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terça-feira, 15 de julho de 2014

Algumas notas sobre o "Tempo Lógico"

O tempo é algo que pode ser dividido e podemos falar do tempo, uns com os outros. Isto só é possível, no entanto, porque este tempo (P. ex. Uma sessão de psicanálise de 50 minutos) está submetido a uma lei que, por ser comum entre os homens, possibilita que uma mensagem possa ser transmitida.
Para que os homens pudessem chegar a medir o tempo como fazemos hoje, muito se trabalhou. As primeiras tentativas diziam respeito aos ritmos naturais: percurso do sol, tempo das estações, etc. As primeiras medidas do tempo diziam de um tempo que se gastava para percorrer uma certa distância. Relação tempo-espaço, que até hoje persiste, pois o que vemos nos relógios é exatamente um “tempo” em que o ponteiro demora para percorrer uma certa “distância” que está, como já se disse antes, submetido a uma padronização para que possa ser entendido por todos.
Este tempo, ao qual estamos submetidos enquanto seres sujeitados a uma certa lei que é comum a todos, podemos denomina-lo de tempo cronológico ou simbólico.
Há, no entanto, outros “tempos”, com os quais não lidamos frequentemente apesar de fazerem parte do nosso dia a dia da mesma forma que o tempo cronológico. É este o tempo que faz parte de nossas fantasias, sejam elas infantis ou adultas. É este o tempo em que futuro ou passado são trazidos à nossa mente através da imaginação, fazendo-os serem vívidos como tempo presente. Este “tempo”, só pode existir porque a nós, seres humanos, foi dada a possibilidade de pensarmos. Se nós lembrarmos aqui, que o fato de pensarmos levou muitos filósofos a estudarem este pensar no que diz respeito às suas formas e articulações, vamos lembrar que este estudo  recebeu o nome de Lógica. Assim, a este tempo que se produz na imaginação, em  função de que somos seres pensantes, pode ser denominado de tempo imaginário ou lógico.
Há, no entanto, um outro “tempo” que escapa á cronologia e à lógica, um tempo que não conseguimos apreender em palavras ou desenhos, ou com qualquer outro artifício. É o tempo Real ou topológico.
O tempo real não depende de nossa vontade. Ele existe e existimos nele. É o que nos diz o movimento do sol, das estrelas, do dia e da noite, etc. Foi a partir deste tempo que foi possível pensarmos o tempo enquanto simbólico e imaginar o tempo enquanto imaginário.
Para entendermos o tempo lógico, motivo de nosso texto de hoje, é fundamental o seguinte: esses três tempos estão inexoravelmente articulados entre si. Eu não conseguiria pensar o tempo simbólico se não possuísse uma capacidade de imaginação qualquer, uma lógica no meu pensamento, além de poder sustentar tudo isto numa verdade que pudesse testemunhar de tudo isto pelo fato de que permanecesse imutável, como o nascer do sol todos os dias.
O nó borromeu é um artifício que Lacan utilizou para dar conta destas articulações entre os três registros (Real, Simbólico e Imaginário). O nó borromeu tem como propriedade ser desfeito no momento em que qualquer um de seus laços é cortado.
Tudo isto nos leva ao seguinte: nenhum dos três tempos que definimos acima existe sozinho.
A psicanálise, deste o princípio de sua existência tem se preocupado com a questão do tempo. Freud, logo no início, ao diferenciar o Inconsciente do Consciente, nos dizia que o Inconsciente é atemporal. É fundamental que, ao escutarmos o paciente em análise, levemos em conta este fato. Partindo disto, podemos entender quanto se diz que, com Lacan, a psicanálise trabalha com o tempo lógico, aquele que diz respeito à forma como o pensamento se encandeia, e como a “Outra cena”, o inconsciente, estrutura os fatos que se passaram no dia-a-dia da vida de cada um.
Um pequeno parênteses se faz necessário neste ponto. A psicanálise, como Lacan a elabora, trabalha com sessões curtas em função do tempo lógico, que é o tempo do inconsciente, mas trabalhar simplesmente com sessões curtas não quer dizer que se está utilizando o tempo lógico.
Retomando fio da meada, podemos dizer que se não nos despregarmos do tempo cronológico na escuta psicanalítica não conseguiremos escutar “a verdade” que nos chega nas entrelinhas da fala do paciente. Um pequeno exemplo pode, talvez, clarear o que lhe digo: Um certo fato que ocorreu quando se tinha 5 anos de idade pode, aos 30 anos, continuar atuando com a mesma “força”, ou até mesmo aumentar esta “força” na medida em que novos pensamentos forem acrescentados ao fato original.
Michael Ende, em seu livro “Manu, a menina que sabia ouvir”, coloca a personagem principal com alguém fora do tempo. O tempo era algo que aprisionava as pessoas e as impediam de escutar o que lhe falavam. Até mesmo o lugar que ela habitava estava localizado “fora da cidade”. Podemos entender isto com uma tentativa de escapar a todo o sentido pré-estabelecido que é o fundamento do registro simbólico, uma vez que este registro está inteiramente submetido a uma lei.
Freud, pela escuta que fez de suas histéricas, nos diz que o inconsciente é atemporal e que guarda em seu bojo um desejo indestrutível, desejo este que insiste no inter-dito da cadeia significante e na formações sintomáticas.
Com o conceito do tempo lógico, saímos do tempo que o relógio marca. Esse tempo que tem um sentido importa pelo próprio movimento dos ponteiros que gira numa mesma direção, e serve de parâmetro para muitas atividades (sentido horário, sentido anti-horário). O tempo lógico é o tempo do não-sentido, por isso não o percebemos, já que estamos tão colados com a cronologia do tempo simbólico. Esta percepção do tempo lógico é uma das conseqüências do corte promovido por Freud, e retomado por Lacan no momento em que a psicanálise vinha se perdendo no sentido novamente.
