outro que  corresponde à fantasia é um Outro modificado, um Outro barrado – que aponta para a separação. Nesta perspectiva a fantasia se coloca como o que responde, no sujeito, à angústia produzida pela presença do desejo do Outro (ou se quizerem, pela própria presença de um índice de separação). A barra sobre este Outro é que nos diz que ele é desejante. A fantasia pode, inclusive, ser considerada como o desejo do Outro ou, mais especificamente, como a interpretação que se fez do desejo do Outro. Chamo a atenção de vocês para a diferença que acabamos de assinalar:  de um Outro que não é o da linguagem, mas do desejo. 
Uma outra modificação se impõe na medida em que trabalhamos com a perspectiva de que a fantasia, tal como está escrita no grafo do desejo é uma formação que agora se veste do gozo que é da ordem do real:

($<>a)
a

Duas vertentes podem ser destacadas da fórmula da fantasia a partir de como o objeto a aí se coloca: uma diz respeito ao objeto a na sua função de dividir, a outra, inversamente, na sua função de complementar.
Uma linha de trabalho pode levar pelos caminhos onde a problemática do tamponamento está presente. Se existe uma falta no Outro, e inclusive a falta do Outro, a fantasia estaria aí para fazer-se de tampão. Deste ponto de vista, a idéia de um atravessamento da fantasia iria implicar num para disso que tampona a para-além do Outro, para, consequentemente, acomodar-se a ela. 
Ora, a própria escritura da fórmula da fantasia, por Lacan, implica esta vertente do tamponamento, desta vez de um sujeito que, como falta a ser, se vê compelido a buscar uma figura imaginária, o objeto a, para complementá-lo. Até mesmo quando Lacan trata do objeto a como real, a problemática do tamponamento persiste. No entanto, passo a passo, uma outra vertente vai se impondo que é inversa a precedente: o objeto não tampona, mas divide, barra. Esta divisão é que serve de ponto de partida ao discurso do analista, no qual o objeto a aparece como divisor e não como tampão.
É esta a perspectiva onde uma retificação pulsional poderá ser feita e o traço da letra poderá abrir novos circuitos que, até então, estavam submetidos à direção única ditada pelo sentido congelado da fantasia fundamental.  Estes novos circuitos, que devolvem ao sujeito a sua possibilidade de escolha, ao mesmo tempo que o faz responsável por elas, são consequências de uma transmutação do objeto a, levando-se em conta a estrutura de extimidade deste objeto: (a A/)
Esta nova perspectiva nos abre caminho para esclarecer que: “quando se trata do objeto a como divisor, quando o que está em jogo não é a encenação da fantasia, mas o gozo que o habita, não se pode afirmar que a é sentido-gozado, efeito de sentido, porque o escrevemos como causa. E quando assinala-se ao objeto a função de causa da divisão do sujeito que, a partir daí resultará sensível aos efeitos de sentido, a não é efeito. De modo que não o convertemos no efeito de sentido, mas sim na referência dos efeitos de sentido e, mais ainda, na referência dos efeitos de sentido-gozado”.


Notas: 
1 - Lacan, J., Escritos, pag. 828: O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade: essa margem é a que a demanda, cujo apelo não pode ser incondicional senão em relação ao Outro, abre sob a forma da possível falha que a necessidade pode aí introduzir, por não haver satisfação universal (o que é chamado de angústia). Margem que, embora sendo liberar, deia transparecer sua vertigem por mais que seja coberta Peo pisoteio de elefante do capricho do Outro.
2 - Miller, J-A., Silet, Curso do dia 23/11/94
3 - “O significante estando integralmente definido por seu lugar, é im­possível de deslocá-lo; mas é possível deslocar uma letra. O si­gnificante advém somente da instância simbólica; mas a letra enlaça R,S e I, que são mutualmente heterogêneos”. Milner, J.C.,- J. Lacan , Penseé et savoir, in Connaissez-vous Lacan , pag 195
4 - Conhecemos bem as definições do significante que Lacan vai buscar em Saussure, onde se define o significante como profundamente diacrítico – somente se coloca a partir da diferença e da distinção.
5 - Miller, J-A,  Silet, Curso do dia 23/11/94
6 - Lacan, J., L’Etourdit, in Scilicet n. 4, Editions du Seuil, Paris, 1973, pag. 5.
7 - Miller, J-A., Los signos del goce , Ed. Paidós, Buenos Aires, 1998, pag. 315.
8 - Lacan, J., “L`insu que sait de l`une-bevue s`aille a mourre”  1976-1977, inédito.

Um comentário:

  1. Muito legal, Celso! Como leigo, o que se li permanece esquecido por detrás do lido, no que se compreendi. Mas gostei muito!

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