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terça-feira, 22 de julho de 2014

Psicanálise e Medicina - 1ª Parte

Todos sabemos que a psicanálise tem não somente seus antecedentes mas a sua origem na prática médica. Sigmund Freud, pôde inventa-la, exatamente quando a clínica alcançava seu estatuto moderno. Para que Freud pudesse se dedicar ao que traziam aquelas pacientes que, com suas paralisias, não respondiam à categoria do pensamento científico, foi necessário o desenvolvimento de uma clínica onde o que era fundamentalmente invisível se despojasse do mal que até então a significava. Assim se exprime Michel Foucault referindo-se a este momento do nascimento da clínica: "no início do século XIX os médicos descreveram o que, durante séculos, permanecera abaixo do limiar do visível e do enunciável. Isso não significa que, depois de especular durante muito tempo, eles tenham recomeçado a perceber ou a escutar mais a razão do que a imaginação; mas que a relação entre o visível e o invisível, necessária a todo saber concreto, mudou de estrutura e fez aparecer sob o olhar e na linguagem o que se encontrava além de seu domínio. Entre as palavras e as coisas se estabeleceu uma nova aliança fazendo ver e dizer..." Para que isso pudesse acontecer, foi muito importante a renovação do estatuto do doente, além de se poder contar com o espaço fechado do corpo para construir um método semiológico e envolver o doente em um âmbito coletivo, o hospital, que pudesse assegurar uma comunidade epistêmica. 
É ainda Foucault, em seu trabalho citado acima quem afirma a importância da medicina na constituição das ciências do homem. Essa importância não está assinalada apenas do ponto de vista da metodologia, mas também da ontologia, na medida que toca o ser do homem como objeto do saber positivo. 
Verificamos, então, que a enfermidade após a entrada da ciência moderna foi deixando para trás seu lugar nas sombras das crendices à medida em que o espaço corporal foi articulando-se à linguagem e à morte. É, pois, a revisão do estatuto da morte estabelecendo uma nova perspectiva através da evolução do saber anátomo-clínico o que vai emprestar à enfermidade um conteúdo que se expressa em termos positivos. Dito de outra forma, se a enfermidade for pensada em relação à natureza e não à morte, ela estará sempre no lugar do negativo de um natural impossível de assinalar. Pelo contrário, quando a morte se converte no 'a priori' concreto da experiência médica, a enfermidade se desprende do registro do contra-natural e toma consistência no corpo do vivente. 
Também o sujeito do inconsciente deve sua paixão pelo sentido à pulsão de morte. Freud inventou um dispositivo para acolher seus efeitos, constituindo a sessão analítica como um lugar extimo à consulta médica. A sessão analítica, este espaço no qual vai se realizar o lugar do possível, privilegia exatamente o que a clínica médica não pode reabsorver do campo da demanda do paciente, e que tanto mal-estar provoca nos médicos. É que por trás do jorro de palavras que muitas vezes inundam os consultórios, aflora sempre um pedido de socorro, uma busca de garantia à qual muitos preferem fazer-se de surdos. 
É nesta perspectiva que Lacan estabelece, diante uma audiência de médicos no Colégio de Medicina da Salpetrière, em 1966 (Debate este que foi depois estabelecido pelo próprio Lacan e publicado com o título: Psicanálise e Medicina) que a função do médico - o personagem do médico tal como foi concebido na história da medicina - está terminado. A partir desta afirmação, Lacan vai discorrer sobre o destino do médico neste campo da medicina moderna, tomada pela ciência. Sua proposta é que nesta época dominada pela ciência, não existe outra posição que retome aquela que foi do médico,  senão a de sustentar o descobrimento de Freud. 