Lacan, no seu retorno à Freud, se perguntou como poderia dar uma forma, formalizar isso que Freud chamou de atemporalidade do inconsciente. Para obter resultados foi à ciência que estuda as formas do pensamento. A lógica.
Lacan pensou o tempo lógico antes do significante. Foi a partir do ponto em que ele, sabendo que o inconsciente é atemporal e que é estruturado a partir de um desejo indestrutível, pensou um tempo absolutamente particular: o tempo do sujeito do inconsciente, que é um outro tempo que não o cronológico. O trabalho do psicanalista talvez pudesse ser dito como sendo o de escutar alguém no seu tempo lógico para que ele possa tornar-se alguém no tempo cronológico.
Em outras palavras diremos que para escutar o sujeito do inconsciente é preciso que nos coloquemos num outro lugar – Manu, a heroína do livro, está fora da cidade, o que forçava as pessoas a saírem do círculo da pólis, lugar regido por leis do homem, para então poderem ser escutados por Manu, para quem o “tempo” não existia.
Assim, como o psicanalista, Manu deixava as pessoas falarem, não interferia, cada um ia colocando o seu sentido naquilo que falavam até pudessem escutar o que diziam, no “seu tempo”. Só desta forma cada um poderá escutar o sujeito que fala nele. Sim, porque quando falamos, estamos sempre a dizer algo diferente do que queríamos dizer, algo sempre está a escapar em nossa fala, nos dizendo que não somos os donos de nossas palavras. É sobre o que escapa que o psicanalista trabalha. São os atos falhos, os chistes, os sonhos, os sintomas, etc, que nos apontam que “algo” trabalha num tempo diferente do tempo cronológico. Este algo está presente quando, ao falar com alguém escuto na sua resposta que não fui bem entendido, que não consegui dizer tudo. Este fato, este mal-entendido, poderia dizer ser a mola que impulsa todo diálogo e ele se baseia na existência mesma de uma independência radical entre significante e significado.
Relato-lhes uma passagem de um certo cliente: certa vez me relatou um sonho: era candidato a prefeito. Ora, é uma frase perfeitamente inteligível em seu próprio contexto. No entanto, toda a problemática deste sujeito se baseava num movimento constante em direção a uma “perfeição” total. Como eu sabia, a partir de seus relatos deste fato, foi possível escutar na palavra “prefeito” a presença de um outro sentido que não o que a frase original, ou manifesta, no sonho dizia. Assim, quando eu pontuei este significante, todo um outro sentido pode ser criado pelo paciente, a partir de um nova posição que o sujeito do inconsciente assumiu. Numa conversação normal, se eu por acaso fizesse a mesma coisa, iam dizer que havia ocorrido um mal-entendido. Podemos então resumir dizendo que a psicanálise trabalha exatamente com o mal-entendido presente em toda palavra.
Mas o que faz com que isto funcione numa análise? É que quando alguém busca um psicanalista, ele chega acreditando que o psicanalista sabe sobre o que se passa com ele, com os seus sintomas, enfim, sabe o que lhe falta. Esta é a figura do Sujeito Suposto Saber, pivô da “transferência”, elemento fundamental do tratamento psicanalítico. No entanto, já temos aqui um dos primeiros mal-entendidos que fazem funcionar a psicanálise: se o analista sabe alguma coisa, certamente não é o que o analisante vem saber, pois a verdade é sempre de cada um. O que o psicanalista certamente sabe é que o significante não está definitivamente colado ao significado, e que este fato é fundamental. Sabe que quem está falando não é o mesmo sujeito do enunciado, já que o sujeito do inconsciente é o sujeito da enunciação e que só temos acesso a ele pelos seus efeitos. Assim, o analista não tem o menor direito de sair por aí a interpretar tudo o que se diz, pois somente quem fala pode ter acesso ao que, na verdade, deseja.
Então, qual a função do analista?
Podemos dizer que a mesma de Manu: se colocar num lugar Outro, lugar que o "Mestre Hora" mesmo disse ser o da "Mansão do Nunca", na rua do "Lugar Nenhum", fora do tempo, fora dos limites da cidade, fora deste espaço cronológico, para poder propiciar a separação do significante / significado. Para apenas e tão somente apontar uma palavra e deslocar o sujeito do eixo em que ele vinha sendo aprisionado, para que esse sujeito possa fazer um retorno sobre si mesmo. São as três escanções que Lacan aponta no seus textos sobe o Tempo Lógico:
No exemplo clínico, quando pontuei a palavra “prefeito” e ele mesmo escutou “perfeito”, viu-se diante de um “instante de olhar”. Sim esta é uma das funções do analista pois, nem sempre estamos atentos a tudo, e é preciso um Outro para nos dizer de algo que promova este “instante” para que, em seguida, possa haver um “tempo para compreender”. Se existia algo na figura da heroína do Livro de Michael Ende, que podemos considerar digno de nota, é a sua capacidade de saber que cada um tinha o seu tempo.
Então, após o instante de olhar e passado o tempo de compreender é chegado o “momento de concluir” para que não se deixe escapar o saber que se construiu sobre  verdade.
Talvez possa ser feita uma comparação entre os três tempos com o próprio desenvolvimento do indivíduo: O instante do olhar é a infância, onde tudo é novo; o tempo para compreender se coaduna com a idade madura, onde começamos a escutar a morte em toda a sua dimensão de verdade; o momento de concluir se representaria na velhice, onde a verdade da morte se tornaria uma realidade muito próxima.

