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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Psicanálise e Medicina - 2ª Parte

O poder médico hoje, portanto, não responde mais a uma demanda do doente, pois quando este é enviado ao médico não está esperando pura e simplesmente a cura. Na verdade ele coloca o médico à prova de retira-lo de sua condição de doente, o que é muito diferente, pois isso implica que ele está muito mais ligado à idéia de conserva-la. "Ele vem, muitas vezes, nos demandar autentifica-lo como doente, em muitos outros casos ele vem, de forma mais manifesta, demandar preserva-lo em sua doença, de trata-lo da maneira que lhe convêm, aquela que lhe permitira continuar ser um doente bem instalado em sua doença." 
Todo esse desenvolvimento está aqui para nos lembrar que a significação da demanda, esta dimensão sobre a qual se sustenta a função médica apresenta uma defasagem, uma distância em relação ao desejo. Em outras palavras, existe uma falha estrutural entre a demanda e o desejo. 
Nem seria necessário ser psicanalista, nem mesmo médico para saber que quando nos pedem alguma coisa, essa alguma coisa nunca é idêntica, e às vezes até é oposta, ao que se deseja. Lacan, em várias ocasiões, cunhou frases que indicam esta distância entre o que se demanda e o que se deseja. Em L'Etourdit, p. ex. ele nos diz:  "O que se diz permanece esquecido por trás do dito no que se escuta" e no Seminário Mais Ainda: "Eu te peço que recuses o que te ofereço porque não é isso - isso vocês sabem o que é, é o objeto a" 
A partir mesmo desta defasagem entre demanda e desejo é possível introduzir questões relativas ao estatuto do corpo e seus enigmas. Este corpo que a experiência analítica verifica não estar apenas afetado funcionalmente como no sintoma, e que se apresenta observável em um processo verdadeiramente enigmático para o médico. Lacan define como falha epistemo-somática, o efeito que vai produzir o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo.
Esta situação nos diz que o que parecia confuso, velado, misturado, aparece com mais clareza após o trabalho de Freud. O que a medicina propõe da relação epistemo-somática vai consistir num corpo purificado, livre das influências do pensamento, corpo radiografado, scaneado, calibrado. Um corpo como exilado, proscrito tendo como base a dicotomia cartesiana do pensamento e da matéria estendida. 
"Esse corpo, nos diz Lacan, não é simplesmente caracterizado por sua dimensão estendida: um corpo é alguma coisa que está feita para gozar, gozar de si mesmo. A dimensão do gozo está completamente excluída do que chamei relação epistemo-somática. Pois a ciência é capaz de saber o que ela pode, mas ela, menos que o sujeito que ela engendra, não pode saber o que ela quer."
Jean Daniel Matet, em um artigo que leva o título "O corpo e seus enigmas", nos lembra que o esboço dos termos deste vivo debate já aparece em uma correspondência de Freud a Groddeck cujas teses tiveram grande repercussão. Nesta carta, datada de 5 de junho de 1917, Freud reprova Groddeck por haver abandonado a diferença entre o somático e o psíquico para escorregar em direção a um monismo místico. Assim se expressa Freud: "deixe-me mostrar-lhe que o conceito de inconsciente não tem necessidade de nenhuma extensão maior para abarcar suas experiências sobre as enfermidades orgânicas". Mas, Freud agrega que não devemos atribuir ao inconsciente o elo perdido entre o somático e o psíquico. Neste lugar, Freud cria seu mito das pulsões, definida em 1914 como "uma força constante (que), do ponto de vista biológico nos aparecera como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo." 
Continuando nosso trajeto e sustentados em Lacan, temos alguns elementos que já se destacam: a demanda do doente e o gozo do corpo.
Talvez seja o momento de introduzir uma nova dimensão: a do desejo, e com ela o conceito de ética. Aqui Lacan se refere à intervenção da teoria psicanalítica que acontece exatamente quando entra em jogo a ciência, pois foi Freud quem inventou o que deveria responder à subversão da posição do médico pela escalada da ciência. 
Falamos a pouco da diferença entre a demanda e o desejo. Esta diferença, que só pode ser esclarecida com o auxílio da lingüística, se revelou nos trabalhos de Freud sobre o inconsciente e determinou sua estrutura como sendo a de uma linguagem. Esta estrutura é a mesma que define: "existe um desejo porque existe inconsciente, quer dizer, linguagem que escapa ao sujeito em sua natureza e seus efeitos, e que existe sempre no nível da linguagem algo que está mais-além da consciência" determinando que é aí que pode se situar a função do desejo. Este lugar foi definido por Lacan como sendo o lugar do Outro, campo onde se referenciam os excessos da linguagem, onde o sujeito se sustenta de uma marca que escapa a sua própria mestria. É este ponto, neste campo, que promove a junção com o que foi denominado gozo e que designamos como sendo esta falha epistemo-somática. 
Desde Freud sabemos que o prazer faz barreira ao gozo, na medida em que ele define o princípio do prazer como esta pequena excitação que faz desaparecer a tensão, regulando-a através de um certo distanciamento do gozo. O que se denomina, na teoria lacaniana de gozo é, portanto, o "sentido onde o corpo se experimenta, e que é sempre da ordem da tensão, do forçamento, do gasto, talvez da exploração. Existe, incontestavelmente gozo no nível onde começa a aparecer a dor e sabemos que é somente a esse nível da dor que pode experimentar-se toda uma dimensão do organismo que de outra forma permanece velada."
O que é o desejo? Podemos defini-lo sob várias perspectivas, mas vou privilegiar a definição que leva em consideração o que acabamos de falar sobre o gozo e o prazer. "o desejo é algum tipo de ponto de compromisso, escala da dimensão do gozo, na medida em que, de uma certa maneira, ele permite levar mais longe o nível da barreira do prazer. Mas aí encontramos um ponto da fantasia onde intervém o registro da dimensão imaginária que faz com que o desejo esteja ligado a alguma coisa da qual não é de sua natureza exigir, verdadeiramente, a realização." 
À luz do que lhes trouxemos até aqui sobre estes três conceitos psicanalíticos: demanda, desejo e gozo, penso podermos estabelecer uma discussão do lugar da psicanálise na medicina, acrescentando-se que isso só será possível levando-se em conta que a clínica aparece para a experiência do médico como um novo perfil do perceptível e do enunciável, clínica esta que "deve sua real importância ao fato de ser uma reorganização em profundidade não só dos conhecimentos médicos, mas da própria possibilidade de um discurso sobre a doença".
Somente nesta perspectiva poderemos estabelecer os meandros de uma ética que não vai se sustentar nos parâmetros traçados pela moral vigente ou pela  ciência que exclui de seu campo tudo aquilo que não consegue trazer sob a forma de um saber que possa retornar ao sujeito como objeto de prazer. A ética que sustenta a teoria psicanalítica baseia-se na tese de que é fundamental não ceder do seu desejo, mesmo diante de toda esta oferta feita pela ciência e sustentada pelo discurso capitalista.

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