Total de visualizações de página

terça-feira, 19 de agosto de 2014

A TERAPÊUTICA MAIS ALÉM DO PSICOFÁRMACO - A IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO (1ª Parte)

“A partir das últimas classificações, principalmente dos Diagnósticos de Saúde Mental (DSM4), estamos acompanhando a evolução, a passos acelerados, no sentido da unificação do campo clínico das doenças mentais”.
“Com a introdução do conceito de episódios depressivos breves, quase nada falta para obtermos, por exemplo, uma só categoria: o episódio depressivo (mais ou menos breve, mais ou menos intenso). Essa constatação suscitou uma proposição que nos parece fundamental: a questão diagnóstica das psicoses e se devemos agrupá-las sob a égide de um déficit ou de um enigma. Se levarmos à frente a proposta de redução unificante que se alastra pelo campo da Psiquiatria, estaremos condenados a partir de um a priori: deveremos sempre abordar a clínica das doenças mentais pelo seu aspecto deficitário.”



Esta epígrafe nos diz do que vai interessar, e muito, às questões relacionadas com a eficácia medicamentosa e, principalmente, à indústria que recentemente desenvolveu a chamada 2ª geração dos antidepressivos. Se trabalharmos na vertente diagnóstica a partir “da falta de” fica muito simples oferecer remédios. Ora, isso só tende a limitar a originalidade da loucura ao déficit de funções, reduzindo a possibilidade de cura que seria dada pela medida da distância em que essa loucura vai se estabelecer como estando fora da normalidade. Estaríamos enfatizando, portanto, a questão da normalidade, ou mais especificamente a normalidade atualizada pelos costumes.
Outras possibilidades surgem, no entanto, quando se escuta o que afirma J.A. Miller: a ironia é o que pode permitir a unificação do campo mental. Esta fórmula não se ancora na perspectiva do déficit, mas sim da ruína do laço social. Pode-se dizer, então, que do ponto de vista do retorno a Freud feito por J. Lacan, fala-se em unificação, não pelo viés do todos deprimidos, mas sim pelo viés do “todo mundo delira”. Ressalta-se, no entanto, que a universalidade do delírio não afasta da cena a clínica diferencial das psicoses.
Quando se definiu a abordagem clínica pelo viés do déficit, partiu-se do que nela se apresentava como experiência da perplexidade.
Verificou-se também que essa abordagem estaria inteiramente sustentada nas relações do ser falante com a linguagem. Refiro-me aqui à forma como a própria Psicanálise e o próprio Lacan começou a abordar a questão da loucura -  trataram da falta do nome do pai. A clínica irônica, como foi trabalhada por J. A. Miller oferece um roteiro que será utilizado aqui. O que destaca Miller é a mudança que se percebe na clínica das psicoses, a partir da chamada 2ª clínica de Lacan:  o déficit não permanece mais no lugar em que estava. Se há um déficit, ele decorre da falta de enlaçamento, de um enlaçamento que sustente um discurso na relação do Sujeito com o Outro.
Pelo menos dois pontos merecem ser mencionados nessa perspectiva, quando se institui, a partir da 2ª clínica, o lugar da perplexidade, do enigma e de sua história. Verifica-se que se trata de um fenômeno da enunciação. O enigma, primeiramente abordado por Lacan, está relacionado ao sentido e à fuga do sentido.
Demonstremos esta articulação no andar inferior do grafo do desejo, lembrando que Lacan o denominou de célula-base. Este circuito diz que todo estímulo, partindo de um ponto, vai encontrar no lugar do Outro uma resposta que, por sua vez, vai retornar ao ponto de origem sob a forma de uma mensagem. Esse movimento, que nos diz também do momento inaugural do surgimento do Sujeito define-se da seguinte forma: um grito, produzido pelo mal-estar percebido pelo pequeno bebê, dirige-se a um outro que esteja próximo. Este próximo, definido por Freud em seu “Projeto para uma Psicologia Científica” como Nebenmesch é re-batizado por Lacan por Grande Outro. Este Outro traduz esse grito, fazendo com que chegue, no ponto de onde surgiu, uma resposta que é recebida como mensagem. Esse movimento, desenhado por Freud a partir de sua experiência clínica, é conhecido como "a posteriori" ou só-depois, traduções possíveis do alemão: nachträglich. Este movimento é responsável por uma modificação da necessidade em demanda, ao transformar o grito inicial em significantes - processo indispensável à constituição do sujeito.
Existe uma frase - que a mim sempre pareceu enigmática desde quando a vi pela primeira vez e que se encontra no texto de Freud “Sobre o Narcisismo: uma introdução”: “Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram deste o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo.” Hoje, penso, que essa “nova ação psíquica” pode ser traduzida exatamente por esta articulação que Lacan propõe a partir de seu Grafo do Desejo: é um grito que se faz a demanda pela ação da interpretação de um Outro (Nebenmensch).  A partir da ação de um Outro, um Outro que tem um código estabelecido, e, portanto, está  capacitado e em condições de tratar o real pelo simbólico. Se isso acontece, uma mensagem pode surgir e, como conseqüência, um Sujeito.
Esse Sujeito, no entanto, já nasce marcado por uma impossibilidade. A impossibilidade que o marca a partir desse momento é de que ele possa receber na mensagem do Outro a verdade toda. Em outras palavras, quando o grito foi transformado em significante pelo acréscimo do significante do Outro, o grito (que podemos, aqui, equivaler ao traço inaugural) se perdeu.