 

5 comentários:

  1. Muito bacana seu texto. Senti falta de algumas indicações de bibliografia.

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  2. Achei o texto muito bom. Concordo com o Renato sobre a bibliografia. Elucidativo

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  3. Prezado Celso Rennó,
    Achei mto curioso a articulação com a qual vc encerra seu texto, relacionando o momento de concluir com o momento em que a morte se torna uma realidade próxima. Estou trabalhando em meu doutorado o tema sobre o impacto de um diagnóstico com prognóstico reservado, ou seja, o impacto da iminência de morte para o paciente. E estou usando exatamente o tempo logico como ferramenta para análise das entrevistas realizadas. Está sendo possível abrir uma discussão de como a iminência de morte impulsiona o sujeito para o instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir, não necessariamente nessa ordem. Você teria algum comentário ou sugestão ou indicação de leitura que pudesse contribuir para meu trabalho?

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  4. Olá,
    Considero o momento de concluir como aquele em que uma interpretação que sustentou uma vida sofre uma retificação possibilitando a assunção de uma nova realidade. Sabemos que essa realidade é, na verdade, um “pouco de realidade”.
    A proximidade da morte deve colocar uma urgência no momento de concluir o que acelera, certamente, uma nova tomada da realidade.
    Uma análise, quando pode se concluir, termina por rearranjar o enlaçamento Real, Simbólico e Imaginário. Isto produz um novo lugar para o Real no que Lacan denominou "Sinthoma”. Será que pode ser pensado assim no caso de doentes terminais? É uma boa questão. Depois me coloque a par das suas elaborações da tese de doutorado.

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