Ao construir o seu Estádio do Espelho Lacan vai opor a forma total e plena da visão, ao que se constitui como o sentimento de incompletude do corpo como organismo. Este sentimento, consequência da deficiência específica do homem com respeito ao domínio motriz é do conhecimento de todos os que trabalham com a biologia e a neurologia. Esta oposição deixa clara a distinção entre a imagem e o corpo experimentado como organismo. Esta imagem que se apresenta como alteridade mostra-se, ao mesmo tempo, como semelhante produzindo um reconhecimento que permite ao sujeito constituir-se numa divisão que o faz tomar-se pelo Outro e, ao mesmo tempo mantê-lo afastado.
Esta brecha, presente no momento em que os dois campos se constituem como tal, mantêm-se viva pela atividade pulsional que, no seu movimento de ir e vir, nomeia o que do Outro não pertence ao registro do sujeito.
Este glorioso intervalo, tão bem explicitado pela pintura de Michelangelo na cúpula da Capela Cistina, no Vaticano (A Criação de Adão) coloca de um lado o sujeito e do outro o objeto que habita o vazio do campo do Outro. O objeto se apresenta, então, como uma negação, uma inversão das propriedades atribuídas ao sujeito.
Esta pequena introdução nos diz que sujeito e o corpo, enquanto organismo, estariam separados por uma brecha que coloca o sujeito numa posição de ignorância a propósito do corpo e que é absolutamente necessária para que funcionemos. A verdade é que este elo perdido, esta ponte que fecharia o circuito entre o sujeito e o corpo não existe. Para dar conta deste impasse, Freud lançou mão de dois artifícios que se resumem nos conceitos de objeto perdido e na mitologia de sua teoria pulsional. Ao definir a pulsão, em seu famoso artigo “A pulsão e suas vicissitudes” ele a coloca exatamente na fronteira entre o somático e o psíquico, estabelecendo a ação do somático sobre o psíquico como sendo o que faz trabalhar a mente humana. Devemos entender esta ação do somático exatamente como o que de desconhecimento permanece sobre o funcionamento do corpo para a mente em questão (não se trata, obviamente, de um desconhecimento científico, pois até mesmo um médico, p.ex., padece deste desconhecimento sobre seu próprio organismo. A exceção fica por conta dos psicóticos a quem falta este glorioso intervalo onde uma pulsão pode se fazer valer).
É importante esclarecermos que denominarmos a teoria pulsional de mito nada tem de pejorativo. Um mito é uma história, um conceito, uma explicação que vai se interpor entre a linguagem, ou seja o que é possível de se dizer, e o real, ou seja o que se apresenta como impossível de dizer.
O corpo, que será um lugar Outro de onde o sujeito recortará os objetos que ele eleger como aqueles que estão em conformidade com o desejo do Outro, é portanto secundário, um efeito que surge como consequência de uma separação. Ele é consequência deste momento inaugural em que o sujeito constata que o objeto do qual ele se ocupava até então não lhe pertence, e nem tampouco àquele que ele constitui como Outro neste mesmo instante. Em outras palavras, podemos dizer que a construção do corpo, desse corpo secundário, é dependente da perda radical do primeiro corpo, do organismo real.
Ao dizermos "meu corpo" estamos, na verdade, nos referindo a três registros diferentes: 1 - o da imagem, que nada mais é do que este corpo que eu reconheço como meu. Este corpo corresponde ao que Freud chamava de EU, designado como uma projeção corporal. 2 - o do lugar do simbólico, que designa um lugar habitável por um sujeito e que, para isso, foi designado como tal muito antes do sujeito nascer e assim permanecerá para depois da morte. Este lugar que se constrói graças ao fato de que um significante qualquer estabelece a possibilidade de um ponto de capitonagem num certo conjunto de traços dando-lhe consistência e unidade. Este é o efeito de um "Nome Próprio" que se escreve em função da inscrição do que Lacan denominou como significante do Nome do Pai. 3 - como consequência da entrada do significante podemos ter acesso ao que de organismo real permanece. Este acesso acontece quando uma ruptura na tela protetora da fantasia fundamental produz a emergência do que Freud denominou de Unheimilich - o estranho familiar -. É nosso corpo que surge como radicalmente estranho. Nossa clínica está repleta de exemplos da angústia provocada quando um sujeito, habitualmente uma mulher, se percebe vista como apenas um corpo. Esta angústia se explica pelo fato de que sendo identificada apenas pelo que há de corpo, este sujeito se encontra desprovido, momentaneamente, tanto de sua imagem, quanto da possibilidade de se ver reconhecido no desejo do Outro.
Para dar conta disso que do corpo permanece fora da incidência do significante, Lacan elaborou o conceito de Gozo. Para chegar a esse conceito, ele parte dos paradoxos da satisfação que se ligam à pulsão, mais especificamente à pulsão de morte. O gozo, é importante esclarecermos, não é desejável, pelo contrário, há uma série de barreiras que o psiquismo constrói para tentar impedir a sua aproximação. Entre elas encontramos o prazer que está na base da reação que podemos denominar de animal e que se constitui no ato de fugir da dor e da tensão. Esta barreira encontra seus fundamentos no que Freud denominou o Princípio do Prazer. Outra barreira é o desejo que, fundado numa interdição, leva o sujeito a não ultrapassar certos limites no gozo, a não ser que sua opção denuncie a presença de uma vontade de gozo.