É por isso que Lacan coloca, na primeira construção do grafo do desejo, a “voz”, como produto da passagem do grito pelo campo do significante, indicando-nos que algo escapa na tentativa de significação. Quando o que retorna do Outro não é um significante, mas a voz, como acontece em muitas psicoses, foi porque algo não funcionou.
Quando todo esse processo pode seguir normalmente o seu curso, o que se instala é uma repetição, nomeada por Lacan a partir de Aristóteles como Automaton. É, em outras palavras um moto continuo que, na maior parte do tempo passa desapercebida. A consequência deste Automaton é um certo apaziguamento, contrariamente ao que acontece quando, como já aludimos acima, o grito ao chegar no campo do Outro não passa pelos desfiladeiros dos significantes. O grito encontra uma resposta truncada, pois ele não é traduzido em significantes e o que retorna é o Real produzindo gozo onde deveria acontecer um apaziguamento.
Gozo se apresenta, muitas vezes, como um mal-estar. Um mal-estar que diz da presença de uma falta que nada mais é do que repetição da falta que a resposta do Outro denuncia. Em outras palavras, é a presença da falta do Outro no que tange a impossibilidade da verdade ser dita plenamente, como já assinalei antes. Para o neurótico, este gozo nada mais é do que uma pequena ponta que denota um estado que teria existido, portanto mítico, antes do significante colocar sua ordem ao mundo. É por isso que se pode dizer que quando a voz surge sem o anteparo do significante, ela se apresenta como algo estranho, não traduzido, mas ao mesmo tempo absolutamente familiar. Esta presença, Lacan designa por uma matema: o objeto pequeno “a”.
Para melhor exemplificar esta presença, imagine-se em um país estrangeiro cuja língua e escrita são absolutamente diferentes e da qual não se tem nenhum conhecimento. Ao descer no aeroporto, ouvir e ver todas aquelas palavras estranhas que não se identifica, tem-se a impressão de que algo familiar, mas estranho. Pode-se inferir desta experiência o que se passa com um sujeito que não pode ter o seu grito traduzido. O que lhe retorna é apenas a voz, portadora apenas do sem sentido. Esta é uma das razões do porque se levar em consideração a presença da perplexidade, quando se fala do diagnóstico, pois será, sem dúvidas, um sinal de que a palavra que pode mediar a relação do sujeito com o mundo, com o que Lacan chamou de Real, não aconteceu.
Pode-se dizer, sucintamente, que o Real escapa todas as vezes que se chega perto dele. Por isso Lacan vai defini-lo, entre outras formas, como “fuga do sentido”. Pode-se, também, utilizar uma metáfora para melhor explicitar esta presença que escapa. A baía de Guanabara, p.ex: antes do aterro do Flamengo o mar chegava próximo ao Hotel Glória. Hoje se tem uma grande avenida e parques onde antes era o mar. Continuando com a metáfora, pode-se considerar o aterro como o efeito do Simbólico e o mar como o Real. Esta metáfora nos indica que a única noção que se pode ter do Real é a borda. Tem-se essa noção muito clara quando, se tropeça com o Real. Sente-se que ele está por ali em função da “tiquê” esse encontro faltoso e, às vezes, traumático que interrompe a rotina diária. Nesta perspectiva pode-se apresentar um outro exemplo: um acidente qualquer desorganiza o seu dia dizendo dos limites do simbólico pois, mesmo que este traga a possibilidade de um cálculo, o encontro com o Real diz de uma borda que, se ultrapassada, nos lança no reino do sem-sentido, exigindo do sujeito um trabalho de re-organização a partir deste encontro.
Miller, em seu Seminário “O lugar e o laço” chama nossa atenção para o que se pode denominar simbolicamente Real. Suponha-se um círculo que represente o Simbólico e um ponto, dentro deste círculo, que represente o Real. O círculo é o nosso dia organizado, nem sempre calmo, mas organizado. A ocorrência de acidente qualquer vai se apresentar na rede simbólica que se construiu, como um furo, denotando uma falha no sistema significante. Mesmo que, a tentativa imediata de se retomar o fio significante para re-organizar o dia, não impede que, neste momento, apareça a angústia, uma angústia que se designa como simbolicamente Real. Assim é porque existe um simbólico organizado que favorece, ou possibilita uma reação diante do tropeço no Real, e consequente mergulho no Real. Quando esse recurso não está disponível, quando o simbólico não pode emprestar sua estrutura a uma re-organização, este mergulho no Real não produz angústia, mas a perplexidade e o pânico. Esta hipótese se sustenta no fato de que a pouca organização que o simbólico pode alcançar quando não aconteceu a tradução do grito em palavra não é suficiente para delimitar, circunscrever a presença de uma falta – o objeto “a” – deixando-se permear, como um todo, por esta presença Real.
O que se conclui daí é que a angústia é um apanágio  neurótico. Não se pode atribuir a angústia ao psicótico. Ele pode até dizer-se angustiado, pois é a palavra que encontra para dizer do seu mal-estar, mas o que ele descreve é muito mais compatível com um estado de perplexidade ou pânico. O Real vai surgir fragmentando a organização desse sujeito, deixando-o à mercê desse Real que pode invadi-lo a qualquer momento.
A perplexidade, portanto, está ligada à  fuga de sentido. Se para o neurótico ela se apresenta pontualmente, quando algo escapa á compreensão, mas se organiza em seguida, na psicose acontece uma fragmentação do campo simbólico, fragilmente organizado, provocando o pânico e não a angústia.
(Continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário