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terça-feira, 26 de agosto de 2014

TERAPÊUTICA MAIS ALÉM DO PSICOFÁRMACO - A IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO. (2ª Parte)

Considera-se, portanto, a importância do diagnóstico a partir do fato do significante se apresentar na sua impossibilidade de suturar o espaço no qual a experiência do gozo se apresenta. É importante definir-se um ponto: um diagnóstico deve ser feito para ter consequências e uma das formas de se chegar a um diagnóstico é estabelecer onde e como o significante demonstra sua impossibilidade de se haver com o surgimento do Real.  A posição com que cada sujeito vai se apresentar diante do Real é que vai dizer da estrutura que está em jogo. Pode-se adiantar a importância de estabelecer este diagnóstico, na medida em que ele determina o caminho que poderá produzir uma letra que vai permitir um enlace do sinthoma. Um sinthoma escrito desta forma, com “th” para diferencia-lo do sintoma comum, pois ele vai permitir um novo enlaçamento no ponto de falha significante.
Neste procedimento de definir conceitos para construir os parâmetros de um entendimento pode-se dizer, de uma maneira bem simples, que a letra é o suporte do significante. Ao escrever-se S, tem-se uma letra, mas se a esse S ao qual se acrescenta o número 1 (S1), fizer-se seguir outro S acrescentado do 2 (S2), denotando a diferença entre os dois S, vai-se transformar as letras S em significantes.
Como o psicótico, não consentiu com a entrada do significante que organiza um pouco de realidade, os imprevistos de seu dia-a-dia são tratados de uma forma diferente: no lugar de buscar um significante na sequência que é determinada pelo que seria sua fantasia fundamental, ele tenta grampear ali, onde a contingência se fez presente, uma letra qualquer na esperança de que ela possa fazer-se significante. Como essa passagem não acontece esta letra pode produzir uma estabilização apenas quando ela permanecer como uma prótese, como um grampo que mantenha juntos os registros do Real, Simbólico e Imaginário, possibilitando uma frágil realidade. Uma letra, uma prótese, um grampo. Como diz Lacan, o que permite conhecer a estrutura um sujeito é a relação entre estes três espaços, é como eles se arranjam no enlaçamento borromeano. O nó Borromeu se caracteriza exatamente por um enlaçamento, ou melhor, por uma cadeia construída de tal forma que cada laço está preso ao outro mas, se um deles for rompido, todos os outros se libertam.
O neurótico apresenta um tipo de enlaçamento que possibilita um re-arranjo imediato diante da contingência. Ele pode até experimentar um estado de perplexidade e pânico, mas logo em seguida os nós se refazem, pois estão, digamos, garantidos pela existência de um 4º laço que se estrutura a partir do Édipo e enlaça borromeanamente os outros três. Este 4° laço é o que se chama de Nome-do-Pai.  Em outras palavras, mesmo que o enlaçamento sofra um certo afrouxamento, esse 4º laço mantém a estrutura borromeana.
Na psicose, no entanto, os três laços teriam a estrutura borromeana, pois dois deles apresentam-se apenas justapostos. Isso quando se trata de uma psicose com um mínimo de estruturação mínima. Essa estruturação mínima é alcançada quando, no lugar do Nome-do-Pai, consegue-se estabelecer um pequeno laço entre dois registros. O resultado é um falso Nó que vai se sustentar como tal a partir da Letra para fazer um Sinthome.
Um bom exemplo deste tipo de enlaçamento é a obra de James Joyce. Lacan atribui à escrita de Joyce a possibilidade de estabilização. Ao escrever, Joyce pôde manter entrelaçados o Imaginário e o Simbólico, uma vez que o Real do corpo sempre lhe escapava. Na passagem em que ele descreve o momento em que é espancado por um companheiro até perder a presença de seu corpo, vivendo o que se chama epifania, é a letra que vai sustentar a organização simbólica e manter o imaginário do corpo.