Assim, assinalando que é a primeira vez que trata do lugar da psicanálise na medicina, Lacan vai sustentar que para a medicina a psicanálise ocupa uma posição marginal: "Ela é marginal em função da posição da medicina frente à psicanálise, que a admite como um tipo de ajuda exterior, comparável àquela dos psicólogos e de outros diferentes assistentes terapêuticos. Ela é extraterritorial em função dos psicanalistas que, sem dúvidas, têm suas razões para querer conservar esta extraterritorialidade" E ele acrescenta que estas não são as suas razões, mas que, na verdade, não acredita que sua ação única poderá mudar muitos as coisas. Cumpre ressaltar aqui que Lacan fazia, naquele momento, uma referência explicita à organização da International Psychoanalytical Association. 
Já, do ponto de vista do médico, é preciso analisar qual tem sido o destino de sua função nesta medicina que se inscreve, cada vez mais, no campo da ciência. É indiscutível que, hoje, tomada pela vertente da ciência, esta tornou-se a única a definir-lhe sua eficácia. 
Se considerarmos a história do médico através dos tempos, o grande médico, o médico típico, era um homem de prestígio e autoridade. Balint - responsável por um trabalho na clínica Tavistock, em Londres durante a década de 50 - definiu muito bem o que se passa entre o médico e o doente: "o médico ao prescrever, prescreve a si mesmo". 
A entrada da ciência veio quebrar esta hierarquia de prestígio e autoridade, reduzindo o médico a um-a-mais na equipe científica. Não mais aquele sustentáculo de funções decantadas como sacerdotais, deduzidas a partir de Hipócrates, quando um médico verdadeiro era aquele que, ao abordar seu doente, levava em conta as condições de vida e existência deste sujeito na conclusão de um diagnóstico ou na prescrição de uma receita ou dieta, seguramente identificável dentro de um marco de uma doutrina. Não mais o médico-filósofo, aquele que desempenhava suas funções guiando-se por normas eternas de vida, que permitiam estar com cada doente em sua particularidade. 
O médico atual é requisitado mais na função do sábio fisiologista a serviço do mundo científico que lhe coloca nas mãos um número infinito de novos produtos, artefatos de diagnóstico e de tratamento ao mesmo tempo que demanda a este médico, como agente distribuidor, de os colocar à prova junto ao grande público. 
É em relação a isso que Lacan se coloca a questão: "onde está o limite no qual o médico deve agir e a que ele deve responder a algo que se chama demanda?"
E ele constrói a seguinte resposta: "Diria que é na medida deste deslizamento, desta evolução que modifica a posição do médico com respeito aos que o procuram, que vem a se individualizar, a se especificar, a valorizar retroativamente, o que existe de original nesta demanda ao médico. Esse desenvolvimento científico inaugura e coloca cada vez mais em primeiro plano esse novo direito do homem à saúde, que existe e já se estrutura em uma organização mundial (OMS). Na medida em que o registro da relação médica à saúde se modifica, onde este tipo de poder generalizado que é o poder da ciência, dá a todos a possibilidade de vir demandar ao médico seu 'ticket' de benefício em um objetivo imediato preciso, vemos desenhar-se a originalidade de uma dimensão que chamei 'a demanda'. É neste registro do modo de resposta à demanda do doente que está a chance de sobrevivência da posição propriamente médica."
E Lacan continua: "Responder que o doente nos vem pedir a cura, absolutamente não responde, pois cada vez que a tarefa precisa, que é cumprir a urgência, não responde pura e simplesmente a uma possibilidade que se acha ao alcance da mão: colocar um aparelho cirúrgico ou administração de antibióticos - e mesmo nesses casos resta saber o que daí resulta para o futuro - existe, fora desse campo que é modificado pelos benefícios terapêuticos, alguma coisa que permanece constante e todo médico sabe bem do que se trata."
O que está explicitado é que toda esta medicina que se estrutura em torno da ciência, subverte absolutamente o eixo da demanda, pois este direito à saúde não está aí para responder a nenhuma demanda de nenhum doente. A universalização deste direito destitui o sujeito da sua condição de desejante, ao mesmo tempo que confina o médico a intervir apenas nas questões de prevenção e sanidade. 

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