Total de visualizações de página

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

“O desejo só é captado na interpretação” (II)

O processo de formação do sintoma, de alguma forma, também está a serviço do dormir, por isso a cada vez que no seu lugar fazemos acontecer um encontro com a demanda ($<>D), desfazendo um certo circuito, “O sintoma simplesmente torna a brotar qual erva daninha, compulsão de repetição”, com o objetivo explicito de que não rememore o que deve ficar recalcado. Daí a afirmação de Lacan de que “Não se fica curado porque se rememora. Rememora-se porque se fica curado.”
Passemos ao exame do sonho da Bela Açougueira relendo o relato que ela mesma faz a Freud:
“Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia.”
Freud assim começa a análise deste sonho: “Respondi, naturalmente, que a análise era a única forma de decidir quanto ao sentido do sonho, embora admitisse que, à primeira vista, ele se afigurava sensato e coerente e parecia ser o inverso da realização de um desejo”. Mas de que material decorreu o sonho? Como sabe, a instigação de um sonho é sempre encontrada nos acontecimentos da véspera.”
“O marido de minha paciente, continua Freud, um açougueiro atacadista, honesto e competente, comentara com ela, na véspera, que estava ficando muito gordo e que, por isso, pretendia começar um regime de emagrecimento. Propunha-se levantar cedo, fazer exercícios físicos, ater-se a uma dieta rigorosa e, acima de tudo, não aceitar mais convites para cear. — Ela acrescentou, rindo, que o marido, no lugar onde almoçava regularmente, travara conhecimento com um pintor que o pressionara a lhe permitir que pintasse seu retrato, pois nunca vira feições tão expressivas. O marido, contudo, replicara, à sua maneira rude, que ficava muito agradecido, mas tinha a certeza de que o pintor preferiria parte do traseiro de uma bonita garota a todo o seu rosto. Ela estava muito apaixonada pelo marido e caçoava muito dele. Ela também implorara a ele que não lhe desse nenhum caviar.
Perguntei-lhe o que significava isso, e ela explicou que há muito tempo desejava comer um sanduíche de caviar todas as manhãs, mas relutava em fazer essa despesa. Naturalmente, o marido a deixaria obtê-lo imediatamente, se ela lhe tivesse pedido. Mas, ao contrário, ela lhe pedira que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer com ele por causa disso.”
A chave deste sonho encontra-se numa indicação clínica precisa: a identificação na histérica que deve ser abordada nesse ponto entre o sujeito histérico e a outra mulher. Este ponto que se define no que a outra tem de inimitável.  “Se nossa paciente se identifica com sua amiga, é por esta ser inimitável no desejo insatisfeito daquele salmão...”. Sempre que se tende a pensar na histeria em termos de imitação, o que está sempre correto, deve ser vinculado a um ponto inimitável. Somente podemos saber do indutor do histérico, ao localizar este ponto inimitável no sujeito que verdadeiramente o fascina. No caso da Bela Açougueira, o ponto inimitável é o desejo insatisfeito de salmão da amiga que pode ser substituído pelo desejo insatisfeito de caviar da paciente. Esta operação e uma metáfora indicando que o sonho da paciente de Freud responde à demanda da amiga com a qual ela se identifica. O desenlace do sonho vai dizer que este ponto de identificação é o que surge no campo do Outro. Este ponto sobre o qual trabalhamos nas últimas postagens e que pode ser matemizado por S(A/). Manter este desejo insatisfeito é manter o Outro desejando, daí o sonho ter também um outro endereçamento: “Deu tudo errado, e o senhor diz que o sonho é a realização de um desejo. Como é que o senhor sai dessa, professor?”
A segunda indicação clínica gira em torno da ambivalência que se expressa no fato da paciente desejar e, ao mesmo tempo, não desejar o caviar. É preciso diferenciar esta ambivalência da que aparece nas neuroses obsessivas. Acontece que quando se trata de uma histeria, o desejo não é ambivalente, pois é desejo de ter um desejo insatisfeito. O que se verifica neste sonho é uma substituição de desejos e que está relacionada a uma demanda e não a uma ambivalência: o pedido que lhe faz a amiga para jantar em sua casa. Esta demanda, que nunca deve ser depreciada quando se trata de uma histérica, aponta a cena onde o desejo se articula: Seu marido fala de forma elogiosa desta amiga, mesmo que ele prefira as mulheres mais cheinhas. É, pois a partir da demanda da amiga que o sonho é produzido. Não nos esqueçamos que a demanda sempre aponta o vazio no campo do Outro.
Lacan, neste ponto de suas elaborações teóricas, pode contribuir de forma decisiva à prática clínica ao tratar a articulação entre demanda, desejo e necessidade. Esta articulação para qual estamos chamando a atenção, também vai acontecer no caso de neurose obsessiva que será trabalhado futuramente.
No sonho da Bela Açougueira, esta responde à demanda da amiga fazendo de seu desejo – substituído ao próprio – o fracasso de sua própria demanda. Sabemos que a demanda é intransitiva, ou seja, sem objeto, assim o sonho tem como função manter aberta a pergunta sobre o desejo, para que, ao final do sonho, possa surgir a identificação desta paciente com o salmão. Esta identificação com o objeto do desejo é o que faz com que o sujeito indeterminado do inconsciente, esse sujeito que desliza ao longo da cadeia significante, se detenha: “Ser o falo, nem que seja um falo meio magrelo. Não está aí a identificação última com o significante do desejo?”
O que está em jogo neste sonho? O nada que habita o entre dois significantes: o sujeito, inicialmente indeterminado, encontra em certo momento sua condição de existir no objeto que o determina. Objeto este desenhado no campo do Outro a partir da interpretação que se fez deste vazio inscrito na demanda como falta-a-ser.
Encontramos aqui uma definição de desejo preciosa, em sua articulação com a demanda e a necessidade, ao mesmo tempo em que explicita as paixões do ser como respostas à falta-a-ser:  
“O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar dessa falta.” Com esta afirmação, Lacan localiza o desejo, a partir do Grafo, neste intervalo entre o (A), lugar da fala e o ($<>D), lugar onde o sujeito, articula a demanda à falta-a-ser S(A/).
“O que é assim dado ao Outro preencher, e que é propriamente o que ele não tem, pois também nele o ser falta, é aquilo a que se chama amor, mas são também o ódio e a ignorância.” Lacan localiza com esta passagem as paixões do ser no ponto de falta do Outro: S(A/) e conclui o parágrafo com uma explanação sobre o porque não é recomendável agir a partir da resposta à necessidade: “É também isso, paixões do ser, o que toda demanda evoca para-além da necessidade que nela se articula, e é disso mesmo que o sujeito fica tão mais propriamente privado quanto mais a necessidade articulada na demanda é satisfeita.” Esta entrada pelo viés da resposta da satisfação da necessidade desvela o engodo do amor ao explicitar que o “o ser da linguagem é o não-ser dos objetos” fazendo com que não seja possível situar o pensamento no nível de realidade que não seja a psíquica. Uma pequena referência à anorexia nervosa vem exemplificar muito bem do que se trata: “É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo.”
Continuaremos, retomando os caminhos do desejo pelos desfiladeiros do significante para tratar de um caso de um final de análise em uma neurose obsessiva.

Nenhum comentário:

Postar um comentário