Em Schreber temos vários outros exemplos onde a dissolução imaginária do corpo vai exigir esforços suplementares para manter-se um mínimo de organização simbólica. Os esforços de Schreber não se resumiam à escrita: escreveu “Memórias de um Neuropata”. Ele lançava mão de um delírio que tinha a função de organizar uma realidade possível: diante do espelho, percebendo a fragmentação de seu corpo, imaginava como seria bom ser uma mulher sendo copulada por Deus. Assim ele se fazia a mulher que faltava aos homens produzindo um enlaçamento entre Imaginário e Simbólico que, desta forma, circunscreviam o Real.
Neste ponto é possível retomar o tema do enigma, que foi mencionado no início deste texto. Pode-se aborda-lo pelo limite entre o Real e o Simbólico. Existe uma falha universal. Lacan no final de seu ensino a relaciona com uma foraclusão generalizada. Daí se poder falar, com Miller, em clínica do delírio universal. Diante de um enigma todos criam sua teoria. A diferença fica por conta desta teoria ser, digamos, razoáveis, aceitas pelo código ou não. Lendo Michel Foucault, A história da loucura, encontra-se um capítulo inteiro em torno da questão do delírio. O delírio se define como o que sai do sulco, do caminho. Partindo desta definição, Foucault focaliza a época da psiquiatria clássica do século XVIII, quando os psiquiatras acreditavam que o delírio era uma forma razoável de estar no mundo. Esta mesma posição é retomada por Freud e trabalhada por Lacan. Em 1955, quando Lacan trabalha o seu seminário, As Psicoses, um de seus objetivos é saber qual é a razão que está por trás do delírio que sustenta o Sujeito no mundo.
O diagnóstico é importante, também por isso: Se um delírio surge em resposta a um enigma, ele tem uma razão. A razão do delírio do neurótico está sustentada no Nome do Pai, na lei. Está sustentada no fato de que o Sujeito passou pelo Édipo. Um Édipo que se estrutura, resumidamente, da seguinte forma: uma mãe e sua criança da qual se separa no parto. O movimento da mãe é de reintegrar a criança, pois o parto, mais do que uma perda constitui um enigma para ela – Talvez isso explique porque muitas mães, no pós-parto, se envolvem em delírios que fogem à normalidade. A falta que se constitui nesta separação é mais um enigma do que uma falta. A tentativa da mãe de reverter este quadro vai sofrer uma sanção do pai: não reintegrarás teu produto. É a lei que se faz presente. Se a mãe a aceita, por já ter consentido com ela, o enigma da existência vai ser colocado para a criança. Esta, por sua vez, vai construir sua própria resposta “delirante”. Sim, delirante por se construir a partir de uma realidade muito particular e constituir no que Freud chamou de Outra cena. Uma cena que acontece na realidade psíquica. Esta realidade psíquica foi definida por Freud quando, depois de acreditar que suas pacientes histéricas eram vítimas da sedução paterna, ele constatou que elas mentiam. “Minhas histéricas mentem” - é uma frase famosa de Freud em uma carta a seu amigo Fliess. “Estou decepcionado”, disse Freud, “decepcionado com a ciência, decepcionado com a Medicina, decepcionado com as minhas pacientes a quem eu dediquei tanto tempo”.
Se, por acaso Freud tivesse cedido de seu desejo neste momento de decepção, provavelmente a Psicanálise não existisse hoje. No entanto ele persistiu. Se elas mentiam com tanta convicção é porque acreditavam em sua teoria, seu “delírio”, portanto elas estavam se referindo a uma outra realidade, a realidade de uma fantasia que tem o mesmo peso, a mesma importância que a dita realidade externa. Esta reflexão, esta insistência do desejo de Freud criou a Psicanálise. Em outras palavras, quando Freud se desliga da realidade e passa a trabalhar a resposta que cada um dá ao enigma da sua existência ele inaugura um novo campo, o campo freudiano. Campo este que se organiza em torno da fantasia fundamental e tem, como característica, ser absolutamente particular a cada um. Por isso, pode-se falar que todos deliram. Cada sujeito tem sua teoria da vida que maneja de forma singular. Através desta teoria ele faz laço social e funciona na sua relação com o Outro. É o saber sobre a fantasia fundamental de um sujeito o que pode  dizer como o sujeito está no mundo, como ele se relaciona com o Outro.
(continua)

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