Neste ponto podemos abrir um pequeno parênteses para explicitar um pouco mais quais são os prejuízos que sofre o corpo pela entrada do significante: A perda que faz deste um deserto de gozo e a fragmentação que se apresenta na forma dos chamados objetos parciais. Dito de outra forma, onde o significante se apresenta, o gozo não é mais, restando somente aquele que se liga à repetição e que dissipa a perda da “Coisa”, fazendo do humano um ser ávido de reencontrar o que miticamente existiu e que foi descrito por Freud como causa da insatisfação constituinte. Entre a Coisa, lugar do gozo, e o sujeito determinado pelo significante, o encontro será sempre faltoso, pois esta divisão funda-se nesta impossibilidade mesma.
Neste espaço, portanto, é que vamos ver constituir-se o que se encontra no princípio mesmo de todo apetite sexual: a libido. A libido é o que faz buscar fora de si o que se acredita ser o objeto complementar. Se Aristófanes constrói o mito das metades das esferas para tentar explicar o amor, Lacan, a partir de Freud, nos fala da emigração da libido fora das fronteiras do corpo, fazendo dela um verdadeiro órgão, um instrumento para aumentar os limites do próprio organismo para além do seu envelope corporal. (Mito da Lamela)
A idéia mesma da libido, portanto, só pode ser concebida a partir de uma subtração, uma subtração de gozo que se define como castração. Esta subtração que vai fundar a libido como sendo um vetor em direção a um objeto, nós poderemos escrevê-lo utilizando o signo -j. É este signo, que vai conferir ao objeto pequeno a seu estatuto de causa de desejo: a/-j.
Se tomamos, por outro lado, o objeto a como o que resta deste gozo e que se encontra fragmentado e distribuído fora do corpo (muito bem ilustrado por Lacan quando ele se refere às sepulturas antigas, onde se encontram objetos ao lado do corpo) vamos nos dar conta do que é quando se trata da pulsão na sua versão de gozo. Lacan designa ainda uma outra versão para a pulsão que seria a versão significante, indicando que ela não existe sem o corte significante, pois está diretamente relacionada à demanda do Outro. São estas demandas que vão recortando o corpo e dando às bordas anatômicas seu caráter erôgeno, ao mesmo tempo que localiza o gozo como periférico, na medida que o objeto que vai condensá-lo está localizado como separado do corpo. Este é o objeto que Lacan nomeia como "mais-de-gozar", a partir mesmo do conceito de “mais valia” de Marx, para indicar o valor de compensação que ele evoca em relação ao menos que deu origem à libido. Então, se pelo efeito do significante alguma coisa se perde e não é restituída, pelo menos é em parte recompensada. Este objeto tem portanto uma dupla característica: por um lado ele é perdido e não poderá ser re-apropiado, estando preso em uma série de déficits, mas por outro lado, ele é também re-positivado, apresentado como gozo vivo, causa de desejo.
Em seu seminário Silet, JAMiller nos diz que “a falta do sujeito, como efeito do significante, está completada pelo objeto pequeno a. (Por isso) Lacan vai dizer, por exemplo, que esse objeto está ligado ao momento de "fading" do sujeito.”
Continuando no parágrafo seguinte, JAMiller esclarece que “esta solução da relação do sujeito ao objeto, que, no fundo, diz que a uma falta efeito do significante, a uma falta devido ao efeito mortificante do significante, responde este elemento de vida, este elemento de gozo vivo que é o objeto pequeno a é que diz também, enfim, em resumo, que isso que a alienação engendrada pela ordem significante chama a necessidade de um objeto é da ordem da castração significante ... tudo isso que é da ordem da castração ... deve responder como um aporte suplementar, que Lacan designa como o objeto pequeno a, que produziu, em Freud, o conceito de pulsão.”
Para finalizar, vamos introduzir o sintoma que, em sua relação com o corpo, poderá ser definido como sendo um gozo exilado no deserto deste corpo. A existência deste gozo só encontramos numa cifra que se oferece a descifração na esperança de que uma verdade seja desvelada. No entanto, no lugar de uma verdade desvelada, vamos verificar que, no final de uma análise, esta articulação poderá se desfazer abrindo espaço a uma nova cifração que acontece no momento em que uma retificação pulsional acontece.
Esta nova cifração é o que vai permitir uma passagem, aproveitando-se da própria estrutura do falasser, ao fazer existir a pluralização ali onde apenas a solução da fantasia fundamental se apresentava como resposta à demanda do Outro.
Ponto de destituição subjetiva que, desvelando a inexistência do Outro, devolve à estrutura congelada da fantasia fundamental (na estrutura da fantasia fundamental o que importa é a busca de um objeto, eleito como aquele do desejo do Outro, para produzir uma resposta adequada aos ideiais do Eu) sua possibilidade pulsional. Isto se confirma em Freud, quando ele nos diz que para a pulsão o objeto é secundário. O que interessa - e isso é fundamental na estrutura pulsional - é que o circuito se complete para produzir o que definimos como um gozo possível.
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